domingo, 26 de setembro de 2010

O NEGRO É UMA COR ou
O CINEMA DE PEDRO COSTA


João Bénard da Costa


Nos nossos dias, arte
radical significa arte sombria,
negra como a cor fundamental
Theodor W. Adorno

Méfiez-vous des roses noires
II en sort une langueur
Épuisante et l'on en meurt

Robert Desnos


The Blackness of Black



De 30 de Junho a 5 de Novembro de 2006, a Fundação Maeght de Saint-Paul de Vence organizou uma exposição, "homenagem viva a Aimê Maeght", no centenário do seu nascimento, comissariada por Dominique Païni, à época director artístico da citada fundação.

O título era o mesmo da primeira exposição organizada por Aimê Maeght em Dezembro de 1946, em Paris: "Le noir est une couleur", frase atribuída a Matisse e que em português tanto se pode traduzir por "o negro é uma cor" como por "o preto é uma cor", única língua que conheço em que os termos são rigorosamente sinónimos 1. Em 1946, a seguir à guerra, o título, sem esquecer as ruínas e os lutos, transformava-se em energia e esperança, em cor. Em 2006, após cerca de sessenta anos, a frase de Matisse quase que adquire um sentido inverso, como se, chegado o tempo de abandonar "os prazeres pueris das cores", ficasse o negro, "fogueira apagada, consumida, que cessou de arder", "fim dos fins" a que talvez se siga - quem sabe? - "o nascimento de um outro mundo" (Kandinsky).

O negro é uma cor? Longa polémica?

Durante a Idade Média, o negro foi cor interdita devido à sua associação com o demoníaco ou com a melancolia 2. Só no Renascimento o negro se afirmou como cor nos retratos de Lotto, Tiziano, Tintoretto, Dürer, Holbein, etc. Curiosamente, foi pelo realismo que o negro se introduziu. Se de negro se vestiam os reis e nobres retratados, como pintá-los diversamente? O maneirismo insinua-se por essa brecha. Fugindo ao idealismo renascentista, e em plena época da Contra-Reforma, a grande pintura devia ser a de uma dramaturgia onde as trevas e as luzes violentamente se contestassem e violentamente contrastassem. Quanto maior o negrume, maior a luminosidade. Cerca de cem anos mais tarde - as Pinturas Negras de Goya - já só o negrume, que o sono da razão gera monstros e todos somos os filhos devorados por Saturno. Goya levou às últimas consequências o tenebrismo do século precedente, ou libertou a pintura de visões de luxo, calma e volúpia? Tinha que ir dar uma longa volta pelo romantismo, pelo impressionismo e pelo simbolismo para responder e o tema do artigo impõe-me limites.

Recordo apenas três pontos capitais para esse mesmo tema:

a) O negro como cor emblemática das vanguardas mais incisivas, desde Kandinsky e Malevich às grandes obscuridades de Mark Rothko. Se há, na história da pintura do século xx, quem o tenha usado como apelo da noite, ou apelo à noite, ou como expressão da "treva mais que mística do silêncio" (as Iconostasis de Parmiggiani, por exemplo) a maior parte dos grandes pintores utilizaram-no ou como exorcismo ou como reforço da ameaça. The Blackness of Black, para citar o título de uma tela célebre de Motherwell ou a aproximação a Beckett de Judit Reigls 3.

b) O surto de novas artes figurativas (a fotografia, o cinema), de que grande parte da história só se pode fazer a preto e branco ou com tintagens posteriores, químicas ou manuais.

No caso do cinema, do advento do sonoro aos anos 50-60, a grande parte da produção é a preto e branco, tornando-o, como na profecia seiscentista de Kirscher, "a grande arte da luz e das sombras". Sobretudo o cinema americano, nos anos 40 e 50, foi, muito mais do que um cinema expressionista, como hoje errada e apressadamente se diz, um cinema nocturno e um cinema negro, alegoricamente reproduzindo o combate das luzes e das trevas, com o branco muito branco para as primeiras e o negro muito negro para as segundas. Nunca, talvez, o negro tenha sido tanto uma cor como nessa época da história do cinema.

c) Mas a partir dos anos 60 (na América) e dos anos 70 (um pouco por toda a parte) o preto e branco, no cinema (muito mais do que na fotografia, o que levaria a outra digressão) desaparece, como desaparecera, nos anos 50, o onirisco tecnicolorizado, só surgindo em casos excepcionais e por criadores que como excepção se assumiam 4. Ou seja, em épocas em que lhe coube na pintura uma primazia e um significado fundamentais (no sentido do nosso próprio fundamento) o negro deixou de ser uma cor no cinema, ou rarissimamente o foi, a não ser como efeito especial (penso por exemplo no filme de Malick, The Thin Red Line [1998]).

Sob este pano de fundo, posso passar à obra de Pedro Costa. Ou eu vejo tudo escuro ou só nesse escuro ela se deixa ver com a sua assombrosa claridade.

Sangue escuro e sarça ardente

Em 1989, aos 30 anos, Pedro Costa iniciou o seu primeiro filme, O Sangue, estreado em 1990, e que obteve, nesse ano, a Menção da Crítica de Roterdão.

Com Pedro Hestnes Ferreira e Inês Medeiros (actores típicos desses anos, actores da geração de Pedro Costa) nos protagonistas e ainda com secundários tão relevantes, na história do nosso cinema e do nosso teatro, como Canto e Castro, Luis Miguel Cintra, Isabel de Castro, Henrique Viana e Manuela de Freitas (parece o cast quase exemplar de um filme "política e esteticamente correcto" desses anos).

O Sangue começa quase de noite ou quase de dia, à hora indistinta do escurecer e do clarear. Antes de o sabermos, e durante alguns segundos é só o que sabemos, ainda não vimos ninguém. Mas já vimos negro. O negro, o muito negro, dos planos negros do início do filme. Misturados com eles, diversos ruídos: trovões, vento, motores de arranque e de desarranque. De súbito - um dos começos mais súbitos de qualquer filme, como sempre sucederia depois em filmes de Pedro Costa - vinda do escuro, a primeira personagem do filme está diante de nós. Um rapaz alto, novo, magro, com expressão obstinada. É enquadrado a meio-corpo (plano de busto) e se está diante de nós não nos olha a nós. Olha quem? A resposta não vem de nenhuma palavra mas duma mão que atravessa rapidíssima o enquadramento e lhe dá uma bofetada. Contraplano (ou novo plano?) e vemos quem deu a bofetada. Um homem baixo, de meia idade, gordo, com uma expressão perdida. Novo contraplano (ou novo plano) e voltamos a ver o rapaz. A expressão não mudou, continua a olhar o homem mais velho e não esboça nem movimento de defesa nem movimento de resposta. Seguem-se mais dois contraplanos (ou mais dois planos), o primeiro do homem olhando o imóvel rapaz, o segundo deste. Pela primeira vez, alguém fala. É o rapaz. E diz: "Faça de mim o que quiser." O ecrã volta a ficar todo escuro, todo negro.

Mas sabemos que entre aquele rapaz e aquele homem - filho e pai, como a seu tempo saberemos - se perdeu a confiança. Só a morte é tão súbita, tão preparada e tão irremediável como a confiança perdida. Diz-se "faça de mim o que quiser", mas não há qualquer doação ou qualquer entrega. Não há nada. Nada que se possa fazer. Nada que se possa dizer. Nada que se possa ver. Escuro, muito escuro.

Como é escuro, muito escuro, o acordar das crianças na noite, que se segue a esses planos (ainda antes do genérico). "Acordam no meio da noite, tomados de um súbito e invencível terror", como nos anos 50 escreveu Nuno Bragança a propósito de Il Bidone (1955) de Fellini. "Mais do que medo porque não tem objecto inteligível." "O que são as coisas e o que somos nós, no meio do verbo ser?" Este filme começa aí no meio do verbo ser, ainda não sabemos quem é Nino, ainda não sabemos quem é a miúda que dorme ao lado dele.

À época, houve muito quem se espantasse com a opção de Pedro Costa de filmar a preto e branco. Não era o vulgar brilho da pobreza nem o ardor banal da originalidade. Era mesmo, pela raridade da película utilizada e pelo recurso ao grande operador alemão Martin Schäfer, o luxo dessa produção barata. Nenhuma cor podia reproduzir o sonho ou o pesadelo que O Sangue também é. Em noites dessas não se vêem cores. Por isso não foi por modas, modernismos ou pós-modernismos que este filme é preto e branco. O preto é uma cor e essa cor é a necessidade deste filme circulatório, onde o fondu é palavra proibida. "Mes faims, c'est les bouts d'air noir", dizia Rimbaud, e podiam dizer as personagens d 'O Sangue que "bateau ivre" também é. Cercle noir sur fond blanc é um quadro de Malevitch, e se a luz se apaga e acende, como se esconde e adormece no primeiro plano d'O Sangue, efeito de surpresa semelhante ao negro inicial é o que nos dão as letras muito brancas do genérico, logo após a noite das crianças. Passou uma eternidade e dela vem, na escola, a mulher do filme, fabuloso contra-luz. Passará outra eternidade até vermos a luz do dia.

Mas Pedro Costa não inventou um novo preto e branco, como não inventou uma nova história de amor, nem uma nova história de fantasmas.

Se Nicholas Ray (o Nicholas Ray de They Live by Night, 1948) visita O Sangue é porque aquele rapaz, aquela rapariga e aquele miúdo "were never properly introduced to the world we live in". Por isso Vicente e Clara (o rapaz e a rapariga) se perguntam se os sonhos existem mesmo. A resposta é a árvore assombrada. Ou melhor, as respostas são a árvore assombrada, a dívida reclamada e o homem com um grande termómetro no chapéu. Na noite mítica do amor, Vicente e Clara descobrem-se sós e têm medo. "Estás a tremer... Pede-me coisas... Mais perto... Mais." Um tal diálogo ouvia-se pela primeira vez n'O Sangue e voltar-se-ia a ouvir na Casa de Lava, nos Ossos. Como nesses filmes, reencontramos os bichos mais famintos e mais antigos que nos restam da magia negra. Eles ofuscam a magia dos juncos e dos pântanos, ou a magia do plano final de Nino, no barco, de gorro e a olhar para nós. E reconhecemos naquele imaginário o das águas envenenadas do poço de Stars in My Crown (1950) de Jacques Tourneur (esse filme tão amado por Pedro Costa) como reconhecemos os zombies com que nos passeámos. Os ogres de Laughton, as mulheres evanescentes de Siodmak. Um dia, o Cinema foi assim, e esse dia, transfigurado, só pode voltar a esse canto da infância, a esse quarto escuro onde tudo estremece tão de dentro.

Houve quem visse no filme um lirismo desesperado e incerto que, no final, nos deixa suspensos no longuíssimo plano do olhar de uma criança navegando de estígios antigos para estígios novos. Mas as personagens escondiam algo de ainda mais terrível. Tão doces carnes ocultavam a estrutura óssea que no filme seguinte o realizador começou a desvelar. Quatro anos depois d'O Sangue (Cannes, "Un Certain Regard") Pedro Costa olhou pela primeira vez o mundo dos cabo-verdianos. O filme foi quase todo rodado na Ilha do Fogo, em Cabo Verde, onde um vulcão adormecido de quando em vez retoma actividade. Nesse filme, pela primeira vez, Pedro Costa usou a cor, que usaria, depois, em toda a obra futura. Mas usá-la-ia, sempre, nas suas dominantes negras. Não há um só plano na obra de Pedro Costa (se o há, não o recordo agora) em que as chamadas cores vivas (as "cores acidentais" de Buffon) sejam dominantes.

Algum leitor mais atento terá notado que, nos meus apontamentos sobre O Sangue, tornei quase sinónimo, não o negro e o preto de que falei na introdução, mas o negro e o escuro. Ora não são a mesma coisa. O escuro não é uma cor, mas é a origem das cores, como é também a origem do visível. Como dizia Goethe: "o olhar não vê forma nenhuma. São o claro, o escuro e a cor conjugados que fazem com que o olhar distinga um objecto do outro." "A realidade é concebida ao mesmo tempo que o olhar." 5

Se O Sangue necessitava do preto (como necessitava do branco) para a sua evocação-invocação, só nos confins das sombras há algo para ver. Do filme noir que O Sangue tende a ser, é nos ditos confins das sombras que Pedro Costa situa a obra futura. Se o negro é o primeiro grau do "escuro", as cores prosseguem, encadeadas umas nas outras nesse ritmo tenebroso.

Daí que Casa de Lava, um filme quase todo situado durante a erupção de um vulcão, seja simultaneamente um filme púrpura ("o mundo é um braseiro, tudo se incendeia" 6) e um filme negro. O fogo e o mar, ou, para melhor rodear a poderosa metáfora líquida, a lava e o mar. "Assim o amarelo, quando se alaranja pela intensidade e escurecimento, emite uma radiação avermelhada que vai aumentando. A púrpura é, por conseguinte, a luminosidade no escurecimento." Mas a sua cor contrapolar, o violeta e ou índigo, mais "luminescente" e mais escura do que o azul, vai desembocar no mesmo efeito 7.

Mas Casa de Lava não se passa só na Ilha do Fogo para onde uma rapariga (de novo Inês Medeiros) levou, de regresso à origem, um operário cabo-verdiano. O que se pode chamar o prólogo do filme - sequências em Lisboa, na construção civil - são as do acidente quase mortal (ou mortal) que o cabo-verdiano sofre. Por isso, na "sinopse oficial", Pedro Costa escreveu: "No início é o ruído, o desespero e o obscuro [sublinhado meu] [...]. Morrer quer dizer sair do Inferno [...]. Mariana, plena de vida, pensa que talvez possam escapar juntos do inferno. Acredita que pode trazer o homem morto para o mundo dos vivos. Sete dias e sete noites mais tarde percebe que estava enganada. Trouxe um homem vivo para o meio dos mortos."

Entre mergulhos na casa dos mortos e ascensão a ela, entre erupções e lavas decorrentes, Casa de Lava é um filme onde se pode passar mais facilmente da morte à vida do que da vida à morte. De que se lembrava todo o tempo em que estava morto o protagonista de Casa de Lava? "Do sangue/ do Escuro a lamber-nos/ do teu cheiro/ das tuas mãos." Neste filme que explode em ocre (vermelho púrpura) a cor do sangue é cercada por todos os lados pela cor negríssima do mar.

E se o luxo d'O Sangue, como atrás referi, fora a fotografia a preto e branco, o luxo de Casa de Lava é a presença não só, novamente, de um operador de excepção (Emmanuel Machuel) como sobretudo, no papel mais entrelaçante do filme, a presença mágica de Edith Scob, vinda de Les Yeux sans visage, de Thérèse Desqueyroux, de Judex e de Thomas l'imposteur, filmes de Franju dos anos 50-60, para revisitar simultaneamente Musidora e Christiana, voltando a ser o pássaro que esvoaça eroticamente, a mulher que dá realidade ao irreal, o outro lado das mortes e reaparições do protagonista. Filme sobre um mundo de mortos-vivos, de zombies, religa, nessa explosão do espectro das cores, os nocturnos de Tourneur com as trevas Franju. “As trevas em cor é uma coisa que eu não entendo”, dizia Franju. A partir de Casa de Lava , Pedro Costa começou a entendê-lo. E a suspender nelas o que delas emana.

A descoberta dos Ossos

A que meio social pertencem as personagens d'O Sangue, vamo-lo sabendo, a pouco e pouco, ao longo do filme. Dívidas e credores, professoras primárias, natais burgueses. Em Casa de Lava, o acidente do operário e a nacionalidade deste recordam-nos como se fazia e faz a mão-de-obra em Portugal nos anos 90. Imagens chamadas documentais viam-se neste último filme, buscadas a um filme conservado por Orlando Ribeiro 8 sobre a grande erupção do vulcão do Fogo, em 1951. Mas, para além do fortíssimo sublinhado das sequências do operário, no início de Casa de Lava, o meio social não é muito acentuado nos primeiros filmes de Pedro Costa, como o não é qualquer matriz documental. Argumentos do autor são ficções, com participação relevante de actores vários 9.

Ossos, estreado no Festival de Veneza em 1997, é o primeiro filme de Pedro Costa situado quase integralmente no Bairro das Fontainhas, que, desde então até hoje, não mais deixou de ser a morada de Pedro Costa, com a óbvia excepção do filme sobre os Straub de 2001 Onde Jaz o Teu Sorriso? ou das 6 Bagatelas que o prolongam. Ossos é o último filme de Pedro Costa onde ainda surgem alguns actores, ou melhor, algumas actrizes como Isabel Ruth ou Inês Medeiros. Ossos é o último filme rodado em película por Pedro Costa, com o mesmo Machuel de Casa de Lava. Também é o último filme com uma produção "convencional" assegurada, como no filme anterior, por Paulo Branco. Ossos é assim o mais mutante filme de um realizador associado a mutantes, embora seja certo que os intérpretes "autóctones" (Vanda Duarte) ainda não são eles próprios, como depois sempre sucederia, mas representam personagens.

O Sangue e Casa de Lava são filmes líquidos. A um e outro convêm os verbos irrompidos: brotar, manar, derivar, mesmo se é verdade que a irrupção ou a erupção alagavam e incendiavam o mais íntimo. Fosse no preto e branco ortocromático, fosse no ocre e púrpura pan- cromático, eram filmes escuros, muito mais que filmes obscuros.

Com Ossos, pelo contrário, toda a seiva parece retirada e todas as cores parecem a reverberação de uma ausência de cor original e circundante.

Ossos é um filme traçado em semifusas e o que fica é essa textura do que está para além do cerne secreto, num filme traçado em "sons agudos e palavras orantes", cortadas pelo tutano. "E é outra ossatura mais forte/ que o esqueleto comum, de todos/ debaixo do próprio esqueleto/ no fundo centro dos seus ossos." São versos de João Cabral de Melo Neto, de quem tanto me lembrei ao ver o filme, sozinho numa manhã do Monumental. A resistência dele é, em termos de João Cabral, a do "aço do osso, que resiste/ quando o osso perde seu cimento". Já imaginaram cor para esse aço ou para esse osso? São as cores que aparecem na fronteira entre o corpo e as coisas, são as cores que se adequam aos "sons agudos e palavras orantes", cores sinestésicas como as do célebre poema de Rimbaud. E, dessas cores, prevalece a vogal inicial, "o A noir", "golfes d'ombre".

"Os ossos são a primeira coisa que se vê nos corpos", disse Pedro Costa numa entrevista. Mas são também a última coisa que resta deles. O que mais me espanta neste espantoso filme é que ele vai, incessantemente, osseamente, brancamente, do mais exposto ao mais oculto, da evidência básica da nossa imagem à da desaparição dela. É um filme de corpos vivos atravessado pela morte ou por aquilo que na morte implica o desaparecimento dos corpos. É um filme de mutantes, no mais radical sentido da palavra, pois que todos uns nos outros se mudam.

Este filme suporta, simultaneamente, duas visões tradicionalmente opostas. Uma coloca em primeiro plano a realidade social que é o Bairro das Fontainhas (ou a secção dele onde vivem os protagonistas) e escancara-nos existências que João Miguel Fernandes Jorge, num texto admirável, situou num "post-humano português, se, acaso, as nacionalidades permanecerem na linguagem cifrada do replicante". E continuou: "Neste filme mostra-se como se ultrapassou um tempo histórico e social. Como a comunidade na qual nos inserimos já é outra. Como já não se situa no ponto exacto onde cada um de nós ainda a concebe. A ficção fílmica alastrou a toda a geografia portuguesa e, nisso, o filme tem também força documental."

Mas uma outra visão, que não anula nem abala esta, pode colocar em primeiro plano uma realidade fantasmagórica, se o fantasma é, como foi na pintura veneziana do século XVI (Giorgione ou o primeiro Tiziano que os grandes planos e a composição do quadro neste filme tão fortemente evocam), um ex-novo da realidade. A uma tal visão, a visão do filme reflecte a das primeiras páginas d'Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, aquelas que Rilke escreveu na Rue Toulier, em Paris, perto do Val de Grâce, hospital militar. Como Rilke, Pedro Costa viu cheiros, sons, e o medo, sobretudo o medo. Viu casas singularmente cegas. Viu bebés embrulhados em plástico ou a dormir debaixo de camas. Viu um rapaz a correr e viu-o, por três vezes, beber a água de um chafariz. Viu janelas como molduras e viu como são fortes os fechos das portas. Viu muros esburacados de inscrições, restos de graffiti políticos de antanho. Viu troncos de árvores miseráveis. Viu rafeiros a ladrar. Viu mulheres a sufocar em barracas e a aspirar andares alheios. Viu um corpo caído no chão de um hospital e viu os que não viram esse corpo. Viu um corredor enorme com muitas portas e lâmpadas amarelas. Viu frutos e miolo de pão. Viu as doenças que não deixam ficar com ninguém. Viu fogões de gás com as torneiras todas abertas, único sopro ainda possível ou jamais possível. E viu, como única contra-imagem, os ruídos, o som que escava os ossos dos corpos aguentados neles.

O "aço osso" deste filme são esses ruídos. Mas, e volta Rilke, "há alguma coisa aqui ainda mais terrível: o silêncio. Nos grandes incêndios deve haver, às vezes, também, este instante de tensão extrema. Os jactos de água apagam-se, os bombeiros deixam de subir escadas, ninguém se move. Sem barulho, uma cornija preta desloca-se, lá em cima, e uma parede enorme, atrás da qual o fogo alastra, inclina-se, sem barulho. Toda a gente fica imóvel e espera, de ombros levantados, de rosto contraído em tomo dos olhos, a terrível queda. Aqui, o silêncio é assim".

O mais terrível desses silêncios (até porque não há silêncio) é o do plano na Praça da Figueira, quando o pai, com o bebé nos braços, pede esmola para ele. Ao fundo, da estátua do rei que foi trocada e não se sabe quem é, só se vê o pedestal. E nenhum dos transeuntes com que o rapaz se cruza tem olhos, corpos enquadrados abaixo do pescoço, nenhum olhar devolvendo o olhar do protagonista.

Como o mais terrível desse ruído é o do plano (repetido) à noite nas Fontainhas, com a porta da casa aberta, as escadas e duas janelas iluminadas de amarelo, pouco antes ou pouco depois de o marido de Clotilde dizer a Tina que pode ficar entre as pernas dela como ficou entre as pernas de Clotilde.

"A morte não nos larga", diz-se a certa altura. E Ossos é também uma dança da morte em que a morte estabelece a semelhança entre as personagens e torna todas aquelas mulheres espelhos umas das outras, como se a morte as fizesse todas iguais, na véspera ou no dia seguinte de coisa nenhuma. Porque se os ossos são, em tradição cristã imemorial, a figura usada para nos lembrar que somos pó e em pó nos havemos de tornar, neste filme a metáfora desdobra-se pela insistência (grandes planos) com que nos é recordado que eles são, também, a parede contra a qual bate a morte, o limite da resistência e da vida. Ossos brancos. Ossos negros.

No quarto de Vanda e na carta de Ventura

Pedro Costa contou numa entrevista que, quando terminou a rodagem de Ossos e se deixou cair numa cadeira extenuado, Vanda veio ter com ele e perguntou-lhe se o cinema tinha que ser sempre assim, tão difícil, com tanta gente, tanto bulício, tanta maquinaria. Histórias? As histórias dela, e as histórias de tantas e tantos como ela, davam dezenas de filmes. Porque não vinha ele, ele Pedro Costa, até à beira dela, ela Vanda, e ficavam a conversar ou só os dois ou com quem lá entrasse e muita gente entrava no quarto de Vanda, quando o quarto de Vanda ainda era nas Fontainhas.

Vanda Duarte tinha sido em Ossos a mais relutante a seguir as instruções do realizador, a mais resistente às ordens do realizador. "Não havia maneira de fazê-la dizer o que eu queria nem fazê-la ir às marcas." Pedro Costa começou então a pensar - há uma entrevista em que diz a "sonhar" - "se o cinema não se fez para as pessoas dizerem o que querem dizer, para as pessoas fora das marcas". E um dia bateu à porta do quarto de Vanda e pediu licença para entrar, com uma câmara de vídeo, um tripé e três reflectores de esferovite. Durante dois anos (1998 e 1999) viveu nas Fontainhas, nas ruas das Fontainhas, na casa de Vanda e de algumas pessoas mais, no quarto de Vanda. Foram esses dois anos em que o bairro foi arrasado, supõe-se que com o louvável interesse de acabar com tais misérias, tais vergonhas, as chamadas chagas sociais. Filmou 120 horas, com umas dezenas de moradores de que ficámos a conhecer, por nome ou alcunhas, vinte e seis. Depois, aproveitou desse material 170 minutos. Passou o vídeo a 35mm. E estreou-o em Locarno, em Agosto de 2000, quase dez anos depois da primeira apresentação d'O Sangue.

No Quarto da Vanda. Também chamado "quarto das meninas". É nele que mais tempo estamos, é ele o espaço que melhor ficamos a conhecer. Mas não é todo o tempo do filme, nem todo o espaço do filme. Que espaço é esse que não é o quarto da Vanda? Fora alguns declarados exteriores, nunca sabemos ao certo se é dentro ou fora que estamos. Podem ser casas ou ruínas de casa, ou restos de casa, ou caminhos entre casas. Relentos ou abrigos. Mas fora ou dentro quase nunca se está certo, quase nunca é certo. O espaço, bem como o tempo, perdeu fronteiras no bairro e para as pessoas dele. Antigamente, diz Vanda e confirma Zita, não era assim, não foi assim. Mas como foi, quando ainda estavam orientadas, ou quando ainda estão desorientadas?

Penso naquele plano da venda das couves. "Dona, quer alfaces ou couves?" Quem é que está dentro? Quem é que está fora? Nunca se sabe bem. Há coisas que já só são o resto delas e outras que são comidas por uma escavadora amarela, que parece um animal pré-histórico e, quando actua, fica de olho vidrado, a olhar o que já consumiu. A própria ideia do "dentro" passa a deixar de fazer sentido a não ser no quarto da Vanda. "Não há remédio: não podemos deixar de ver." "Jamais poderemos deixar de ver." Mais uma vez o ecrã todo negro.

A esse negro, do outro lado do quarto de Vanda, responde o diálogo dela com Pango. Para o doce Pango aquela vida "é a vida que a gente é obrigado a ter. Parece que é já um destino, é um traço..." Vanda pergunta-lhe: "Achas?" e repete o que começa por afirmar: "É a vida que a gente quer, acho eu." Depois de ouvir a confissão daquele que saiu de casa para não fazer mais mal à mãe, "não aguentou ouvir mais nada".

Pedro Costa também não. Seguiram-se os anos dos seus filmes com os Straub, últimos anos da vida de Danièle Huillet e dos sorrisos ocultos. Numa das 6 Bagatelas (DVCam) Straub está na sala de montagem, talvez com passo mais ágil que jamais e diz a Danièle que está um dia lindo lá fora. Aqui dentro, que me adianta isso, pergunta, entre o desabafo e o amuo, Danièle. E estão jazendo dentro sempre mais dentro, sempre no negro, cor dos sepultados.

Por esses anos, os habitantes das Fontainhas saíram do bairro ou o bairro saiu deles e foram viver para horríveis prédios de horríveis imobiliárias, tentando reinventar neles o quarto de Vanda que continua a existir. Já não existe a lista amarela, lista sórdida, onde Vanda guardava a droga. A droga também já não existe, substituída pela metadona, mas, apesar de uma aparente claridade, o negro ainda é mais negro agora do que era dantes.

Estou já a falar de Juventude em Marcha, filme de 2006, o filme de Ventura, aquele que viveu um outro 25 de Abril a trabalhar na parede do Museu Gulbenkian, onde agora se podem ver dois Rubens e um Van Dyck. E há a luz coada do museu e há as cores exuberantes de Rubens, mas há sobre tudo e todos a mole negra de Ventura, esse a quem o filho pede um dia que lhe conte a carta de amor.

Para mim, Juventude em Marcha, filme de ousadia e de fidelidade, para usar termos de Pedro Costa, é o filme do homem que escreve uma carta de amor que outros homens já escreveram. É - e também Pedro Costa o disse - "a história secreta daquele corredor negro".

A 15 de Julho de 1944, Robert Desnos escreveu à mulher do campo de concentração de Flöha uma última carta, a cerca de um ano da sua morte.

Diz que lhe queria oferecer "100 000 cigarros louros, doze vestidos de grandes costureiros, o apartamento da Rua de Seine, um automóvel, a casinha da mata de Campiègne, a de Belle-Isle e um raminho de flores de cinco tostões. Na minha ausência, compra à mesma as flores, que eu tas pagarei. O resto, prometo-o para mais tarde. Mas, acima de tudo, bebe uma garrafa de bom vinho e pensa em mim." Ventura em Juventude em Marcha diz e rediz ao filho para que este nunca mais a esqueça, a carta que escreveu há trinta anos: "Eu gostava de te oferecer cem mil cigarros/ uma dúzia de vestidos daqueles mais modernos/ um automóvel/ uma casinha de lava que tu tanto querias/ um ramalhete de flores de quatro tostões/ mas antes de todas as coisas/ Bebe uma garrafa de vinho bom/ Pensa em mim." "Para contar o amor e o sofrimento do Ventura foi preciso ouvir o amor e o sofrimento de um poeta francês."

Nem Desnos nem Ventura reencontraram as mulheres. Nem Desnos nem Ventura receberam sequer resposta a essas cartas. Nem Desnos nem Ventura verão as mulheres que amaram com os vestidos que sonharam. Em lugar de tudo isso ficou aquele plano fantomático com que começa Juventude em Marcha, onde, para o saguão negro de uma ruína negra, uma mulher (a mesma? outra?) atira janela fora os restos dos pertences do marido. "Julgo que vou esquecer de mim" é a última linha da carta de Ventura. Não se esqueceu, na enganadora aparência da memória. Mas esqueceu-se no corredor escuro. De cor que era ao tempo d 'O Sangue, o negro volveu-se na ausência de toda a luz. Sobreviver é repetir incessantemente uma carta de amor ou, como Vanda, repetir incessantemente a história do dia em que deu à treva a filha.

Cá fora, no extremo de outro espectro da cor, uma cadeira encarnada, tão antiga como a carta e tão sem eco como ela. O negro é uma cor? De que cor é então o estado do mundo que, com outros cineastas, ele trajou em 2007, sob forma da caça ao coelho com pau?

Não o sei e não sei se Pedro Costa o sabe. Sei é que essa cor é a cor que nos circunda, nos novos desertos em que os quartos se perdem e as juventudes se fixam.



1. Em 1980, Manoel de Oliveira projectou adaptar ao cinema a peça teatral de Vicente Sanches O Negro e o Preto. O projecto nunca se concretizou, mas, nas referências que lhe foram feitas por comentadores estrangeiros, transparece a dificuldade de qualquer tradução. Jacques Parsi escolhe, em francês, Le Noir et le noir. Em inglês aparece The Black and the Nigger, o que desvirtua totalmente o sentido inicial. Mesmo The Black and the Dark ou Le Noir et le Sombre são coisas completamente diferentes. Nada a ver com Pedro Costa? Ver-se-á.
2. Gérard-Georges Lemaire, "La quête du noir" no catálogo da exposição referida, pp. 47-55.
3 .Pense-se, ainda, no caso da pintora húngara, na série de obras New York September 11, 2001.

4. Obviamente não estou a pensar no Spielberg de Schindler's List (1993), em que ocigarros preto e branco (aliás colorido) funcionou apenas como efeito para "o grande e horrível crime".
5. Cf. Philippe Bion, "índigo - A Papoila de Goethe" in Cinema e Pintura, Ed. Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, Lisboa, 2005, pp. 85-120; cf. sobretudo, pp. 96-102.
6. Ibid., p. 99.
7. Ibid., p. 100.
8. Orlando Ribeiro (1911-1997) foi o mais marcante geógrafo português do século xx. Professor universitário de grande prestígio, deixou uma obra vastíssima e muitas "reportagens" geográficas e fotográficas de erupções vulcânicas (Cabo Verde, Açores).
9. Embora deva ser notado que o protagonista d'O Sangue é um miúdo não-actor (Nuno Ferreira).

cem mil cigarros

OS FILMES DE PEDRO COSTA

coordenação de Ricardo Matos Cabo

ORFEU NEGRO, 2009

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Premiado em Cannes, cineasta português critica modelo hollywoodiano


Tiago Faria

Yale Gontijo



Publicação: 18/09/2010

A fala pausada, quase sussurrada, pode provocar a impressão de que Pedro Costa escolhe palavras brandas. É uma aparência enganosa. A relação que o diretor de 51 anos mantém com o cinema remete à época em que este lisboeta grisalho atuava como músico, no turbilhão do movimento punk. O discurso logo se revela tão franco e pontiagudo quanto um refrão do Sex Pistols, uma das bandas que ouvia no auge da cinefilia, enquanto atuava como músico e devorava filmes de autores como John Ford, Yasujiro Ozu e Jean-Luc Godard.

Hoje, Costa aplica o inconformismo para registrar o cotidiano de miseráveis, de imigrantes — especialmente dos moradores de Fontainhas, em Lisboa. Desde No quarto de Vanda (2000), premiado em Cannes, filma com uma mesma trupe (de não-atores) e confunde radicalmente os limites entre documentário e ficção. Os planos longos e silenciosos podem provocar desconforto — mas assistir a um filme, para Costa, também exige trabalho.

Em cartaz no CCBB com a mostra O cinema de Pedro Costa, o diretor de Juventude em marcha (de 2006, exibido na competição de Cannes) não esconde a insatisfação com o modelo industrial propagado por Hollywood. Em visita a Brasília, conversou com o Correio sobre um cinema difuso, esculpido pela convivência — obras que apontam para uma forma econômica, direta e mais verdadeira de projetar imagens em grandes telas. Sempre na contracorrente. "O mundo do cinema é muito corrompido. Não recomendo a ninguém", resume.


O senhor costuma afirmar que o seu cinema é feito de trabalho e resistência. Como essas duas forças atuam nos filmes?

Quando comecei a filmar com as mesmas pessoas, no mesmo local, ficou mais fácil pensar no aspecto prático do cinema. Parei de quebrar a cabeça com problemas estéticos e questões que talvez não tenham tanta importância. Antes, eu pensava de outra forma: imaginava o filme no meu quarto, escrevia num papel e depois aplicava aquilo que estava escrito. Era sempre eu, eu, eu. Nessa nova fórmula que encontrei, parece-me que estou próximo de um ofício. Cinema — e a arte, em geral — é uma coisa muito fechada sobre si própria e, por vezes, não dá a impressão de ser um trabalho. Costumo dizer que agora o que produzo é trabalho, não é arte. Isso tem a ver, obviamente, com resistência. A feitura dos meus filmes resiste ao padrão normal, que é sempre muito inflacionado. No cinema, há muito desperdício, muita coisa supérflua, muito trabalho em vão.

O senhor se considera autor dos seus filmes?

Uma das críticas que eu fazia a mim próprio é que, no filme, eu via mais de mim do que das pessoas que eu queria filmar. Isso acontece com muitos cineastas e artistas. Agora vou na direção contrária. Não é propriamente um apagamento, em que a coisa resulta anônima. Mas, quem sabe? Tenho muita admiração por um cinema norte-americano clássico dos anos 1940, 1950. Era um cinema B, de segunda linha. Muito concentrado, muito econômico. Aprecio os cineastas-autores. Mas sinto que, para mim, a direção mais produtiva é tentar chegar a qualquer coisa mais difusa, coletiva. Não saber quem inventou determinado diálogo… É uma mistura. Além disso, é uma forma de segurança. Meus filmes são muito ancorados na realidade. Sinto que, se filmar de outra forma, posso perder o pé. Posso passar uma espécie de fronteira que não é a realidade, e sim uma invenção.

No trabalho e na convivência com os atores, como o senhor descobre que tem um filme pronto?

Essa questão de acabar, de chegar ao fim, é mais complicada. Nos últimos filmes que fizemos, não há roteiro. Há um ponto de partida, uma colagem de várias coisas, uma ideia. Depois é uma espécie de cavalgada com contribuições de várias partes. Normalmente, as coisas se casam bem. Mas, como não há roteiro, as histórias são intermináveis. É muito vida real, e isso envolve a própria saúde das pessoas envolvidas no filme. Estamos começando um filme e temos um problema porque o ator, Ventura, está muito doente de uma maneira que, nos parece, não é passageira. A doença vai se arrastar. Ele tem menos energia, tem que ficar sentado. Isso vai determinar os filmes que vamos fazer. Pelo simples fato de que ele não pode ficar em pé. Ele será menos ativo, ficará mais deitado. Isso é uma mudança no tom. No fundo, são os limites que fazem os filmes. Eu gosto desses limites. Até preciso deles para não delirar demais.

O senhor sente que acompanhará os seus atores por um bom tempo?

Creio que sim. Por enquanto, não vejo razão para mudar de rumo. No princípio, não pensei que seria uma relação tão longa, com tantos projetos. Eu achava que só havia um Ventura, uma Vanda, uma pessoa especial. Hoje já não existe essa ideia. Todas as pessoas podem fazer um filme, todas as pessoas podem participar de um filme. Não há somente uma história para contar. Para que mudar? Eu não ficaria satisfeito fazendo filmes estando num hotel e tendo um assistente para me buscar de manhã e me levar para o set, onde os atores já estão preparados. Me sentiria um impostor. Tudo isso é muito artificial. O trabalho nesse sistema não me convence. Há muita referência, muita hierarquia, muita coisa que me impede de filmar como eu gosto. Nos filmes normais existem muitas perguntas: "Onde você quer a câmera? O que você quer comer hoje?" Não gosto dessas decisões.

Para garantir essa liberdade, usar câmeras digitais foi determinante?

Foi uma sorte. Começou a acontecer no momento em que eu queria mudar algumas coisas. É um material muito ligeiro, com um lado amador. Há um lado muito prático. No bairro em que filmamos, ao longo dos anos, as pessoas começaram a comprar câmeras iguais às minhas. Eles têm o equipamento que eu tenho e que cabe na minha bolsa. Portanto, não é nada de estranho estar filmando algo pelas ruas e passar um outro com uma câmera e dizer: "Venha filmar o casamento da minha filha, você que sabe como fazer". E eu vou. Eu sirvo para tudo. Casamento, batizado…

O senhor usaria em seus filmes as imagens produzidas pelas pessoas que vivem no bairro?

Não. Já aconteceram workshops e oficinas com os mais jovens. Só para abrir o apetite pelo cinema. Acredito que talvez entre os pequenos, os mais jovens, ainda haja esperança de um olhar menos corrompido. Mas com os outros é muito difícil. As pessoas pegam numa câmera e imitam coisas da tevê Globo, sobretudo coisas da televisão. Se eu usasse imagens como essas, não seria bom para mim nem para eles. Eu me sentiria um pouco hipócrita por que essas imagens não me serviriam.

Seu cinema seria uma reação do digital para produzir imagens muitas vezes frenéticas?

Tudo isso tem a ver com a minha formação, que é ligada a um cinema muito clássico. O cinema que acho mais forte continua sendo o dos primeiros anos. O cinema mudo, que vai de 1915 a 1930. São filmes de uma invenção extraordinária em todos os níveis. Não falo só da imagem, da plástica, mas dos sentimentos. É muito fácil provar isso. É só exibir um filme de Murnau ou de Fritz Lang para um grupo de jovens de qualquer lugar do mundo. Com certeza, eles ficarão perturbados. Não por achar uma chatice. É que é muito complicado para eles. É o contrário dessa rapidez. Os sentimentos são exacerbados. É como se fosse outro mundo. Além disso, um plano fixo pode ser mais violento e veloz do que uma câmera que não para de se mexer. Luto um pouco e resisto contra a inflação do cinema. O mais, mais, mais. É um reflexo da nossa sociedade. Por que não parar um pouco? Tudo tem um fim. Nós temos um fim. Nosso corpo tem um fim. As coisas têm limites. Eu sou por um cinema que respeita seus limites.

Do cinema comercial, se cobra filmes que agradem ao público. O cinema está muito submisso às vontades do espectador?

Fazer algo para que uma pessoa goste é muito pretensioso. Não sei. Tudo isso tem a ver com resultados, dinheiro. Acho que as pessoas têm muito medo. Esses filmes me angustiam um pouco. Há filmes que são uma contradição completa com a realidade. Não digo que são histórias em cor-de-rosa. Por vezes, pensam ser filmes sobre a realidade. Mas são contraditórios. É tudo medo. Desse mundo do cinema que eu conheço um pouco, posso dizer que não há muita coisa verdadeira. É um mundo muito corrompido. Não aconselho a ninguém.

O seu cinema não vê limites entre ficção e documentário. Existe uma resistência no cinema mundial em permitir que os gêneros se misturem?

Está cada vez pior, eu acho. Acho que isso vem até das escolas de cinemas, mesmo as respeitadas e sérias. São elas que fazem uma espécie de separação. É como dizer: "Atenção, essas coisas não se tocam. Há regras diferentes para cada gênero". É assustador. Um dia, por acaso, pude acompanhar uma filmagem de alunos da Escola de Cinema de Lisboa. A certa altura, um aluno estava enrolando um cabo e outro garoto veio ter com ele: "Não faça isso. O senhor professor disse que o diretor do filme nunca pode arrumar os cabos". Eu fiquei tão escandalizado. Nós sentimos o que é um documentário e o que é uma ficção. O que é interessante é que as duas coisas se confundam. Em qualquer realidade há ficção, há delírios. Em qualquer ficção há um fundo de realidade também. Eu nem penso muito nisso. Me limito a avançar com os filmes.

Em festivais de cinema, é comum essa separação entre os gêneros.

Em alguns festivais, me parece que as verdadeiras questões são deixadas para trás. Um dos festivais, um brasileiro, se chama É Tudo Verdade. Há outro, na França, chamado Cinema do Real, que é uma coisa inacreditável de tão estúpida. Separar os gêneros é a única questão que não me interessa quando faço um filme.

Neste momento, existe uma discussão aqui mesmo, em Brasília, sobre dividir o nosso festival de cinema brasileiro entre filmes de ficção e documentários…

Isso não deveria acontecer. Nos festivais, não deveria existir nem a divisão entre curtas e longas-metragens. Daqui a pouco teremos festivais de anões. Já existe o de direitos humanos, direitos dos cães...

O cinema português é objeto de crescente curiosidade e interesse em festivais internacionais. Existe um movimento de cineastas são casos isolados?

O cinema português é um caso bastante singular. É um país estranho, muito pequeno e periférico na Europa, sem muita tradição de cinema. Por causa da situação política, nós vivemos quase todo o século 20 sob uma ditadura. Quando eu comecei, existiam três ou quatro cineastas antes de mim. Cada pessoa era quase uma ilha. E todos com uma personalidade muito forte. O cinema comercial em Portugal sempre foi absolutamente nulo. Sempre foi cinema de autor e difícil que conquistou alguma coisa. O Manuel de Oliveira foi muito importante e continua a ser. Curiosamente, sempre houve um número de 10 a 15 cineastas muito interessantes. Por vezes melhor, por vezes pior. É um país muito ligado a poesia escrita. Os poetas e a poesia sempre tiveram muito respeito em Portugal. Um poeta em Portugal não é um doido. Tem a ver com isso: admitir que quem faz cinema também pode ser um poeta. Mesmo que não renda dinheiro. Não sei se é isso.

Nos seus filmes, o apuro estético chama a atenção. Como você chega a esse resultado com pouco dinheiro?

Sinceramente, passo muito mais tempo vivendo o filme do que em grandes pensamentos estéticos. É um processo diferente de uma filmagem normal. Os dias em que não se filma são tão importantes quanto os dias em que se filma. Quando alguém está doente, por exemplo, não podemos filmar. Então fazemos outra coisa que pode ser útil: conversamos, vamos passear… Depois, é tudo uma questão de observação. Não há um segredo estético. Somos animais de grandes rotinas. Roberto Rossellini (cineasta italiano) dizia uma coisa engraçada que não deixa de ser verdadeira: é muito fácil fazer um filme; é só chegar num determinado lugar e ver como as pessoas comem, se vestem, saem para trabalhar, qual é a língua que falam, as diferenças das pronúncias. Você junta tudo isso e o filme está pronto.



O CINEMA DE PEDRO COSTA

Até 26 de setembro, no Centro Cultural Banco do Brasil (SCES, Tc. 2, Lt. 22; 3310-7087). Hoje (sábado), às 18h, O sangue (Portugal, 1989, 95min; não recomendado para menores de 16 anos), e às 20h, Ne change rien (Portugal/França, 2009, 98min; não recomendado para menores de 12 anos). Ingressos: R$ 4 e R$ 2 (meia), para sessões em película.

http://www.correiobraziliense.com.br/

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Cem Mil Cigarros: Os Filmes de Pedro Costa / A Hundred Thousand Cigarettes: The Films of Pedro Costa, edited by Ricardo Matos Cabo (Lisbon: Orfeu Negro, 2009)

Reviewed by Sabrina Marques


A Hundred Thousand Cigarettes is an anthology, organized and prefaced by Ricardo Matos Cabo, built around the cinematic work of the Portuguese filmmaker Pedro Costa. The growing visibility of Costa's legacy – a fundamental reference point in contemporary cinema – has generated a fortunate profusion of discussions of his work. Thus, Matos Cabo gathers many authors: some of them already familiar with Costa's work, others describing the novelty of their discovery. The result is an admirable publication, bolstered by several articles, commentaries and critical notes that cross distinct registers in order to narrate "the forms of persistence and evidence of Pedro Costa's cinema, today."

In the foreword notes in this retrospective book – in fact, the first book of its kind shaped around the filmmaker – we can find a statement of objective purposes: "to cement and fix resonances of diverse magnitude, made possible by a retrospective vision of [Costa's] work, in a particular moment of critical production around it." Although this book doesn't aim to be a thesis on the reception of his films (as Matos Cabo indicates in the preface), the gathered voices seem to merge into an echo of general esteem for the filmmaker's achievement. These are dedicated attempts to explain an adventurous commitment, a poetic wandering inside a rich film universe, whose forms visibly transcend simple categorization. A formal appeal arises from the widespread zigzag of these authors' particular approaches, supported by their achronological experiences inside Costa's filmography.

The book sets its course through more than thirty texts, most of which were originally written for this collective project, signed by critics, essayists and artists from all over the world. Joining these articles is a photographic essay by Richard Dumas, titled "Family Portraits."

The title A Hundred Thousand Cigarettes comes from a love letter written by Ventura in Juventude em Marcha (Colossal Youth, 2006), where he dreams of a distant future for two, when he would be able to offer his beloved (besides much else) that many cigarettes. The letter, which Ventura never sends in Juventude em Marcha, had previously appeared in Casa de Lava (1994), among Edite's mysterious belongings. This letter's irregular calligraphy gives the book its distinctive cover. It belongs to Ventura, and he wrote it by heart for the book. Because, in every single film where these words float, the letter is never actually shown. It was, in fact, Costa who composed this document, bringing together the real letter of an immigrant worker and a letter signed by the surrealist writer Robert Desnos, the latter written sixty years before Costa's project. When asked about the strong presence of the letter in his films, Costa recognizes that he chose the poet's letter due to the circumstances that frame its origin: "Desnos wrote it when he was in a concentration camp. It's his last love letter. In fact, he knows that he's going to die – and he died. This letter always seemed to me the last letter. It fitted the film we were doing, Juventude em Marcha. Ventura had to say some marvelous things and, among them, there was this letter."

Jacques Rancière, in his text "The Politics of Pedro Costa," considers the letter's significance as a "circulation between here and elsewhere" born from the lack of concrete property, of a receiver or sender of these written, vain promises. In fact, the recurrence of this letter reflects the symbolic persistence of elements that cross Costa's work, in various enunciated aspects. Retrospectively internalized, the strength of Costa's films reinforces itself through the continuity of its icons; the common remembrance of certain sequences shows the reverberation of something permanent in his cinema.

In fact, many paragraphs would be necessary to properly comment on each one of the texts composed for this book, attending to the variety of their specific details, intense descriptions and lively arguments. The book's structure suggests, as Matos Cabo announces, a "path taken in two movements." On the one hand, "a first sequence of monographic texts that look over his work, starting with O Sangue [Blood, 1989], which is still a preliminary film, continued by the cycle begun by Casa de Lava, followed by Ossos [Bones, 1997], No Quarto da Vanda [In Vanda's Room, 2000], Juventude em Marcha and completed, for the present moment, with A Caça ao Coelho com Pau [The Rabbit Hunters, 2007]." On the other hand, there's a second group of texts that focus on "the filmmaker's working method, via notes and detailed descriptions," reflect on the "thought in action of the filmmakers Danièle Huillet and Jean-Marie Straub, in Onde Jaz o Teu Sorriso [Where Lies Your Hidden Smile?, 2001]," and introduce other dimensions of Costa's œuvre: such as his use of sound and his gallery work.

A magnificent, highly pertinent inaugural essay is signed by the recently deceased João Bénard da Costa, titled "Black Is a Color, or The Cinema of Pedro Costa" (to translate this title is already to scratch the semantic ambiguity of the Portuguese language, which this critic embraces). This sensuous and synaesthetic general approach to the work carries us to directly to color, or its absence, and places us, alternately, inside the black or the white, with the proviso that Costa's work that "has to be seen in the deep dark, for it's only in that darkness that it may be seen in its astonishing brightness."

Also part of this general stream is Andy Rector, in an article named "Pappy: The Recollection of Children," who brilliantly illuminates the fraternal meeting of Costa's exiles, indicating Juventude em Marcha to be "unique at this moment in the history of cinema for enacting the dispossessed's repossession of the cinema."

Some texts shape themselves around the particular focus on a single film, like Jean-Pierre Gorin's remarkable "Nine Notes on Onde Jaz o Teu Sorriso." The essay lyrically recalls the silhouettes of Straub and Huillet cut out from "the editing room's penumbra," indicating the poetic presence of the film's single source of light on Huillet's editing screen. An idea, subscribed to by Costa, of a "film illuminated, not necessarily inspired, by the Straubs." Gorin praises the film's "untiring interest in the sweat, the combat that it implies, giving itself to the task of making them perceptible," and underlines how essential Costa's off-screen presence is in "allow[ing] the articulation of drama" and in "obtain[ing] extraordinary live footnotes from their work."

In effect, under the aegis of an authors' reunion, there takes place a eulogistic insertion of Costa's universe inside several crystallized spectrums, among a vast range of emblematic names. His films are energetically crossed by recurrent indications of influence, many of them recognized by Costa himself. Countless parallels are drawn with the diverse names of John Ford, Jacques Tourneur, Yasujiro Ozu, Mikio Naruse, Robert Bresson, and Fritz Lang, among others. Painting is evoked as well, via astonished reports of Costa's knack of capturing portraits.

Costa's connection with Straub and Huillet acquires an obvious significance, which is particularly detailed and confronted in Tag Gallagher's text "Straub Anti-Straub." The author eloquently discusses the visible correspondence and divergence of Costa's specific manner in relation to that of Straub and Huillet.

In a deeply theoretical essay titled "'All Modern Art May Be Called Montage': On the Necessity of Art in a Materialist Context," Nicole Brenez is able to identify the materialistic and interventionist quality of Costa's work. This quality saves cinema's original proletarian provenance, taking part in a engaged pact that involves several influential names, such as Straub, often paraphrased: "The cinema is precisely for workers and peasants, it corresponds to something ... The cinema derives its impact from experiences which workers and peasants encounter daily, in their normal lives." [1] This important reflection allows us to notice the importance given to the process of dignifying humanity that can be found in Costa's cinema, led by a class's emancipation and its part in "elaborating the history of those who have no history, the workers, peasants, fighters." Proposing that "every work of art constitutes a laboratory of meaning," Brenez analyzes in detail the editing structures, devices, and experiences of Straub and Huillet as shown in Onde Jaz o Teu Sorriso.

In his accurate text "The Inner Life of a Film," Adrian Martin indicates this natural convocation of a "cinephile experience" in the presence of Costa's films, arguing that "what we see, growing in each of his films, and also across them, is a strange inner life," a multiplicative quality of persistence. Similarly, Shigehiko Hasumi, in "Adventure: An Essay on Pedro Costa," alludes to the intensity of certain sequences, a mysterious rhythm where the eye is caught: "Watching any of Pedro Costa's films grabs hold of our gaze and forces us to personally experience the motion of the film."

Philippe Lafosse, throughout an essay titled "But Why?", which is particularly organized around a searching look at the Straub-Huillet method, joins Rui Chafes (in his text "Sentenced to Life, Sentenced to Death") in meandering portraits of sincere particular experience, evoking open approaches while verbalizing the richness of sensations, preferences, and inclinations. The artist Jeff Wall also narrates immediate resonances in his "About Bones," describing the signs engraved by Costa's cinema in his own experience. This revisitation is followed by Luce Vigo's "Cape Verdeans in Lisbon: What Future?", an inspiring text expressly dedicated to evoking the full strength embodied in Ventura, the errant lead character of Juventude em Marcha.

Jacques Lemière, in "Land to Land: Pedro Costa's Portugal and Cape Verde," inserts Costa's work within the Portuguese cinematic panorama, in order to think through the symbolic consequences of Costa's confrontation with Portugal and its past and the increasing definition of his subversive consistency. To paraphrase Costa's "disenchantment" about his country is to introduce his need to escape, which led to Casa de Lava, and created the drama's forms. Lemière argues that Costa's discovery of Cape Verde (citing Costa, "the land that saved me from shipwreck") can give continuity to his subsequent work and mark the principles of a new stylistic development in his career. João Miguel Fernandes Jorge adds, in relation to Ossos, his own personal belief that "Portugal is this film, particularly: hunger, blacks and whites, undistinguishable in their common horizon of misery."

Chris Fujiwara, in his absorbing text "The Mystery of Origins," dwells on a sensory pattern dyed in red and lava, dream and desire, figurative feminine and love letters, as a molten counterpoint to the mutism of the "mutilated, sleepwalking bodies," that carry Casa de Lava's progression "at a tangent to the characters' lives, disavowing knowledge of their origins and destinations."

In "What Do These Film(s) Tell?," Bernard Eisenschitz crucially contributes a look at the less explored works of Costa, Tarrafal and The Rabbit Hunters, two films that "condense, in an exemplary mode, the formal structures and thematic orders of Pedro Costa's cinema," as Matos Cabo writes in the preamble.

Mark Peranson's text, "Listening to the Films of Pedro Costa; or Pedro Costa, Post-Punk Director" is devoted to the director's specificity in the application of music, particularly connected to reminiscences of punk, in the course of the director's self-acknowledged youthful melomania. Peranson's fundamental analysis of the narrative complexification of sound versus the depurated minimalism of images paves the way for a discussion of Costa's most recent work, Ne change rien (2009).

João Nisa signs the final notes, about a semi-invisible side of the filmmaker's work, his gallery and museum installations. The text, "From Film to Exhibition: Pedro Costa's Video Installations," shows a new freedom that follows the unplanned character of Costa's taste for prolongation and fits his "indoor concentration principle."

The more than three hundred pages of One Hundred Thousand Cigarettes conclude with a complete index of the artist's work (filmography and video installations), biographical notes on each author, and a selected bibliography. Throughout the book, the intersection of texts follows a true work of thematic crossing – the recurrence, among Costa's work, of words, gestures, feelings, objects, shots, spaces, characters. It is fascinating to experience this multidisciplinary dialogue on the modes of relation within such a universe, to understand responses and concordances, in relation to one of the most "polyphonic" genealogies known to present-day cinema.

Quotations have been sourced, where possible, from the English-language edition (hopefully forthcoming) of A Hundred Thousand Cigarettes; the rest have been translated from the Portuguese.


Sabrina Marques
© FIPRESCI 2010

Undercurrent #6

http://www.fipresci.org/undercurrent/index.htm

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Pedro Costa – Prémio Universidade de Coimbra “Este não é o meu país. O meu país é as Fontaínhas”


Por Marta Poiares e Pedro Dias da Silva


Cineasta um pouco por acaso, Pedro Costa já venceu inúmeros prémios internacionais e viu revistas como Cahiers du Cinema ou The New Yorker elegerem as suas obras como alguns dos melhores filmes da última década. Vencedor “ex aequo” da 7ª edição do Prémio Universidade de Coimbra (UC), que partilhou com o escritor Almeida Faria, Pedro Costa estreou-se no cinema em 1989, com a longa-metragem “O Sangue”, a que se seguiram “Casa de Lava” (1994), “Ossos” (1997), “Sicília” (1999), “No quarto de Vanda” (2000), “Onde jaz o teu sorriso?” (2001), “Juventude em Marcha” (2006) e “Ne Change Rien” (2009). Três têm como cenário comum as Fontaínhas. Falar de Pedro Costa é, também, falar deste bairro de lata outrora erguido em Benfica – agora deslocado para o Casal da Boba, na Amadora –, onde o realizador irá regressar, novamente, no seu próximo projecto. O que é certo é que da obra já não se distingue o realizador e nos filmes, ou fora deles, sonhos convivem com destroços e a verdade, essa, é falada de forma nua e crua.


O que é que o levou a enveredar pelo cinema?

Nada de especial. Estava quase a acabar o curso de História na universidade e já estava muito inclinado para a investigação, embora tivesse percebido que em Portugal ia ser difícil. O mais provável era que fosse parar a professor do Liceu. Em 1981, por acaso, vi um anúncio de jornal a uma escola de cinema recente, em Lisboa, e ainda que não fosse um grande cinéfilo, arrisquei. Quando vi esse anúncio, estava com um grande amigo que estudava Direito, e, perante a hipótese de virmos a ser advogado e professor, decidimos arriscar e acabámos por ficar. Na escola, havia alguns professores, aliás, um em particular, que me fez ficar, chamado António Reis. Cineasta e poeta, “prendeu-me” completamente à escola, por um lado, ao cinema e a muito mais coisas, por outro. O João Bénard da Costa foi outro desses professores importantes para a minha permanência.

Quando diz que o fizeram ficar lá, quer dizer que o incentivaram a ficar na escola?

Não. O António não era nada desse género. Nessa altura, eu andava muito metido nas coisas dos punks. Havia um pequeno mundo punk em Portugal e eu andava por aí. Também tocava. A nossa atitude era uma coisa que acho que deixou de existir: um bocadinho política por um lado, agressiva – selvagem, às vezes… –, muito provocatória. Éramos sempre do contra, cuspíamos em toda a gente, andávamos muito à pancada. Era uma atitude! E, sem querer ser muito exagerado, quando chegámos à escola de cinema com isso, aquilo produziu o seu efeito. Especialmente no António Reis, que nos disse: “Façam o que quiserem, vocês têm razão. Escrevam aí nas paredes...”. No fundo, acalmou-nos um bocado, pois vínhamos um bocado desembestados. Disse-nos para lermos alguns livros, vermos alguns filmes. Vi os filmes que tinha feito e isso foi o mais importante. Fez poucos, pois morreu cedo: Jaime, Trás-os-Montes, Ana e, ainda, Rosa de Areia. Quando vi Jaime e Trás-os-Montes, fiquei com a sensação de que existia qualquer coisa em Portugal. Até então, para mim, não existia nada, nem no cinema nem na música. Não havia ninguém atrás de nós. Falava-se um bocado de Manoel de Oliveira, mas ninguém tinha visto os seus filmes, nem sabia quem era. E depois, para nós, jovens com 20 anos, não era propriamente em determinados filmes do Estado Novo que nos revíamos… Quando penso que os jovens de hoje têm O Pátio das Cantigas e A Canção de Lisboa como modelo do Portugal de um determinado período, fico confuso. Nunca quis ser como o Vasco Santana ou o Ribeirinho. Na nossa altura, recusávamos esses modelos salazaristas. Quando vi o António Reis, percebi que era possível fazer qualquer coisa em português.

Uma vez disse que não havia “muita diferença entre os negros do Bairro e os brancos da média burguesia. É a mesma coisa, os mesmos gostos, as mesmas ambições”. Os mundos que retrata nos seus filmes são um só?

Isso tinha que ver com a normalização que vejo. Tem que ver com o que filmei nas Fontaínhas [Ossos, No Quarto de Vanda, Juventude em Marcha], um bairro de lata em Lisboa, que já não existe. Mas as pessoas existem e estão noutro lado, num bairro social. O que vi, durante o tempo que lá vivi, é que as ambições eram exactamente as mesmas, embora fosse um bocadinho mais difícil lá chegar para um negro do que para um branco, é evidente. Um plasma em cada quarto, um carro (senão dois), um salário razoável… Enfim, algum conforto. Nada disto é reprovável. Agora, quando disse isso, estava também a falar na impossibilidade das pessoas do Bairro atingirem esses sonhos. Cheguei às Fontaínhas em 1997 e ainda vou lá muitas vezes. Não conheço toda a gente, mas toda a gente me conhece. Estamos a falar numa população entre as 3500/5000 pessoas em que apenas conheço um advogado e uma pessoa que esteve quase a acabar um curso universitário.

Mas as ambições acabam por unir esses mundos, não?

As ambições são uma coisa um bocado ambígua. Acho que toda a gente as deve ter. Não é bonito estarmos aqui a dizer que o conceito de ambição é uma coisa burguesa. Devemos levar as coisas para o lado do projecto de vida, o que me fazia, e continua a fazer, muita confusão nas Fontaínhas. Toda a gente sente que grande parte da população portuguesa, e fiquemo-nos só pelo país, não tem projecto algum, não tem horizontes. Tenho muitos amigos que começam a trabalhar às cinco da manhã, vão a casa ao meio-dia, no caso das mulheres fazer o almoço ao marido, voltam a sair às duas e meia e regressam às oito da noite. Como é que alguém que tem uma vida assim pode ter algum projecto? Não pode, não consegue.

Concorda com a definição de mutantes que algumas pessoas atribuiriam às suas personagens?

Não gosto muito da palavra, do som, mas percebo. São pessoas que têm um pé cá, um pé lá. Isto no sentido positivo do termo mutante: uma pessoa que está entre duas coisas, que está em transformação. Não tenho a certeza de que seja verdade. Era verdade, talvez, até certa altura. Hoje em dia, tenho impressão que o sistema capitalista e que a própria crise que vivemos, se encarregou de matar um bocadinho essa energia. Por exemplo, sempre gostei muito de ouvir falar crioulo. Achava bonito chegar a um café, em Benfica, e ouvir uma língua que me era estranha. Hoje, ouve-se muito menos, pois está muito mais confinado aos bairros. Dava-me a sensação que existia uma espécie de expansão, de contágio, de febre, de doença mesmo, que parou. Isso aconteceu porque este sistema consegue pará-lo, está feito para isso e, provavelmente, deu uma espécie de antídoto que leva a que cada vez mais os cabo-verdianos falem português, em vez de crioulo. E cada vez ensinam menos os filhos a falá-lo, porque se falarem português têm acesso mais fácil a um emprego.

De que maneira acha que os seus filmes os afectam?

Fizemos três filmes longos, mais três ou quatro pequenos, o que é muita coisa. Não foi simples nem para mim nem para eles. Tem sido um processo de aprendizagem, de aproximação. Primeiro, acho que os filmes eram um bocadinho mais eu, via-se a minha sensibilidade. Hoje, há um equilíbrio maior entre o que está atrás da câmara e o que está à frente. Cada filme que fazemos, eles vêem, têm os DVDs, mas não vão ao cinema. Quando o filme está pronto, eles são os primeiros a quem mostro. E essa é a minha sorte, porque tenho um público, pequeno é certo, mas que ronda as 3000/4000 pessoas, o que é um ânimo muito maior do que tem qualquer outro colega meu. Mas esse público, nas primeiras projecções, tem discussões comigo e aponta críticas. Desde o princípio que temos andado um bocado nesse jogo. Eles dizem: “neste filme mostraste um bocadinho mais de ti, não nos mostraste a nós”; “aqui são coisas demasiado poéticas”; “devias falar mais, denunciar mais as nossas dificuldades, os nossos problemas”. Riposto, dizendo: “olha que eu faço isso, mas de outra maneira. Isto não são panfletos políticos, são coisas artísticas, estão um bocado mais escondidas”.
É isso que me tem dado mais prazer, não parar esta colaboração.

Como é essa colaboração, para além de haver a tal troca de ideias?

Já mudou muito. Ao princípio era uma coisa de todos os dias, muito viva e muito vivida, porque era um bairro de lata. Isto não tem nada de humanista. Há pessoas lá que me odeiam, que se pudessem davam-me uma facada e eu a eles. Fui para lá armado em “chico-esperto”, a perguntar “porque é que vocês não fazem a revolução? Porque é que não se revoltam?”, e precisei de alguns anos para perceber que não pode ser exactamente assim. As coisas são bem mais complexas. Nessa altura, éramos muito mais próximos. Não era só eu com eles, mas também eles entre eles. Hoje é diferente. Antes quase não havia família, era uma comunidade, de facto. Hoje, na Amadora, no Bairro do Casal da Boba, que é onde eles estão, está tudo separadíssimo. As portas fechadas à chave, as pessoas separadas. É uma grande tristeza e uma grande violência, sobretudo os mais novos. Vi-os nascer entre 1998 e 2000 e hoje são violentíssimos, não mostram qualquer piedade. E isto não acontece porque eles são maus. Acontece por culpa de todos nós.

Assumiu, em tempos, sentir que o seu trabalho não está completo, sublinhando que há sempre um filme que proporciona outro. É dessa eternidade de que fala – um filme dentro de um filme?

Gosto de filmes que sejam estranhos, que não se resumam a: “ele acordou e foi à casa-de-banho. Ela acordou um bocadinho depois dele e deu-lhe um beijo no pescoço. Depois ele saiu da casa-de-banho e entrou ela. Depois ele já estava vestido e meteu-se no carro...”. Acho que no momento em que ele põe o pé no chão, ao sair da cama, antes de ela acordar, se passam 2000 anos, que quando ela lhe vem dar o beijo no pescoço se passam mais 4000 anos. Isso é muito difícil de filmar e devia ser feito de maneira diferente daquilo que normalmente é.

Afirma trabalhar sobre as mudanças da sensibilidade, mais do que histórias e pessoas. Isso quer dizer que não considera o tipo de cinema que faz documental?

Não gosto da palavra documental ou documentário. Parece-me logo polícia e eu tenho horror a isso. Deve ter sido o Bairro, porque tive problemas com a polícia por estar lá. Vi coisas horrorosas... Não estou a dizer que a polícia representa “os maus”. São filhos do povo, iguaizinhos aos do Bairro, só que são formados para ser bestas. Mas, quando se fala em documentário relaciono logo com tribunal, provas, fontes históricas, uma espécie de relatório policial. O que tenho verificado é que no Bairro das Fontaínhas, ou noutro lado qualquer, a melhor maneira de documentar a cidade e as suas pessoas, é puxar para o lado dois ou três e começar a falar com eles, conhecê-los. A memória dessas pessoas não é nada factual. Há umas datas e uns nomes, mas depois há ali uma invenção, pelo simples facto da memória ser muito imaginativa. Ainda bem que é, senão era um peso desgraçado.

Garante que não tem argumento nos filmes, mas aproxima-se da ficção por fazer filmes muito controlados por si e pelos protagonistas.

As pessoas mais sérias com quem trabalhei na vida, em cinema, foram estas pessoas do Bairro. Fiz filmes antes destes que eram filmes normais. É patético ver a forma como fecham as zonas de filmagens, com fitas da polícia às riscas e com megafones a anunciar: “silêncio que vamos gravar!”. Fiz filmes desses e não conseguia deixar de me rir às gargalhadas, porque não se pode calar o mundo! Portanto, também escolhi ir para lá filmar, porque ali não há qualquer hipótese de eu dizer “silêncio”, “corta” ou “acção”. Aquilo está a andar e eu apanho o comboio em andamento. Agora, isso não quer dizer que eu e eles – no sentido em que são actores, que estão à frente da câmara e os que estão atrás dela, que também são do Bairro – não façamos um trabalho sério.

Acha que o próprio mundo é uma encenação, como escreve Adília Lopes?

Sem dúvida! Agora, em geral, o mundo é uma encenação muito má. Ou então, eu não quero entrar nessa encenação. O que senti é que, na altura, num Bairro como esse, se levasse para ali o Cinema, ia levar outra espécie de Polícia. Eu não sou a SIC, nem a TVI ou a RTP, que vi muitas vezes entrarem lá 30 minutos para falar com uma velhinha ou com um puto que acha que conhece o gajo que matou e que fugiu da Polícia. O meu trabalho é ficar lá um bocadinho mais e ver como é que aquilo funciona. Como fiz isso, percebi que aquilo é um sítio completamente explorado pelo governo, pela falta de emprego, pelo racismo, pela falta de oportunidades e até por eles próprios. Ia levar o Cinema, o dos camiões, das luzes, das câmaras? Não ia. Se fosse sério, não ia. Cheguei à conclusão que só podia fazer filmes lá como eles os aceitassem. Assim, escolhi uma forma de produção que fosse nesse sentido. Comecei a recrutar pessoas de lá para trabalhar os filmes de lá. E, simultaneamente, tentar que o Cinema não saísse enfraquecido. Tinha dois trabalhos: um era fazer o filme que eu queria, o outro era dizer-lhes: “o Cinema pode ser possível aqui”.

Luís Miguel Oliveira, jornalista do Público, chamou aos seus filmes fábulas. Consegue vê-los dessa maneira?

Com todo o respeito pelos críticos ou historiadores, não os encaro assim. E cada vez tenho menos a atitude e a vida de um cineasta. Se amanhã falar com outro cineasta português, ele certamente que lhe vai falar da psicologia, dos actores, da personagem. Isso são coisas que não me dizem muito. O meu trabalho é outro. É ir comprar uma aspirina para um gajo do Bairro; ir com ele à escola primária onde andou, pois recebeu um papel, e se eu não for com ele fica muito à rasca, porque não sabe como o fazer. E isso faz parte do filme. Tal como os mil dias em que não filmo e estou para lá a comer asas de frango e a beber grogues. Estou mesmo interessado na coisa humana e não tanto na ficção. Agora, isto não tem a ver com o documentário: não estou interessado nessa ficção. Acho que já há filmes de mais sob esse prisma.

A primeira vez que o filme Ne Change Rien foi apresentado, em Cannes, e as palavras são suas, “oito minutos exactos depois do seu início”, houve pessoas que abandonaram a sala de cinema.

Eu explico-lhe. Durante oito minutos passa-se uma coisa muito linda, com pessoas a cantar, com música e tal, e ao oitavo minuto, os músicos sentam-se e começam a trabalhar a música. E aí as pessoas percebem e pensam: “ó diacho, isto agora vai ser ver músicos a trabalhar”. Só que esse era o filme que queria fazer. Não enganei ninguém [risos].

Acha que o seu trabalho é difícil de ser entendido? Que não é para toda a gente?

O que quer que lhe diga? Que as pessoas têm muitos interesses hoje e que, quando vão ao cinema – e vão cada vez menos – querem ver, provavelmente, o que já viram? Eu não posso competir com isso.

Uma das suas marcas pessoais é filmar com câmaras digitais mini-DV. É uma forma de omitir a intervenção da mão humana?

Não. É uma forma de conseguir tocar na câmara. A máquina que utilizo pode ser comprada em qualquer lado. Quando comprei a minha, fui para o Bairro, li o livro de instruções e comecei a filmar. Eu, com as mãos. E isso mudou mesmo muita coisa. Há um lado que não mudou: a seriedade do que estava a fazer. Eu era o único responsável por aquilo ficar bem. Não havia ninguém que pudesse culpar. Acho que hoje em dia, o mundo da arte, da cultura vive muita da inflação. Verifiquei-o quando fazia os outros filmes: olhava à minha volta e via dezenas de pessoas que questionava o que é que realmente faziam. Mas, realmente, para quê? Eram nocivos ao projecto e essa inflação ia juntar-se a outras inflações orçamentais e tive muito medo que a essa inflação se juntasse uma estética ou artística. Às tantas, temos uma espiral progressiva. Se falar com alguns colegas meus, nem todos, vai ver se eles não lhe dizem que daqui a uns tempos têm que fazer um filme “mais”. Há algo que, forçosamente, tem de ser “mais”. Não digo que tenham de se fazer coisas minimais, mas acho importante que se encontre um método pessoal, que ressalve as pequenas coisas humanas.

Dizia isto mais no sentido daquilo que costuma dizer, que “é a vida que intervém no cinema e não o oposto”...

Tento que seja assim. Há qualquer coisa maior do que nós que tem de ser posta à prova e isso talvez me venha do facto de ser mais teimoso, de ser mais paciente. Não é nada que tenha aprendido na escola. Acho que a nossa cabeça não é o centro do universo, que a minha imaginação não é a coisa que faz mover o mundo. Acho que não tenho grande coisa a dizer. As minhas ideias não servem para fazer Cinema, nem pintura, nem arte alguma. Estou a ser pretensioso, mas é um desafio também.

Como é o seu método de trabalho? É conhecido por gravar em inúmeros takes.

Quando gravo no Bairro, é chegar de manhã, como se fosse o meu estúdio, o meu laboratório. Já li o jornal, andei no autocarro, fiz uma hora de reflexão… Chego lá e, pronto, já está tudo vestidinho [risos]. Já abriu o café, o sapateiro, o alfaiate, e eu vou lá, cumprimento-os, ouço as senhoras que vou encontrando… Depois, depende muito dos filmes. Quando já há um filme em andamento, já tenho pessoas à espera e vamos fazendo coisas que acho importantes. Por exemplo: “hoje gostava de fazer uma coisa sobre quando eras novo, quando a tua mãe morreu”. Portanto, quando digo: “lembras-te desse dia em que a tua mãe morreu?” e a resposta dele é “lembro-me”, sei que aquilo nos vai dar assunto para um ano. E então? São cassetes que custam cinco euros e não me importo de estar um ano a falar disso com ele, até conseguir dizer aquilo que tem a dizer.

Presumo que na fase de pós-produção tenha dificuldade em cortar…

Toda a gente tem. Mas é trabalho. No meu caso, é até arranjar uma história, porque não há guião – nunca se sabe de onde é que se vai para onde é que se vai. Facilmente se passa o mesmo tempo que se passou na rodagem. Normalmente são nove, dez meses.
É um processo difícil, mas não é nada de transcendente. É como fazer um prédio ou escrever um texto. Há que desmistificar a ideia de que no Cinema fazer isso é muito complicado.
É uma coisa que tem uns segredos artísticos que não se podem revelar, dizem alguns colegas meus. Ora, eu nunca dei por eles… [risos]

Existe uma certa tendência para rotular o seu cinema como cinema francês.

Bem, este filme [Ne Change Rien] é em francês [risos]... Tem de vir às Fontaínhas connosco para ver se é francês ou não. Enfim, tem de perguntar isso ao pessoal das Fontaínhas, quando vamos ao Festival de Cannes. A sério! Eles [os críticos] não vão, mas nós vamos. Já lá fomos com dois filmes meus e estamos lá dois ou três dias, em França, comemos e bebemos bem e depois vimos embora. E regressámos a Portugal, ao nosso mundo.

Quando diz “nós” refere-se a quem?

Sou eu, dois ou três amigos meus que fazem o som – a equipa técnica – e os actores do Bairro.

E é importante levar as Fontaínhas a Cannes?

Faço filmes para ir a Cannes, para estar lá com o [Quentin] Tarantino! E estou [risos]. Mas não é para ganhar o grande prémio, não é uma ambição minha. Não estou cá para fazer as Belas e os Paparazzos, não se faça confusão! Basta-me estar no sítio onde se está. Não é por mim, é por tudo. É por provocação, se quiser, é levar as Fontaínhas ao sítio mais improvável. Sei, e tive a prova que, em 2006 [o Festival de] Cannes pertenceu às Fontaínhas.Você vai a qualquer revista do mundo e vai ver que não foi ao Tom Ford [estilista e realizador de cinema], que estava lá, mas aos meus actores. Ele disse-me: “as pessoas mais elegantes!” – e quando ele diz elegantes, é um grande cumprimento dele às Fontaínhas, ao referir-se aos meus três rapazes e à rapariga que fizeram o que tinham que fazer e depois vieram embora.

E a crítica nacional, como a vê?

É como tudo. É um país esquizofrénico, como a gente sabe. Os nossos críticos, os cineastas e os estudantes são esquizofrénicos. Acho que é um país a brincar, de faz de conta. Não vamos ao cinema, nem há crítica de cinema, nem há Universidade para ver isso.
As coisas que realmente se vêem à nossa volta mostram que isto é pequeno…

A sua obra parece seguir a tradição lançada em Portugal por Manoel de Oliveira e António Campos, a do cinema inspirado no conceito de antropologia visual.

Isso, é preciso dizer, é uma coisa que mais ou menos não existe. Não sou muito purista. Os artistas de que gosto são os Sex Pistols ou os The Clash. Gostava muito do vocalista dos Sex Pistols, o Johnny Rotten. No cinema gosto do António Reis, do Andy Warhol, do Charlie Chaplin. Vou referir-lhe um grupo de que gosto muito, mas que foi completamente assassinado: os Nirvana. Aquilo tinha tudo: a poesia, a paixão, a política, a economia. Se for ao YouTube ver os vídeos de quando eles iam receber os prémios, verá que eles não eram parvos. Há uma intervenção, na aceitação de um prémio da MTV, em que eles dizem: “não se esqueçam do Goebbels!” (Ministro da Propaganda Nazi), como que a dizer: “tenham cuidado com as coisas que vos vendem. Nós estamos aqui no meio desta fancaria toda, mas não somos parvos”. E a música deles era extraordinária, mesmo a letra do mais banal “Smells like teen spirit” é muito bem conseguida. É muito complicado chegar àquela simplicidade. É algo que ninguém alguma vez havia feito, nem o Samuel Beckett! E isso é algo que não existe no Cinema! Não estou a arvorar que faço isso. Longe disso. Mas acredito que era preciso aspirar a isso, como eles aspiraram! Essas coisas é que nos devem guiar. Não são as Belas e os Paparazzos.

O que é que procura através do cinema?

Que haja algumas pessoas que sintam qualquer coisa. Não vou entrar naquelas pretensões habituais. Gostava muito, mas porque é que hei-de atingir milhões e milhões? Quero que, pela menos um, se sinta satisfeito. Que depois de assistir a um filme que meu, saia da sala, acenda um cigarro, e diga seja o que for. Mas que por um segundo pense naquilo que viu. Isso basta-me.

As suas obras venceram alguns prémios internacionais de cinema, tendo igualmente sido incluídas em listas de melhores filmes da década. Em Portugal é pouco (re)conhecido. Como é que explica esta situação?

Apesar de tudo, a maioria dos filmes que fiz foram feitos no Bairro das Fontaínhas.
As pessoas com quem fiz os filmes viram-nos, conhecem-nos e têm os DVDs. Falámos sobre eles e iremos fazer outros filmes. É isso que é importante. Agora, se o resto do país não quer saber… O importante é continuar a trabalhar em algo que me interessa e que lhes interesse, que lhes dê algum gozo. Nem que seja por rivalidade: “a Cova da Moura não tem filmes. Nós temos!”.

Como encara o reconhecimento além-fronteiras?

Não é bem reconhecimento. Há pessoas que vêem os filmes e outras que não. Não faço filmes para o Cavaco Silva, nem para o Sócrates! O Cavaco não é o meu Presidente da República. O Sócrates não é o meu Primeiro-Ministro. Este não é o meu país. O meu país é as Fontaínhas. Esse reconhecimento não existe. É uma coisa do jornal Público, do Expresso e dos intelectuais de Lisboa e do Porto. E aí não dá luta nenhuma, porque a minha luta é no Bairro, encarando os problemas do quotidiano. É verdade que vêem mais os meus filmes em Madrid do que em Lisboa, mas também há mais pessoas lá, a cidade é mais intensa. Até diria que a juventude é mais agressiva. Acho que a juventude portuguesa é muito mole e que o país, como eles dizem, tem um problema endémico.

O escritor e ensaísta Almeida Faria, Prémio Universidade de Coimbra ex aequo consigo, disse em entrevista à Rua Larga que “o artista que não seja um mercenário não conta com gratidões, move-se por outras razões”. Procura gratidão, por vezes?

Sou muito obsessivo. Parece que quanto mais fujo dessas coisas mais me querem puxar para lá, um bocado como com o Al Pacino n’O Padrinho, do Francis Ford Coppola. Mas isso é a doença da cultura. Acho que, tirando as pessoas das Fontaínhas e alguns intelectuais, pouca gente viu os filmes. No estrangeiro alguns viram, mas não terão sido muitos.

Não é essa a informação veiculada…

Gostava que fossem muitos. Mas há reconhecimento e conhecimento. São duas coisas distintas. É como a História: há o Carlos Magno, a Inês de Castro ou o D. João II e, depois, há saber o que são. Como o Charlie Chaplin: já apanhei críticos de Cinema, quando falo dele, que dizem “maravilhoso”, e depois faço umas perguntas mais puxadas sobre determinado filme e percebo que eles viram umas fotografias do Chaplin com um cão, com um miúdo ou em frente à barbearia. Não viram o filme, viram uma fotografia e pensam que viram o filme. E isto acontece muito hoje: tem-se um índice, um sumário e acha-se que é suficiente.

Pela primeira vez, na 7ª edição do Prémio UC, foi premiado um cineasta. Na sua opinião, considera o cinema uma arte subvalorizada em Portugal?

De certa maneira, sim. Portugal é um país muito marcado, que ainda não teve tempo de se libertar do séc. XX, um período muito manhoso, muito chato. Eu vivi um bocado isso. Para se conseguir juntar 300 pessoas para protestar ou reivindicar alguma coisa, é uma loucura. Isso parte-me o coração. Basta olhar para a Catalunha, ou para Valência e, se há um problema, juntam-se 6000 pessoas de repente e, se for preciso, partem uma esquadra de polícia. É irracional, eu sei. Mas cá, antes de se fazer alguma coisa, vamos beber uma cerveja e: “ah, o meu pai”; “ah, a minha carreira”; “ah, o dinheirinho”; “ah, o meu carro”. Tudo bem, mas é uma data de gente e é preciso passar à acção.

Em que projecto está actualmente a trabalhar?

Num projecto no Bairro – não nas Fontaínhas, mas no sucessor, o Casal da Boba. Vou tentar fazer alguma coisa com os mais novos, que não têm qualquer consciência do que era um bairro da lata, nem em que condições os seus progenitores viviam. Mas que, por outro lado, representam um futuro, em que são miúdos mais violentos. São a parte que passa à acção, a parte que mata polícias e os portugueses brancos não gostam. Gostava de conseguir expor a verdade que existe ali, que, na sua relatividade, não deixa de ser verdade...

Não sente necessidade de se despedir do Bairro?

De vez em quando, sim. Tenho de sair do Bairro, porque aquilo é pesado. O Ne Change Rien aconteceu-me, porque foi um projecto especial. E espero que me aconteçam mais. É só nos intervalos. Aquilo é como um casamento: às vezes temos de cometer umas infidelidades.



Revista Rua Larga (Universidade de Coimbra); Nº 29
A Cinema of Refusal: On Pedro Costa

Akiva Gottlieb

August 11, 2010

This article appeared in the August 30/September 6, 2010 edition of The Nation.

Art transcends, but packaging is important. It speaks to the power of Pedro Costa's cinema that I'm willing to admit my mixed feelings about the Criterion Collection's release of the four-disc Letters From Fontainhas box set. This smacks of ingratitude, I know. I have no qualms about the 51-year-old Portuguese auteur being elevated to the top shelf with Ozu, Bresson and Tarkovsky, and I can set aside, for a moment, the fact that Letters From Fontainhas marks the first DVD release of Costa's work, which has never been screened in the United States outside the festival and retrospective circuit. But for an artist who treats the balance of form and content as a moral imperative, the gorgeous, fully loaded Criterion treatment seems discordant. Walter Benjamin feared that someday the rich would hang bankable portraits of starving children on their walls. Are Costa's stark, rigorous films about the impoverished denizens of Lisbon's Fontainhas district at risk of becoming collector's items?

The box set contains the trilogy Ossos (1997), In Vanda's Room (2000) and Colossal Youth (2006), a series of works inordinately concerned with the conditions of their creation. In the key sequence of Colossal Youth, Costa's metaphysical epic, a meticulously composed still-life shot of a table in a tumbledown shack cuts to an extravagantly colorful Rubens painting, seemingly lighted from within, hanging inside Lisbon's Calouste Gulbenkian Museum. Costa is not making a glib distinction between misery and splendor but contrasting two forms of beauty. In the first shot, which takes place about thirty years in the past, the viewer hears the busy soundtrack of the outside world, while the second presents high art (and an image of an even more distant past) in its silent, hermetically sealed safety zone. In the tableaus that follow, Costa presents two characters framed alongside the paintings and furniture of the museum, and they hardly seem out of place. One of them, Ventura, an older man playing a version of himself, recalls when, as a young Cape Verdean immigrant in Lisbon, he worked to construct the walls of this museum. With pride and defiance, Ventura carries himself like an owner, not an intruder. Nevertheless, he is made to exit through the back door.

Doors and walls are the central motif in Costa's work, and the barriers to entry are manifold and varied. I consider myself a hardened viewer of European art cinema, but the first time I tried to watch Colossal Youth, I fled the screening after an hour, unable to negotiate the narrative lapses or withstand the film's stasis. The Guardian's Peter Bradshaw called Costa "the Samuel Beckett of world cinema," which seems like a contradiction in terms; but Costa's films plainly do resist the easy grasp, refusing to distinguish between fiction and documentary, artifice and naturalism, splendor and ugliness. (Blessedly, the box set of these films demonstrates Criterion's commitment to his aesthetic by leaving untouched the image pixelation in scenes of extreme darkness.) And yet, rather than Beckett or Warhol, Costa sees himself working in the tradition of the most classical studio auteurs. At the Tokyo Film School in March 2004, he described Chaplin, Griffith, Mizoguchi and Ozu as "the greatest documentary directors, and thus the greatest directors of life, of reality":

They are the directors who hide things, who close the doors, and you can open them, sometimes. Yet, to open the doors of such films is difficult, dangerous—it's work. Sometimes when we think that we're going to show everything, that we make a documentary to show everything, in fact we don't show anything, we don't see anything; we're just scattered. It's absolutely necessary that you must be outside, not on the screen. Never cry or suffer with the character who suffers on the screen, never.

This strict ethical standard forms the blueprint for a cinema of refusal. Costa shows us the Lisbon museum as well as the hands that built it, but not as a way of explaining that art is built on tragedy; instead, he is asking us to incorporate the art outside the frame of the picture. When Costa first took Ventura to the museum, the older man was as impressed with the walls as with the valuable canvases. "He's moved that his walls have Rubens and Rembrandts," Costa said. "But he kept looking behind the paintings." With the release of the Criterion box set, Costa's work has been officially absorbed into the High Art frame, though I trust the precision of its rhetoric will force viewers to reconsider the doors and walls that contextualize its every significant image.

Costa is not exactly in need of a champion. Recently honored with complete retrospectives at London's Tate Modern and Manhattan's Anthology Film Archives, he is, at least among the writers and readers of Cinema Scope, Cahiers du Cinéma and Film Comment, the most widely heralded new filmmaker of the past decade, and the one making the most humanistic and unyielding use of digital gadgetry. But the Criterion release, which enshrines the Fontainhas project while also bringing it to a wider audience, is a true test of the paradox that anchors these films: the idea that a cinema of closed doors is the most democratic use of the form imaginable.

In his early years, Costa was on track to become a more conventional kind of great filmmaker. His 1989 debut, O Sangue (The Blood), is a swooning black-and-white facsimile of, at various moments, a Nicholas Ray teen romance and a Jacques Tourneur thriller. A simple story of two young brothers reckoning with their absent father's debts, O Sangue is a chiaroscuro fever dream; one sequence of young love in bloom, scored to The The's New Wave anthem "This Is the Day," is easily the most romantic in Costa's oeuvre. But as Artforum's James Quandt notes, the film "was also something of a false start, in the sense that its dreamy, nocturnal tone, conspicuous cinephilia, and showboating camera work did not establish Costa's true path." This false start would have represented a career achievement for almost anybody else.

Costa's next film, Casa de Lava (Down to Earth), from 1994, pays a narrative debt to Tourneur's I Walked With a Zombie while establishing its own strange postcolonial cinematic language. Costa claims that the project stemmed from Portugal's absorption into the European Union and subsequent reactionary turn, an ideological shift that led to the privatization of national television and the evaporation of national film funding. Costa collected a small amount of private capital and decamped to a volcanic island in Cape Verde, the archipelago and former Portuguese colony off the coast of Senegal. With a cast of professional actors and island natives, he made an elliptical, deeply mysterious ghost story about a Lisbon nurse who accompanies a comatose, perhaps zombified immigrant laborer on his return home. The nurse, seeking an escape from an oppressive urban environment, finds the island and its inhabitants in a state of purgatory, neither emotionally bound to Portugal nor fiercely independent. "Everyone wants to leave," we are repeatedly told, but the women who anchor the island community seem unmovable. There is enchantment but also confusion, and Costa's technique mirrors the protagonist's dysphoria: his camera takes unambiguous pleasure in the landscape while maintaining emotional distance from the characters.

Arguably, the key drama of Casa de Lava occurred off camera. Knowing that the filmmaker was headed back to Europe, Cape Verde residents asked Costa to deliver letters and gifts to friends and relatives living on the outskirts of Lisbon. It was while making these deliveries that Costa discovered Fontainhas, a slum of dark alleys and crowded homes that appealed to him aesthetically, and whose people—most of them Cape Verdean immigrants—disarmed him with their directness and fortitude. His exposure to this dilapidated sector of Lisbon also prompted him to once again re-examine his approach. The philosophically ambitious films of the 101-year-old Manoel de Oliveira, an influential formalist and Portugal's best-known cinematic export, render Lisbon as a cradle of high culture populated by the idle rich. Costa—who, it should be said, looks every bit the highbrow aesthete—wanted to affirm the existence of the dispossessed, and began refining his form to match the starkness of a human struggle seemingly hidden from view.

In Ossos, the first film in Costa's Fontainhas trilogy, the camera almost never moves. It feels heavy, weighted down, a mechanical analogue to the seemingly narcotized principal characters—played almost entirely by nonactors—who spend a considerable amount of time staring fixedly into space. It helps that Costa, who has the eye of a silent film director, discovered some of the most expressive faces I've ever seen on-screen. Vanda Duarte, the film's lead performer and Costa's subsequent muse, is marked by a kind of soulful self-possession, no matter how haggard her surroundings. The title, translated as "Bones," refers both to the drastically scaled-down manner of production and the emotional strength of the film's women, who look thin but seem unbreakable.

The film also demonstrates a remarkable lack of condescension toward the poor. One character, an unemployed teenage father whose partner has recently given birth, is a singularly pathetic figure. He uses his baby to leverage pity; rarely opens his mouth except to blame others; and acts like a dead weight, literally: in two separate scenes he collapses onto a bed like a blunt, inanimate object. When Costa's camera isn't quietly observing the women in the dark rooms of Fontainhas, it follows this father through the streets of Lisbon as he tries to exchange the baby for cash. He seems beyond help—he feeds the baby milk received as charity, and a few moments later is seen rushing the child to the hospital—but Costa cannot help but grant him a moment of vulnerability. He leaves the baby on a couch in a brothel, walks away and turns back once, quickly, before breaking into a trot and descending the stairs. That quick backward glance is, in Costa's minimalist order, weighted with moral significance. For a split second, the father registers as something other than numb dead weight. Then he moves on.

Shot on 35-millimeter film by Emmanuel Machuel, who worked with Robert Bresson and Maurice Pialat, Ossos is a slow, immersive experience. Some of the film's Bressonian flourishes—its focus on fragmented objects, doors, locks and keys—seem predetermined, unafraid to stand nakedly as metaphors. Costa also loads the film with peculiar alienation effects. The two female protagonists are each provided a doppelgänger who hovers on the margins of the story, sometimes offering a comment but mostly watching silently. If we attempt to identify with the central figures, we also have to consider those who, like the audience, are only here to watch. Even so, the vividness of the film's portraits points toward a further refinement of craft. The film ends with a young woman closing a window, as if to say, That's enough; I permit you to come no farther. Pointedly, the clamorous noises of the neighborhood continue playing on the soundtrack as the credits roll. This story isn't over.

Costa considered Ossos a dead end. He saw himself and his crew as intruders in a residential community—shining bright lights after dark, exercising power over the powerless. He became fully attentive to the moral considerations of what it means to bring a camera into another person's private sphere. He decided he wasn't done with Fontainhas, even if Lisbon had consigned it to the dust heap, having opted to begin destroying the neighborhood as part of a slum clearance initiative. At the invitation of Vanda Duarte—who asked him, cryptically, to "stop the faking"—Costa took a Panasonic DV camera to Fontainhas; for more than six months, every day and on his own, he collected 180 hours of footage for a kind of performative documentary about the women and men living outside the margins of Portugal's official history. The monastic In Vanda's Room—the title is a rebuke to Ossos's closed window—represents Costa's orthodox attempt at what Wallace Stevens called "the poem of pure reality."

Digital video has enabled Michael Mann to become more fleet-footed, David Lynch more esoteric and Aleksandr Sokurov able to pull off at least one monumental stunt. Costa uses it to reduce his footprint to the point where it becomes a constant, invisible presence. Though In Vanda's Room is shot with the lightest possible equipment, the camera still does not move. Here Costa operates in a kind of primitive mode where the simplicity of means—one camera, a few mirrors, natural light—facilitates a series of stark visual epiphanies. Costa has called this tendency "reactionary," but the results couldn't feel more radical. American minimalist James Benning has adopted digital technology to stretch his fixed camera shots to an almost interminable length; his recent Ruhr features an unbroken sixty-minute take of an industrial coke plant. Costa also tests the power of the extreme long take, but whereas Benning forces the viewer's gaze onto landscapes and industry, in order to invite all manner of theoretical and political questions about the nature of image, Costa challenges the spectator to engage with human beings in claustrophobic settings for uncomfortably long stretches, and they're exactly the types of people we'd cross the street to avoid. In doing so, he has become digital cinema's first material humanist.

With the thuds and groans of wrecking balls and bulldozers dominating the soundtrack, the nearly three hours of In Vanda's Room depict the last gasps of a Fontainhas district preparing for dispossession. Opening with a shot of its protagonist inhaling heroin, passing it to her sister, then letting loose her trademark hacking cough, In Vanda's Room is the loud and unrelenting cousin to the mannered quiet of Ossos. In the earlier film, drug use is carefully elided; in Vanda the paraphernalia of self-destruction is omnipresent. Digital video mostly sharpens the oppressiveness of the atmosphere, isolating the flies and insects, and the flatness of the imagery echoes the flatness of the dialogue. Crucially, digital video also allows Costa to shoot in extreme darkness: some scenes are so inadequately lighted that the bright white subtitles seem jarring. (In Costa's films, materiality is always in the way.) It seems strange to designate as beautiful an experience this forbidding; but as Cyril Neyrat notes, this is "not a cosmetic beauty but one that is caustic and critical—a beauty that allows us to see, hear, and feel the strengths and weaknesses, the pride and shame, the despair and the life that resists and rises up against destruction and annihilation."

Lacking establishing shots or a bird's-eye view, this remarkable work is very much a representation from within; and the story, such as it is, depends on the whims of Lisbon's municipal wrecking crew. There are robberies, arrests and deaths, but they all happen off-screen. Not entirely unlike the principal characters, we are simply stuck where we are (until where we are ceases to exist). Vanda's room is a kind of public forum where addicts gather to air grievances and boast about their hematomas, but their quotidian banter always pivots on one basic question: do we have agency or not? "This is the life we want, doing drugs," Vanda asserts, with a characteristic lack of self-pity that leads filmmaker Thom Andersen to view the film as Costa's remake of Rio Bravo, the classic Howard Hawks western about a ragtag band of misfits standing their ground in a single room to fight off the encroachment of the outside world. (In this comparison, Vanda presumably embodies both John Wayne's gunslinger and Dean Martin's drunkard.) But the paradox of In Vanda's Room is that the bulldozers, those machines of destruction, will be a merciful deus ex machina. Until their walls are knocked down, Vanda and her peers remain trapped in their own decay. The circular logic of these addicts offers no room for exit; using is unsustainable, but withdrawal sounds even more frightening. Prison is supposed to be rock bottom, but how would it look any different from Fontainhas?

Colossal Youth is similarly designed to frustrate easy assumptions about the relationship between the destitute and free will. Also shot on digital video in static long takes, the film follows the relocation of members of Costa's Fontainhas stock company from their ghost town to a comparably pristine public housing complex. Vanda now looks weathered almost to the point of unrecognizability, but she's ditched heroin to take on motherhood and now subsists on a healthier diet of methadone and trash television. When Ventura is taken to his new apartment by a civil servant, we expect him to graciously accept what looks like a rare gift. Instead, he complains about its size and points to a couple of spiders on the bright, sterile white walls. This is the same Ventura, remember, who drapes himself across the Gulbenkian Museum's furniture like a king accustomed to luxury. When confronted with a door that opens and closes without a sound, he looks puzzled; for someone accustomed to the clamor of Fontainhas, silence is immediate cause for suspicion.

In this heavily stylized production, the dazed, unreliable and somehow majestic Ventura has set about finding and gathering his "children"—a collection of grown-up townspeople, Vanda included, who depend in some way on the older man's wisdom. The film's centerpiece is a love letter dictated by Ventura to an illiterate, heartbroken young friend; the letter gets repeated around ten times, gaining, losing, then earning back its totemic significance. If the letter can never be written down, then the recitation must keep the sentiment alive. Part Odyssey, part John Ford western, Colossal Youth contends that the men and women of Fontainhas are not only worthy of narrative representation but also heroes of a complicated epic history. (The film's Portuguese title translates as "Youth on the March," echoing an old revolutionary slogan, and the plot refers obliquely to Portugal's leftist military coup of April 1974.) Was not Odysseus' saga also one of migration and displacement, passed down as a remembered poem from generation to generation? Ventura, who at the beginning of the film is exiled from his home at knifepoint by his wife, Clotilde, "or a woman who looked just like her," is constantly confusing names and identities, as the albatross of historical memory threatens to slip from around his neck.

Colossal Youth is a near-perfect synthesis of Costa's romantic and realist modes. With added confidence in the capabilities of digital video, he manipulates his sources of light so that objects and faces radiate an energy otherwise missing from the landscape. Costa seeks to humanize, to find the monumental in the quotidian, but the more radical gesture is his consciousness of the collateral damage the artist leaves in his wake. Can his answer to irreparable urban decay, to the hardship of women and men who are likely still alive and struggling, really be to ask us to pay $79.95 for a DVD box set? If Beckett spoke to a universal malaise, Costa skirts the boundaries of social anthropology. This particularity is part of the problem. If we thought we could help, we know exactly where these people are. We even know their names. As technology offers novel ways to bring otherwise segregated populations into the same headspace, one wonders just how close you can get and still remain an outsider. Costa has handed the world a slum in a box. He also gives us its beating heart. Which is the heavier burden?


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