quinta-feira, 11 de março de 2010

Ética, cinema e documentário. Poéticas de Pedro Costa

Por Carlos Melo Ferreira

Escola Superior Artística do Porto


Resumo: Não existe uma ética específica do documentário mas a ética do cinema abrange a dele, sem ignorar as regras de boa conduta recomendáveis no documentário. Nos filmes de Pedro Costa é transposta a fronteira entre documentário e ficção, em especial no seu díptico central, em função de uma ética que, além da técnica, determina a respectiva estética. Fazer filmes como imperativo ético e político. Palavras-chave: Ética, Documentário, Cinema, Ponto de vista, Distância, Poéticas.


Numa época de cinema de entretenimento, de divertimento popular em que a maioria dos filmes se dedica a jogos fúteis com o imaginário e esquece aquilo que vai continuando a acontecer no mundo real em que toda a gente vive, a ética pode ser uma boa palavra se esgrimida com precisão. Não se afigura, no entanto, pertinente distinguir uma ética do documentário da ética do cinema, na medida em que neste como naquele as questões de ética dependem sempre do assunto que se escolhe e da maneira de o abordar, bem como do ponto de vista que se define. Este é particularmente importante, seja fílmico ou narrativo, sendo esse o caso, na medida em que vai regular a distância guardada pelo filme e imposta ao espectador, o que é especialmente importante numa linguagem e num dispositivo fortemente propiciadores da fascinação. O cinema entrou nas últimas décadas num estado de urgência perante as sucessivas catástrofes, humanas e naturais, que têm devastado o planeta. Além disso, não só em termos ambientais mas, também, em termos urbanísticos e paisagísticos têm sido cometidas as maiores barbaridades com o pretexto de uma nova modernidade, a maior das quais se manifesta, todavia, em verdadeiros atentados contra seres humanos, contra a vida humana.Perante este panorama, o cinema tem insistido no espectáculo de evasão propício ao esquecimento ou tem-se refugiado numa caução artística geradora de grande elaboração estética, deixando ao documentário, tanto cinematográfico como televisivo, a responsabilidade de se ocupar do que se passa no mundo real. E deve dizer-se que o documentário e mesmo algum filme realista se têm, de facto, encarregado de filmar e documentar o que acontece de novo e o que prolonga situações anteriores do lado do abandono, da marginalização, da miséria, mas também do conflito, em filmes que talvez não tenham a divulgação que merecem. Para o documentarismo existem regras aconselháveis a título de normas de bom procedimento, como a de só filmar quem autoriza ser filmado, regras essas desenvolvidas ao longo do século XX e sempre infringidas quando motivos considerados superiores o exigem, como aconteceu logo com Dziga Vertov, se repetiu com o cinéma-verité e não cessa de acontecer com o uso televisivo da candid-camera. Mas, no documentário, como no cinema em geral, o que está sempre em causa de fundamental é a existência de um ponto de vista e como ele funciona em cada filme. Não fora isso, com o fácil acesso aos equipamentos digitais qualquer um poderia fazer um filme desde que aprendesse a técnica necessária, o que não é difícil. O problema, contudo, está sempre na definição de um ponto de vista, definido no momento da filmagem e apurado na mesa de montagem, embora possa ter origem num argumento ou numa ideia prévia. Ora esse ponto de vista depende de uma série de factores, desde o ângulo de tomada de vistas e a escala que definem cada plano aos movimentos de câmara (ou ausência deles), passa pela utilização (ou não) de profundidade de campo e vai culminar com a montagem sequencial do material filmado, o que normalmente faz coincidir um ponto de vista fílmico com o ponto de vista narrativo. Isto acontece no cinema narrativo e no cinema não narrativo, no filme de ficção como no documentário, o que leva a que não se equacionem princípios éticos específicos segundo a natureza do filme. Perante o estado de urgência gerado por um mundo em acelerada mudança, a questão ética fundamental que se coloca é a de filmar. Fazer um filme sobre aquilo que acontece fora de um universo virtual e de fantasia tornou-se, de facto, uma exigência ética. E para lhe responder não tem havido, nem tem que haver, um grande cálculo.

Basta perceber que a realidade está aí, ao nosso lado, debaixo dos nossos olhos ao ponto de nos incluir, e atirar-se a ela. Se o documentário tem feito isso mesmo perante as situações mais diversas, tanto ele como a maioria dos filmes realistas filmam a parte exterior, a superfície das coisas e dos seres, que é aquilo que o equipamento cinematográfico é, desde os Lumière, essencialmente apto para fazer. Escapa-lhe, todavia, com frequência o interior, a interioridade das personagens, como lhe escapa muitas vezes a relação, o lado relacional das personagens. De entre os diversos cineastas que têm tentado captar o ser humano em perda para além da superfície e em relação conta-se Pedro Costa, que com essa preocupação, e por exigência ética, tem violado as fronteiras do filme de ficção, em que se iniciou, para entrar no campo do documental, e tem forçado as fronteiras tradicionais do documentário para enveredar pelo campo ficcional. Percebe-se essa atitude e aurgência dela atendendo ao desastroso estado do mundo e dos humanos, diante do qual tanto a ficção como o documentário se revelam não só insuficientes como impotentes. Comece-se por recapitular sumariamente o percurso do cineasta. O seu filme de estreia, O Sangue, é construído sobre a memória da vida e do cinema, mas desde logo estabelece um excepcional domínio de elementos fundamentais da linguagem cinematográfica, nomeadamente o fora de campo e a elipse. Feito a preto e branco num regime metálico e contrastado da imagem, este é mais que um filme inaugural, um filme fundador de um ponto de vista e de uma estética. Segue-se-lhe um outro filme ficcional, Casa de Lava, que transpõe distâncias geográficas em busca das origens, num gesto que continua o do filme anterior mas remete aqui para outros espaços, outra cultura, que é também documentalmente vista. Agora a cores, aí continuam a pulsar memórias da vida e do cinema. Para a sua terceira longa-metragem Pedro Costa vai, inesperadamente, sacudir o conforto do cinema, em que facilmente se podia ter instalado, para ir à procura do desconforto, mais, do mal-estar e do sofrimento aí onde eles se encontram. Para isso filma pela primeira vez num bairro degradado dos arredores de Lisboa, as Fontainhas, vidas vividas em sobressalto, em aflição, mas não o faz como um documentarista, antes ficciona a parir da realidade para tentar chegar, exactamente, onde o documentário normalmente não chega. Ossos (1997) é, assim, um filme de urgência: urgência de captar o que habitualmente o cinema não regista, urgência de ir além da superfície, do que se costuma mostrar no cinema, urgência de estabelecer e apurar um ponto devista que se revele adequado, urgência de não ignorar, de não virar as costas e passar a outra coisa.O filme foi um choque para o espectador de cinema, habituado a outros temas e a outras abordagens, mais superficiais ou mais pseudo-didácticas, mas apesar de tudo a ficção e os actores profissionais ainda lhe permitiam guardar uma certa distância relativamente ao assunto e ao material filmado. Mas o meio, os habitantes do bairro vistos de passagem mereciam uma outra aproximação, e por isso aquele não podia ser senão um começo.Para se aproximar mais do bairro e dos seus habitantes o cineasta passou mais tempo no local e com as pessoas que ficara a conhecer do filme anterior, e desse convívio vão sair dois filmes que rompem todas as fronteiras e todas as regras do cinema por exigência ética.

Para além do realismo

Na verdade, o díptico que se vai seguir, formado por No Quarto da Vanda (2000) e Juventude em Marcha (2006), vai forçar, na continuação de Ossos e de uma forma perfeitamente coerente, o acesso ao que é menos filmado porque menos filmável, i. e., vai entrar em casas de espaço muito reduzido, na intimidade de quartos onde se debatem solidões partilhadas escassamente conhecidas, quando não ignoradas, no filme anterior não completamente penetradas embora inauguralmente sugeridas, ainda em registo dramático. Neste processo Pedro Costa é muito ajudadado pelas novas câmaras digitais, facilmente transportáveis, mas com base no seu uso ele teve que estabelecer as regras técnicas que elas implicam. Movendo-se em espaços muito reduzidos, em No Quarto da Vanda teve que impor, contra a prudente distância a grande proximidade, o que gera maior desconforto na filmagem e no filme. Dir-se-á que as condições físicas, materiais, impuseram soluções fílmicas que não são usuais no documentário, o que permitiu que o filme pudesse exceder o mero registo documental em que, só por si,ele já se poderia basear. Não podendo guardar distâncias o cineasta força a grande proximidade do grande-plano de seres abandonados à sua sorte, ao seu destino, mas que procuram ainda no que podem, uns nos outros encontrar conforto, elementos de reconhecimento e de partilha. Daí resultam planos de um grande rigor e, no limite, de uma estarrecedora beleza, em que a luz, a cor, o contraste com as sombras recortam, esculpem nos recantos do espaço, com máxima precisão, aqueles seres precisos em toda a angústia que os invade, cuja verdade não meramente exterior, mas também exterior assim se revela, aparece, iluminada pela verdade interior, proveniente dos recessos da alma mas também dos gestos banais e dos objectos triviais. É certo que há a palavra, palavras ditas no quotidiano e em sofrimento, trocadas em improviso e sujeitas ao imprevisto, numa atitude de convívio e de partilha com inequívoco significado político, mas torna-se sobretudo visível, aparece o que as palavras não dizem nem, quiçá, podem completamente dizer. Vai ser essa grande proximidade que vai quebrar qualquer ideia de distância prudente, conveniente, e permitir dar toda a dimensão física, convulsiva, do corpo. O corpo que absorve e o corpo que expele tornam-se de visão obrigatória, perfeitamente lógica e aceitável dentro das coordenadas estéticas impostas, impondo todo o desconforto que lhes é próprio em tais circunstâncias, sobretudo quando a essas duas funções surge como drasticamente reduzido. A sensação de desconforto das personagens, de sofrimento e de angústia dificilmente partilháveis, é agravada pelos ruídos provenientes do fora de campo, originados pelas máquinas que, entretanto, estão a demolir o bairro. Juventude em Marcha pretende acompanhar a mudança de personagens provenientes do filme anterior para as suas novas casas, num outro bairro menos precário, mas mais impessoal. Para o fazer, o cineasta tem que se adaptar, de novo, às novas circunstâncias de espaço, e por isso em divisões, salas e quartos maiores a câmara assume uma maior distância relativamente às personagens, permitindo situá-las no interior do seu novo cenário de vida. Mas não se limita a isso. De facto, pelos diálogos e monólogos deste filme perpassa uma busca das origens, próximas e distantes, a construção da memória, o estabelecimento e exteriorização de laços familiares de uma forma que configura, muito mais que o registo de uma comunidade, a fundação dela. A Vanda do filme anterior perde a centralidade narrativa e fílmica, lugar que passa a ser assumido por Ventura, que não só recorda, no próprio local, a construção do Museu Gulbenkian, em que trabalhou como operário da construção civil, como estabelece contacto com as suas raízes mais longínquas na terra de onde saiu para vir para Portugal, o mesmo Cabo Verde de Casa de Lava (1994). Deste modo, as distâncias criadas, propiciadas pelos novos espaços, anulam-se, proporcionando um outro acesso, mais fundo e ainda mais verdadeiro, à interioridade das personagens e ao mundo relacional delas, de que sentem necessidade por terem sido afastadas do meio em que tinham referências seguras, embora em condições extremamente degradadas. A memória, indispensável operador individual e comunitário, começa a fazer-se história, especialmente através de uma personagem central, Ventura, incapacitada para o trabalho devido a acidente de trabalho. Parece estar tudo dito sobre estes dois filmes centrais, absolutamente indispensáveis, e está ainda por dizer o principal, o que vai estabelecer toda a radicalidade da proposta estética mas também ética, ética mas também estética do cineasta, que tem o seu início em Ossos. Na verdade, e como o próprio Pedro Costa esclarece, ele teve que ajustar o equipamento cinematográfico, nomeadamente a câmara de filmar digital, a espaços diferentes nos dois filmes, pelo que teve que proceder a todo um trabalho com a imagem que o levou a adoptar focais longas e a grande angular em circunstâncias espacialmente diferentes. A grande proximidade de No Quarto da Vanda levantou-lhe problemas de distorção dos rostos, enquanto a maior distância de Juventude em Marcha originou novos problemas de distorção das linhas rectas que, em ângulos verticais e horizontais, estão presentes no espaço do plano em largura, profundidade e altura. Para os resolver, ele teve que encontrar as poucas posições possíveis da câmara, no primeiro filme, a única posição possível dela, no segundo, no que terá dependido apenas de si próprio, pois a partir do primeiro é ele quem faz o trabalho de fotografia dos seus próprios filmes. Além disso, os diálogos e monólogos deste último filme não se improvisam, apesar do registo da representação parecer semelhante ao do filme anterior, e o certo é que por eles passa em larga medida, como no filme anterior mas agora num outro espaço e circunstâncias, a carga de verdade das personagens. Mas essas palavras, como os corpos, como os rostos, não dizem só o que exprimem, remetem também para um não-dito que sugerem e implicam. Concretamente, a carta de Ventura é composta pelo cineasta a partir de cartas verdadeiras de emigrantes e de uma das últimas cartas enviadas a Youki pelo poeta e resistente Robert Desnos do campo de concentração de Floha, pouco antes da sua morte no campo de concentração Terezin. Contudo, o que será talvez o elemento definidor essencial dos filmes de Pedro Costa, estrutural a partir de No Quarto da Vanda, são os planos fixos e muito longos que, se permitem ao espectador aperceber-se das mais ligeiras variações que se verificam com as personagens, exigem também uma maior atenção. Poderá perceber-se, a partir do que se disse antes sobre os cuidados exigidos pelo trabalho de câmara, que ao cineasta não se apresentavam muitas opções nesta matéria, pois o menor movimento ou deslocação da câmara implicava a distorção na imagem. Mesmo assim, teria sempre sido possível optar por planos mais curtos, menos expositivos e menos exigentes de contemplação atenta, já que a acção, o movimento rareiam. Por este motivo, se todo o processo que conduziu à realização destes dois filmes depois de Ossos releva de um imperativo ético, a escolha de planos fixos e muito longos terá que ser entendida como resultado do mesmo tipo de imposição - o que, aliás, o lento movimento de câmara com que é filmada de baixo a árvore, no final de Juventude em Marcha, nega e comenta. Deste modo, percebe-se melhor a coerência estética e ética mas, também, política, desta série de filmes: dar a ver o desconforto, a miséria, o abandono em toda a sua verdade física, material, mostrando personagens reduzidas pela magreza aos ossos do título do filme inicial, mas também o desconforto íntimo delas, que o exterior sugere tanto melhor quanto visto em maior proximidade mas que as palavras exteriorizam também, por insuficientes que possam parecer e sejam, do mesmo passo que o tentam superar. E aí o plano fixo e longo é fundamental para estabelecer o ponto de vista.

O estabelecimento de uma verdade

Entre os dois filmes, Pedro Costa realiza o documentário Où Gît Votre Sourire Enfoui? (2001), sobre Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, em que os surpreende durante o trabalho de montagem de um filme naquele que, segundo ele próprio, será o menos straubiano dos seus filmes. Mesmo assim, o filme é um documento à altura daqueles que filma, como os outros filmes estão à altura daqueles que filmam, e chama a atenção para a importância absolutamente fundamental da montagem no cinema, em geral, e nos filmes dos cineastas, em especial. Efectivamente, Costa filma muito, muito mais que aquilo que utiliza nos seus filmes, pelo que o trabalho de selecção/subtracção é indispensável e fulcral em cada um deles, pois por ele passa a criação não só de um ponto de vista mas de uma lógica narrativa que os espectadores possam entender e aceitar. Devido ao extremo cuidado da composição visual e sonora de cada um desses filmes, não espanta que o cineasta tenha podido responder a convites para fazer instalações em museus e exposições com fragmentos não utilizados na montagem final de No Quarto da Vanda, embora ele próprio reconheça que o que no filme aparece é o que era aproveitável do material filmado. Por isso, para essas instalações escolheu fragmentos ocasionais, de preparação. Mas esta questão da montagem não é apenas visual, como é bom dever, já que os elementos sonoros são muito importantes em todos os filmes de Pedro Costa, e em especial neste díptico. Não se trata apenas dos diálogos ou monólogos, das palavras ouvidas sempre de maneira precisa e clara nas condições acústicas próprias, mas de todo o ruído ambiente envolvente, que assume maior relevo em No Quarto da Vanda embora também esteja presente em Juventude em Marcha, o que se percebe atendendo ao contexto de demolição do bairro em que o primeiro decorre. Portanto, a montagem dos filmes do cineasta é sempre audiovisual, com ocasionais momentos de pós-sincronização e com o acrescento de alguns, geralmente poucos elementos musicais. Num momento em que o cineasta e os seus filmes fazem a transição para o espaço do museu, o espaço institucional da arte, será bom ter presente que o entendimento que ele tem da arte, da música que utiliza nos seus filmes como do quadro de Rubens no plano rodado no Museu Gulbenkian em Juventude em Marcha, aproximase do entendimento que Ventura tem neste filme sobre o Museu. De facto, e segundo ele próprio, ele faz os seus filmes como Ventura construiu a parede em que está exposto o quadro do pintor célebre, o que em si mesmo envolve o reconhecimento do trabalho e da paixão que se empenham numa obra, que podia ser uma parede ou um quadro mas no caso dele é um filme. Aliás, e curiosamente, as referências de que ele se reivindica têm tudo que ver com a época áurea dos estúdios do cinema americano, já que ele convoca tanto os grandes clássicos, como John Ford, Howard Hawks e Raoul Walsh, como os pequenos mestres da série B (e aqui Jacques Tourneur é convocado sobretudo pelo fulcral Stars in My Crown, embora os seus filmes de terror também sejam importantes para ele, nomeadamente do lado da iluminação) a título de inspiradores de uma moral, mas também com o espírito de independência dos grandes modernos, como Orson Welles, Andrei Tarkovski, Ingmar Bergman e Federico Fellini, sem rejeitar proximidades com algum do melhor cinema contemporâneo, como Quentin Tarantino. Percebe-se, além disso, a importância que para ele assume o cinema japonês clássico, Mizoguchi e Naruse do lado da iluminação, mas sobretudo Ozu, convocado ao mesmo título dos clássicos americanos como possuidor de um convicção que transparece nos seus filmes e considerado decisivo para a opção por planos fixos e longos, juntamente com Chaplin e Jacques Tati. Depois das curta-metragens Tarrafal, feita para o filme O Estado do Mundo, em que segue personagens do díptico em incursão pelos espaços vazios frente ao novo subúrbio, e The Rabbit Hunters, feita para Memories (Jeonju Digital Project 2007), em que as segue no seu novo quotidiano, Pedro Costa assume o documentário, embora sempre entendido de maneira muito livre, em Ne Change Rien (2009), até à data o seu último filme. Aí ele segue, persegue a cantora/actriz Jeanne Balibar durante os ensaios, e não durante um espectáculo, o que lhe permite captá-la em perda, à semelhança do que acontece com as personagens dos seus outros filmes (incluindo os Straub, surpreendidos numa intimidade algo truculenta), mas também em construção, na preparação para os espectáculos públicos mas também na afinação de si própria. O filme é uma declaração de amor do cineasta à cantora/actriz francesa e tem a notável particularidade de ser feito a preto e branco, como o fora O Sangue (1989), embora aqui seja adoptada uma imagem escura, sombria, manchada por escassas fontes de luz visíveis no plano, que servem fundamentalmente para delimitar espaços de visibilidade num ambiente fechado, de estúdio, por isso só artificialmente iluminado. Com a Balibar sempre vestida de escuro, dela se destacam permanentemente o rosto e as mãos enquanto prossegue, por vezes penosamente, os seus ensaios no esforço de atingir o tom justo. E aqui a questão é a mesma dos outros filmes do cineasta: criar a justa distância que seja a distância justa de quem/do que está a filmar em planos geralmente longos, em que se nota qualquer variação de atitude ou comportamento das personagens. Sintomática embora naturalmente, a música, pouco presente nos seus outros filmes, passa aqui para primeiro plano, das nuances da voz a todo o som, todos os sons, por vezes estridentes, da banda a tocar. E tudo isto, preto e branco, iluminação, distância, duração, música e voz, obedece a um princípio idêntico ao que está presente na estética dos outros filmes do cineasta, i. e., tentar vislumbrar, descobrir, permitir que se revel e e apareça a verdade do ser, neste caso de uma cantora/actriz, de uma mulher precisa em que procura, recorda e resume todas as mulheres. Assim, o corpo da Balibar, o rosto e as mãos dela são tratados como algo de material e objectivo mas também de humano, interiorizado e relacional, portanto mutável, ainda para mais em estádio de preparação, de ensaio, quando as questões de apresentação exterior não são consideradas decisivas. Não desprovido de momentos de humor, o filme encerrará uma possível súmula da arte poética do cineasta numa sequência de planos em que a Jeanne canta sem música, que se desenvolve com ela situada ao lado de uma janela que dá para o exterior, prossegue com um plano de música em que ela está ausente, antes está presente uma figura masculina, e termina com um plano de um casal japonês sem qualquer som, num silêncio tanto mais assombroso quanto o que está em causa ao longo de todo o filme é o som, a música e a voz. Na sua eloquente simplicidade, este é um momento de absoluta plenitude no cinema de Pedro Costa, límpido e directo em termos fílmicos, inequívoco, sábio, comovedor sem abandonar um tom ligeiro na sua óbvia referência a Jeanne e a si próprio, via Yasujiro Ozu. Se este último filme em data do cineasta remete para o primeiro, O Sangue, por ausa do preto e branco, embora sujeito a um tratamento muito diferente, ele permite também concluir, provisoriamente, toda uma linha de relações entre os seus filmes que passa inevitavelmente por figuras da perda de referências, da solidão e da luta contra ela, tal como por laços estabelecidos para superar a falta ou escassez deles com recurso ao que foi através da memória. Uma memória que vence obstáculos e percorre pequenas como grandes distâncias, mas que permite reencontrar no presente aquilo que se perdeu e de que se sente a falta, rumo a um futuro incerto, que será o que dos dois primeiros filmes passa para o díptico e nele permite sair do impasse de Ossos. Mas uma memória que liga, que constrói, que se afirma como história, que parte da vida de todos os dias, do banal quotidiano, para aí regressar, aí construir os fundamentos do futuro com base num terá sido, num futuro anterior que torna possível o conhecimento histórico, segundo Giorgio Agamben (Agamben, 2008).

Conclusão sobre a ética

Começou por se dizer que não existe uma ética específica do documentário, mas uma ética do cinema. O tratamento cronológico da obra de Pedro Costa, que manifestamente transborda dos entendimentos paralisantes de géneros e formas de representaçãono cinema, ora invadindo o documentário a partir da ficção, ora invadindo a ficção a partir do documentário, poderá ser esclarecedor desse ponto de vista se se lhe acrescentar ainda mais alguma coisa, explicitando melhor o que foi dito até aqui. Embora se reconheça ao documentarismo uma estratégia que visa procurar e encontrar a realidade e mais que a realidade, a verdade dela e daqueles que a vivem, haverá que reconhecer também que essa estratégia é limitativa, constrangedora, porque obriga quem faz um documentário a submeter-se à realidade. O que precisamente faz a originalidade do percurso de Pedro Costa (e de alguns outros) no cinema é ele não se satisfazer com a ficção nem com o documentário, e procurar ir além dos limites deles para atingir um realismo possuidor de uma novidade que acrescente à verdade do mundo e dos seres, a um nível e de um modo no documentário só ao alcance de grandes virtuosi, como Jean Rouch e Fred Wiseman. Ao reconhecer afinidades com o trabalho do fotógrafo Jacob Riis no início do século XX, o século do cinema, o cineasta identifica em si mesmo essa necessidade de ir à procura das coisas onde elas de facto acontecem, mas simultaneamente, e ao eleger um fotógrafo e não um cineasta, demonstra uma aguda consciência da necessidade de compor o quadro, no seu caso fílmico, com alguma coisa que vai ao encontro da essência da realidade mostrada mas que a vai sempre exceder. Talvez porque para ele a realidade não é só o exterior, a superfície, há que procurar, escavar no interior de cada ser, de cada objecto, de cada local e meio para atingir uma verdade de que valha a pena falar, que justifique o esforço dispendido porque surge como algo de novo, até aí insuspeitado, não visto, não visível, desse modo documentado. Aliás, Costa cita também outros fotógrafos americanos, Eugene Richards e Robert Frank, importantes do lado do realismo. Ora isto terá que ver com uma ética materialista para uma estética realista, uma ética que sabe que o que é próprio do ser humano é esconder, camuflar o que é sob as aparências que mostra, o que torna necessário um longo e meticuloso trabalho sobre o exterior, o corpo e o rosto, sobre o que impõe a visibilidade. Para ir além do que surge como imediatamente visível é preciso questionar-lhe a aparência, nem que seja, como no caso de No Quarto da Vanda e Juventude em Marcha (em especial no primeiro), para dela mostrar toda a exterioridade, que exige, para ser reconhecida e identificada, a percepção do que entra no corpo e dele sai, mas também do que permanece e em que estado permanece, até nas posturas e atitudes do corpo que dão conta do cansaço como do mal estar, da espera como do desespero, mesmo se e quando esse corpo se encontra reduzido a muito pouco mas é ainda animado pelo sopro vital. Desse modo, o cineasta consegue também uma superação heideggeriana da técnica, rumo à revelação, à desocultação da verdade dos seres captados na experiência dos limites.

Contudo, por aqui não deixam de passar também momentos de uma ética hedonista, presentes em certos momentos de convívio e que assumem uma nova e inesperada importância em Ne Change Rien. São perceptíveis e ganham relevo nos filmes de Pedro Costa poéticas da luz e do espaço, do ruído e da voz, do silêncio e do tempo, do plano fixo e longo e da vida comum de todos os dias, da cor e do preto e branco, da ficção e do documentário, da perda, da escassez e da memória, mas de uma memória que reconduz á história, da ligação e da desligação, trabalhadas de filme em filme de um modo insistente, reiterado, que permite falar de um estilo, de uma estética mas também de uma ética que nelas se baseiam. Em Portugal têm sido encontrados noutras áreas artísticas criadores contemporâneos que trabalham universos e formas próximos dos seus, como é o caso do fotógrafo Paulo Nozolino e do escultor Rui Chafes. Para eles, de facto, a realidade, tal como para Pedro Costa, não é um objectivo a atingir mas uma matéria com a qual, sobre a qual trabalhar, construir. No cinema podem ser procuradas afinidades temáticas e estéticas, mas também éticas entre os filmes dele e os do catalão José Luís Guerín, do chinês Jia Zhang-Ke, do húngaro Béla Tarr, da belga Chantal Akerman – mesmo os de Víctor Erice e Abbas Kiarostami. Por outro lado, se o próprio cineasta reconhece influências no campo do cinema, nomeadamente as de Jean Rouch e Jacques Tati, para além das acima mencionadas, não se devem minimizar as suas proximidades com o universo rock, pop e punk, nomeadamente na música, nem as referências que para os seus filmes se podem encontrar na pintura quanto ao tratamento da luz – Rubens mas, principalmente,Vermeer, embora possam surgir como referências incompletas e avulsas, pois quem ele reconhece como próximos de si são Van Ruysdael, Courbet, Picasso – e no teatro de Samuel Beckett, mas em especial no de Bertolt Brecht. Além disso, a obra dele é também atravessada, assombrada por uma memória que é também memória do cinema, de um cinema do realismo – David W. Griffith, Eric von Stroheim, no início, mais tarde Roberto Rossellini - e de um cinema da superação dele - Jean-Luc Godard, Andy Warhol e, mais tarde, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub -, o que permite situar a estética, mesmo o esteticismo dos seus filmes não de um lado formalista, estéril, mas do lado de uma nova modernidade em permanente construção, em permanente reinvenção e descoberta de si própria. Uma modernidade que, note-se, não enjeita o realismo, antes o integra. Assim, longe da sociedade do espectáculo, das luzes e dos brilhos da ribalta, dos seus postiços e maquilhagens, mas também alheio ao lado mais agradável do documentário, o do filme etnográfico, embora sem abdicar de fortes apontamentos antropológicos com implicações políticas, o cineasta tem traçado e seguido um percurso cinematográfico e artístico pessoal, original e de uma grande coerência ética, estética e política. Fora quer do cinema comercial quer do documentário, a estratégia dos filmes dele define-se na tentativa de chegar onde eles muito raramente chegam, de dizer o que eles muito raramente dizem, de captar e mostrar o que lhes escapa mas assume uma enorme importância não só estética mas também ética, não só ética mas também política, tudo no uso das novas tecnologias da imagem e do som no cinema.Talvez a infracção dos limites estabelecidos entre ficção e documentário, praticada nos seus filmes, seja mesmo uma das saídas do impasse a que o cinema, arrastado pelo fascínio das novas tecnologias, chegou nas últimas décadas (Ishagpour, 1996). Uma nota sobre a ética do cinema de Pedro Costa deve chamar a atenção para a preocupação que ele tem em mostrar os seus filmes àqueles que neles entram, o que será uma das lições que terá recebido de António Reis. Uma observação final deve deixar dito que pelo cinema dele passa também o conceito de espectador emancipado de Jacques Rancière, na justa medida em que um espectador que sabe ver e escolher o que vê depende muito do cineasta consciente, que livre de constrangimentos sabe olhar e ver antes dele para lhe mostrar, lhe tornar visível o que merece a pena ser visto: um ponto de vista qualificado que merece ser partilhado por um espectador activo. Aliás, o autor chama especialmente a atenção para a dimensão política do tríptico de Pedro Costa do lado de um tratamento separado de seres e de objectos do quotidiano no quadro de uma situação de marginalização e de experiência dos limites, para a potência que aí assumem o olhar e a palavra, no centro nevrálgico de uma articulação entre uma política da estética e uma estética da política de um arte ligada à vida que deixa um lugar, um espaço ao trabalho do espectador (Rancière, 2008). O que tudo leva, naturalmente, à conclusão de que, na actualidade, por muito variados que possam ser, e são, os motivos para fazer cinema, o melhor deles é fazer filmes por imperativo ético, que na sua forma mais clara é também um imperativo político e estético.


Referências Bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio, Signatura Rerum – Sur la Méthode, Paris:Vrin, 2008.
ISHAGPOUR, Youssef, Le Cinéma, Paris: Flammarion, 1996.
NEYRAT, Cyril (direcção), Dans la chambre de Vanda – conversation avec PedroCosta, Nantes: Capricci, 2008.
RANCIÈRE, Jacques, Le Spectateur Émancipé, Paris: La Fabrique éditions, 2008.

Filmografia

O Sangue (1989), de Pedro Costa
Casa de Lava (1994), de Pedro Costa
Ossos (1997), de Pedro Costa
No Quarto da Vanda (2000), de Pedro Costa
Où Gît Votre Sourire Enfoui? (2001), de Pedro Costa
Juventude em Marcha (2006), de Pedro Costa
Ne Change Rien (2009), de Pedro Costa
Stars in My Crown (1950), de Jacques Tourneur


DOC ON-LINE, Revista Digital de Cinema Documentário, nº 7, Dezembro 2009.

terça-feira, 2 de março de 2010

Land of Pharaohs, A Terra dos Faraós

por Pedro Costa

HOWARD HAWKS, Cinemateca Portuguesa, Organização João Bénard da Costa.


"Turn your watch back about one hundred thousand years...
I'll meet you by the third pyramid...
Oh! C'mon!"

The B'52's

No filme Land of Pharaohs, A Terra dos Faraós, há um plano insuportável. É perto do fim, é o último plano da sequência em que a Rainha Nailla morre para salvar o seu filho, o Príncipe Zanin.
Interior, noite. No palácio do Faraó. Imóvel e nú, sentado de pernas cruzadas, o pequeno príncipe toca uma flauta que lhe fora oferecida pela Princesa Nelifer, a jovem amante do Faraó.
Concentrado como num pequeno hieroglifo, repete infinitamente a única música que a Princesa lhe ensinou: uma melodia infantil, simples e hipnótica. O ar quente da noite egípcia torna-se ainda mais lento e mais pesado. A Rainha, a mãe, prepara-lhe a cama, dobra toalhas, ouve e sorri. Não sei quanto tempo depois, um homem de pele escura e olhos a faiscar surge entre as cortinas da varanda; traz uma cesta de verga e uma cobra lá dentro; livre, o réptil desliza aos esses pela laje, encantado pela música. A mãe passa as mãos pelos longos cabelos negros e diz ao filho que já é muito tarde. A criança pede-lhe mais tempo, continua a tocar, engana-se, troca as notas e pára. A cobra pára também. Mas a música recomeça e a cobra vai-se aproximando. Quando a mãe a descobre, ela já está muito perto de Zanin. Tem pouco tempo para agir. Então passa-se uma coisa estranha: a mãe começa a avançar em direcção ao perigo repetindo, quase num murmúrio, "não pares de tocar", "é tão bonita", "não pares...". E a cadência dos passos dela é o tempo da melodia, é o rastejar da cobra. Os três tempos diferentes são agora e por longos instantes um só tempo. O plano que se segue dura dois, três segundos, menos talvez. O corpo da mãe voa na sala, impulsionado por uma força descomunal e esmaga-se sobre a cobra, ao lado da criança. A imagem desaparece no negro assim mesmo, a arder gelada.
Depois ouve-se um grito e vemos um gesto de alívio; a Princesa Nelifer respira fundo.

Tudo o que se passou neste extraordinário plano não pode ser dito. Ele não é a imagem do filme A Terra dos Faraós mas todo o filme está contido nele. A pressão do Tempo, a Morte no plano, no filme, explode-nos na cara. E a ferida que agora nos rasga já a tínhamos pressentido no passado, arranhões à flor da pele, no trabalho com as pedras, e não cicatrizará no futuro do filme que continua.
Não há remédio; não podemos deixar de ver.
Deve haver um limite para além do qual a imagem estática, frontal, ascética se torna insuportável e esse traço invisível, essa ferida, jamais poderemos deixar de a ver. O Tempo e o Espaço tão saturados, tão cheios de vazio e de tudo entram em guerra e a imagem só tem uma salvação: fazer um gesto, tornar-se criadora ou destruidora. O movimento recém-nascido será sempre belo e implacável. Howard Hawks sabia. Conhecia o segredo. Só que levou muitos anos de vida e muitos filmes para chegar a este confronto mortal.
Face a face como num duelo do seu filme seguinte.
E a face impenetrável, as ossadas vazias e pulverizadas que ele vê ao fundo dessa rua de poeiras sem defesa, interrogam-no, em silêncio. O duelo com o Absoluto, a magnífica construção que Hawks decidiu começar e acabar em A Terra dos Faraós devolveu-lhe uma violência surda e um terror cego que sempre lá estiveram, que eram dele. Um homem sonha com o Absoluto, submete-se aos ritmos cósmicos, e perde-se nele. Aquele plano que me mete medo é antecedido por um grande-plano – um dos raros grandes-planos do filme – um traveling do belo rosto da Rainha Nailla. O tempo dilata-se e comprime-se, torna-se elástico e múltiplo e a câmara de Hawks não nos ajuda a ir mais depressa. E era preciso ajudá-la porque ela sabe o segredo mas não o sabe dizer. Ela é luminosa e sombria, ela conhece a maldição ancestral, lembra-se de tudo, é ela a destruição, era preciso ir mais depressa, salvar a bela Nailla doente, morta entre os vivos. E, pouco a pouco, de repente, o medo absoluto que transparece nela, é enevoado por outra coisa ainda mais terrível: nos lábios finos desta mulher começa a nascer um sorriso muito pequeno, muito evidente; um movimento. Mas o plano não a socorre, não há impulso que a salve, que a projecte no plano seguinte. Hawks corta e monta. Quando ela voa já é outra coisa, já lá estava e começou no corte: é, num mesmo tempo e num mesmo espaço, o que é e o que já não é, o que mexia ainda agora vai parar para sempre. Exacta, fugaz e inocente. Morta entre os vivos. Desapareceu no negro e agora já não nos lembramos do seu belo rosto de esfinge. Porquê? E no entanto, longe dali, noutro tempo, há outra mulher que respira fundo, aliviada. Hawks, o homem, fez tudo o que havia a fazer nesse plano. Filmou o mais antigo e o mais moderno, a imobilidade e o movimento, o tempo imóvel. Perseguiu a fusão rebelde dos contrários, a pura beleza desesperada do gesto. Mas como nasceu aquele sorriso? Nos filmes de Howard Hawks não há suspense: espera-se a morte, corre-se para ela e basta. Num plano de Hawks ninguém entra ou sai; está-se preso e nunca se sai vivo, é tudo. Hawks trabalha arduamente para isso: constrói planos sobre planos como túmulos; gigantescos cemitérios. Mas uma pirâmide leva tanto tempo a construir... Uma ciência do pesadelo. Um homem sonha com o absoluto e perde-se nele.

A Terra dos Faraós é um longo pesadelo. É um filme negro, sufocante e perdido desde o princípio. Só lá poderemos entrar perdidos também. Hawks, meio cego e mudo como os seus arquitectos e sacerdotes, dá a mão ao seu Faraó frágil e nervoso – que como o Príncipe Mychkine, "não tem o gesto feliz" – e entram nos corredores secretos, atravessam grandes mastabas, vigiados e protegidos por grandes massas de esfinges monolíticas, alternadamente, plano a plano, à esquerda e à direita dos enquadramentos. Cá fora, à luz do Deus Rá, vistos do alto da pirâmide, eles todos, perfilados, nos castanhos e nos ocres do grande Trauner, um pouco enegrecidos pelo basalto e fulminados pela magia de Garmes e Harlan, sujos pelo tempo, pelo clima e pelo esforço, mas sempre serenos, impenetráveis, longínquos, camponeses e operários egípcios, trabalhadores do grande túmulo, artesãos das suas próprias sepulturas, em marchas longas como o Nilo, vigiados por lentas panorâmicas imóveis que não os deixam sair de campo, bem enquadrados os milhares de braços e troncos pouco humanos, em profundidade, com os perfis hieráticos, à esquerda e à direita, Osiris, Isis, Aton e as suas vozes de além-túmulo, de cinema. Nunca vamos com o Faraó pelo Vale fora; Menfis, Tebas, Heliopolis; ver os tesouros, viver as aventuras; ficam os fechados nos planos e as chaves da morte perderam-se. Uma pirâmide leva muito tempo a construir... Montagem paralela, pedra sobre pedra, as imagens dissolvem-se umas nas outras como num sonho, e tudo é pesado e real porque o tempo se vai gravando na película e daqui a pouco diremos: eles todos, estão mortos, podemos rever A Terra dos Faraós mas os figurantes egípcios já não estão vivos. Mas agora podemos vê-los dissolverem-se uns nos outros, gémeos como dois grãos de areia, grãos de tempo, egípcios-segundos, egípcios-minutos, filhos do Grande Deserto que vamos voltar a usar para fazer os nossos filmes do futuro, para esculpir o tempo. A Terra dos Faraós toma o espaço e o tempo como personagens principais: a grande pirâmide para sempre, protegendo os mortos contra os vivos. O combate de Keóps (o conflito, se preferirem) é com o tempo. Irmão do trágico Scarface, o pobre bandido da cara arranhada, o Faraó quer equilibrar-se na sua própria carcaça, podre dentro e fora; só quer voltar para casa para arrumar o seu cadáver; manter o delicado equilíbrio, atravessar outra vez as ante-câmaras de colunas altas, o precioso ponto de prumo entre a admirável postura hierática do semi-Deus e o patético trambolhão do inchado e velho Hawkins. Dar dignidade ao tempo que já falta. E então regressam as assombrações, os grandes-planos: déja-vus na sepultura lógica deste pesadelo. Num campo, o Faraó empapado em sangue, contra os anéis de ouro de uma sólida coluna; e um rosto bovino, suado e disforme; mas os olhos alarmados como os de Scarface. No contra-campo, a princesa Nelifer, aquela que, por natureza, jamais poderá descansar o seu corpo de pin-up, em segredo, no segredo do Faraó. E o que já acontecera acontece outra vez: o tempo pára e dispara, todos os ritmos são diferentes e existem no mesmo plano: o pobre olhar impotente do Faraó fixa a mulher coberta com as suas jóias e no rosto dela nasce um sorrriso. Sem saber ou poder escolher, Hawks faz o derradeiro sacrifício do cinema: não corta nem lança o plano ao negro. A voz dela desliga-se da boca, do êxtase passa ao prazer, a obscuridade obscurece-se e o rosto de Nelifer desfoca-se, perde contornos, perde Identidade.
O Faraó morre sem saber. Quem é esta mulher?
Nem quero pensar!

A Terra dos Faraós é a história de um homem obcecado em guardar o maior dos segredos mas que não sabia esconder nada ao seu amigo de infância. À imagem do seu herói, Howard Hawks perdeu-se entre o pequeno código, que toda a vida o regeu, e esse outro Grande Código do qual não sabemos se acabou por encontrar as chaves.
No Apocalipse (1.18): "Eu tenho as chaves da Morte".
No Livro dos Mortos Egípcio, um hieroglifo: "Não, tu não estavas morto quando partiste!"
De William Faulkner, argumentista deste filme: "Eles todos, perfilados sobre o fundo do verde luxuriante do Verão e a ruína do Inverno, antes que floresça de novo a Primavera, agora sujos, um pouco enegrecidos pelo tempo e pelo clima e pelo esforço mas sempre serenos, impenetráveis, longínquos, não como sentinelas, não como se defendessem com os enormes e monolíticos pesos os vivos contra os mortos. Mas antes os mortos contra os vivos, contra a angústia e a dor da raça humana. Nos bancos de jardim e nas salas de espera, há um peso de vagabundos que, se não existisse, nos transformaria em estrelas cadentes."