quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Pedro Costa – Prémio Universidade de Coimbra “Este não é o meu país. O meu país é as Fontaínhas”


Por Marta Poiares e Pedro Dias da Silva


Cineasta um pouco por acaso, Pedro Costa já venceu inúmeros prémios internacionais e viu revistas como Cahiers du Cinema ou The New Yorker elegerem as suas obras como alguns dos melhores filmes da última década. Vencedor “ex aequo” da 7ª edição do Prémio Universidade de Coimbra (UC), que partilhou com o escritor Almeida Faria, Pedro Costa estreou-se no cinema em 1989, com a longa-metragem “O Sangue”, a que se seguiram “Casa de Lava” (1994), “Ossos” (1997), “Sicília” (1999), “No quarto de Vanda” (2000), “Onde jaz o teu sorriso?” (2001), “Juventude em Marcha” (2006) e “Ne Change Rien” (2009). Três têm como cenário comum as Fontaínhas. Falar de Pedro Costa é, também, falar deste bairro de lata outrora erguido em Benfica – agora deslocado para o Casal da Boba, na Amadora –, onde o realizador irá regressar, novamente, no seu próximo projecto. O que é certo é que da obra já não se distingue o realizador e nos filmes, ou fora deles, sonhos convivem com destroços e a verdade, essa, é falada de forma nua e crua.


O que é que o levou a enveredar pelo cinema?

Nada de especial. Estava quase a acabar o curso de História na universidade e já estava muito inclinado para a investigação, embora tivesse percebido que em Portugal ia ser difícil. O mais provável era que fosse parar a professor do Liceu. Em 1981, por acaso, vi um anúncio de jornal a uma escola de cinema recente, em Lisboa, e ainda que não fosse um grande cinéfilo, arrisquei. Quando vi esse anúncio, estava com um grande amigo que estudava Direito, e, perante a hipótese de virmos a ser advogado e professor, decidimos arriscar e acabámos por ficar. Na escola, havia alguns professores, aliás, um em particular, que me fez ficar, chamado António Reis. Cineasta e poeta, “prendeu-me” completamente à escola, por um lado, ao cinema e a muito mais coisas, por outro. O João Bénard da Costa foi outro desses professores importantes para a minha permanência.

Quando diz que o fizeram ficar lá, quer dizer que o incentivaram a ficar na escola?

Não. O António não era nada desse género. Nessa altura, eu andava muito metido nas coisas dos punks. Havia um pequeno mundo punk em Portugal e eu andava por aí. Também tocava. A nossa atitude era uma coisa que acho que deixou de existir: um bocadinho política por um lado, agressiva – selvagem, às vezes… –, muito provocatória. Éramos sempre do contra, cuspíamos em toda a gente, andávamos muito à pancada. Era uma atitude! E, sem querer ser muito exagerado, quando chegámos à escola de cinema com isso, aquilo produziu o seu efeito. Especialmente no António Reis, que nos disse: “Façam o que quiserem, vocês têm razão. Escrevam aí nas paredes...”. No fundo, acalmou-nos um bocado, pois vínhamos um bocado desembestados. Disse-nos para lermos alguns livros, vermos alguns filmes. Vi os filmes que tinha feito e isso foi o mais importante. Fez poucos, pois morreu cedo: Jaime, Trás-os-Montes, Ana e, ainda, Rosa de Areia. Quando vi Jaime e Trás-os-Montes, fiquei com a sensação de que existia qualquer coisa em Portugal. Até então, para mim, não existia nada, nem no cinema nem na música. Não havia ninguém atrás de nós. Falava-se um bocado de Manoel de Oliveira, mas ninguém tinha visto os seus filmes, nem sabia quem era. E depois, para nós, jovens com 20 anos, não era propriamente em determinados filmes do Estado Novo que nos revíamos… Quando penso que os jovens de hoje têm O Pátio das Cantigas e A Canção de Lisboa como modelo do Portugal de um determinado período, fico confuso. Nunca quis ser como o Vasco Santana ou o Ribeirinho. Na nossa altura, recusávamos esses modelos salazaristas. Quando vi o António Reis, percebi que era possível fazer qualquer coisa em português.

Uma vez disse que não havia “muita diferença entre os negros do Bairro e os brancos da média burguesia. É a mesma coisa, os mesmos gostos, as mesmas ambições”. Os mundos que retrata nos seus filmes são um só?

Isso tinha que ver com a normalização que vejo. Tem que ver com o que filmei nas Fontaínhas [Ossos, No Quarto de Vanda, Juventude em Marcha], um bairro de lata em Lisboa, que já não existe. Mas as pessoas existem e estão noutro lado, num bairro social. O que vi, durante o tempo que lá vivi, é que as ambições eram exactamente as mesmas, embora fosse um bocadinho mais difícil lá chegar para um negro do que para um branco, é evidente. Um plasma em cada quarto, um carro (senão dois), um salário razoável… Enfim, algum conforto. Nada disto é reprovável. Agora, quando disse isso, estava também a falar na impossibilidade das pessoas do Bairro atingirem esses sonhos. Cheguei às Fontaínhas em 1997 e ainda vou lá muitas vezes. Não conheço toda a gente, mas toda a gente me conhece. Estamos a falar numa população entre as 3500/5000 pessoas em que apenas conheço um advogado e uma pessoa que esteve quase a acabar um curso universitário.

Mas as ambições acabam por unir esses mundos, não?

As ambições são uma coisa um bocado ambígua. Acho que toda a gente as deve ter. Não é bonito estarmos aqui a dizer que o conceito de ambição é uma coisa burguesa. Devemos levar as coisas para o lado do projecto de vida, o que me fazia, e continua a fazer, muita confusão nas Fontaínhas. Toda a gente sente que grande parte da população portuguesa, e fiquemo-nos só pelo país, não tem projecto algum, não tem horizontes. Tenho muitos amigos que começam a trabalhar às cinco da manhã, vão a casa ao meio-dia, no caso das mulheres fazer o almoço ao marido, voltam a sair às duas e meia e regressam às oito da noite. Como é que alguém que tem uma vida assim pode ter algum projecto? Não pode, não consegue.

Concorda com a definição de mutantes que algumas pessoas atribuiriam às suas personagens?

Não gosto muito da palavra, do som, mas percebo. São pessoas que têm um pé cá, um pé lá. Isto no sentido positivo do termo mutante: uma pessoa que está entre duas coisas, que está em transformação. Não tenho a certeza de que seja verdade. Era verdade, talvez, até certa altura. Hoje em dia, tenho impressão que o sistema capitalista e que a própria crise que vivemos, se encarregou de matar um bocadinho essa energia. Por exemplo, sempre gostei muito de ouvir falar crioulo. Achava bonito chegar a um café, em Benfica, e ouvir uma língua que me era estranha. Hoje, ouve-se muito menos, pois está muito mais confinado aos bairros. Dava-me a sensação que existia uma espécie de expansão, de contágio, de febre, de doença mesmo, que parou. Isso aconteceu porque este sistema consegue pará-lo, está feito para isso e, provavelmente, deu uma espécie de antídoto que leva a que cada vez mais os cabo-verdianos falem português, em vez de crioulo. E cada vez ensinam menos os filhos a falá-lo, porque se falarem português têm acesso mais fácil a um emprego.

De que maneira acha que os seus filmes os afectam?

Fizemos três filmes longos, mais três ou quatro pequenos, o que é muita coisa. Não foi simples nem para mim nem para eles. Tem sido um processo de aprendizagem, de aproximação. Primeiro, acho que os filmes eram um bocadinho mais eu, via-se a minha sensibilidade. Hoje, há um equilíbrio maior entre o que está atrás da câmara e o que está à frente. Cada filme que fazemos, eles vêem, têm os DVDs, mas não vão ao cinema. Quando o filme está pronto, eles são os primeiros a quem mostro. E essa é a minha sorte, porque tenho um público, pequeno é certo, mas que ronda as 3000/4000 pessoas, o que é um ânimo muito maior do que tem qualquer outro colega meu. Mas esse público, nas primeiras projecções, tem discussões comigo e aponta críticas. Desde o princípio que temos andado um bocado nesse jogo. Eles dizem: “neste filme mostraste um bocadinho mais de ti, não nos mostraste a nós”; “aqui são coisas demasiado poéticas”; “devias falar mais, denunciar mais as nossas dificuldades, os nossos problemas”. Riposto, dizendo: “olha que eu faço isso, mas de outra maneira. Isto não são panfletos políticos, são coisas artísticas, estão um bocado mais escondidas”.
É isso que me tem dado mais prazer, não parar esta colaboração.

Como é essa colaboração, para além de haver a tal troca de ideias?

Já mudou muito. Ao princípio era uma coisa de todos os dias, muito viva e muito vivida, porque era um bairro de lata. Isto não tem nada de humanista. Há pessoas lá que me odeiam, que se pudessem davam-me uma facada e eu a eles. Fui para lá armado em “chico-esperto”, a perguntar “porque é que vocês não fazem a revolução? Porque é que não se revoltam?”, e precisei de alguns anos para perceber que não pode ser exactamente assim. As coisas são bem mais complexas. Nessa altura, éramos muito mais próximos. Não era só eu com eles, mas também eles entre eles. Hoje é diferente. Antes quase não havia família, era uma comunidade, de facto. Hoje, na Amadora, no Bairro do Casal da Boba, que é onde eles estão, está tudo separadíssimo. As portas fechadas à chave, as pessoas separadas. É uma grande tristeza e uma grande violência, sobretudo os mais novos. Vi-os nascer entre 1998 e 2000 e hoje são violentíssimos, não mostram qualquer piedade. E isto não acontece porque eles são maus. Acontece por culpa de todos nós.

Assumiu, em tempos, sentir que o seu trabalho não está completo, sublinhando que há sempre um filme que proporciona outro. É dessa eternidade de que fala – um filme dentro de um filme?

Gosto de filmes que sejam estranhos, que não se resumam a: “ele acordou e foi à casa-de-banho. Ela acordou um bocadinho depois dele e deu-lhe um beijo no pescoço. Depois ele saiu da casa-de-banho e entrou ela. Depois ele já estava vestido e meteu-se no carro...”. Acho que no momento em que ele põe o pé no chão, ao sair da cama, antes de ela acordar, se passam 2000 anos, que quando ela lhe vem dar o beijo no pescoço se passam mais 4000 anos. Isso é muito difícil de filmar e devia ser feito de maneira diferente daquilo que normalmente é.

Afirma trabalhar sobre as mudanças da sensibilidade, mais do que histórias e pessoas. Isso quer dizer que não considera o tipo de cinema que faz documental?

Não gosto da palavra documental ou documentário. Parece-me logo polícia e eu tenho horror a isso. Deve ter sido o Bairro, porque tive problemas com a polícia por estar lá. Vi coisas horrorosas... Não estou a dizer que a polícia representa “os maus”. São filhos do povo, iguaizinhos aos do Bairro, só que são formados para ser bestas. Mas, quando se fala em documentário relaciono logo com tribunal, provas, fontes históricas, uma espécie de relatório policial. O que tenho verificado é que no Bairro das Fontaínhas, ou noutro lado qualquer, a melhor maneira de documentar a cidade e as suas pessoas, é puxar para o lado dois ou três e começar a falar com eles, conhecê-los. A memória dessas pessoas não é nada factual. Há umas datas e uns nomes, mas depois há ali uma invenção, pelo simples facto da memória ser muito imaginativa. Ainda bem que é, senão era um peso desgraçado.

Garante que não tem argumento nos filmes, mas aproxima-se da ficção por fazer filmes muito controlados por si e pelos protagonistas.

As pessoas mais sérias com quem trabalhei na vida, em cinema, foram estas pessoas do Bairro. Fiz filmes antes destes que eram filmes normais. É patético ver a forma como fecham as zonas de filmagens, com fitas da polícia às riscas e com megafones a anunciar: “silêncio que vamos gravar!”. Fiz filmes desses e não conseguia deixar de me rir às gargalhadas, porque não se pode calar o mundo! Portanto, também escolhi ir para lá filmar, porque ali não há qualquer hipótese de eu dizer “silêncio”, “corta” ou “acção”. Aquilo está a andar e eu apanho o comboio em andamento. Agora, isso não quer dizer que eu e eles – no sentido em que são actores, que estão à frente da câmara e os que estão atrás dela, que também são do Bairro – não façamos um trabalho sério.

Acha que o próprio mundo é uma encenação, como escreve Adília Lopes?

Sem dúvida! Agora, em geral, o mundo é uma encenação muito má. Ou então, eu não quero entrar nessa encenação. O que senti é que, na altura, num Bairro como esse, se levasse para ali o Cinema, ia levar outra espécie de Polícia. Eu não sou a SIC, nem a TVI ou a RTP, que vi muitas vezes entrarem lá 30 minutos para falar com uma velhinha ou com um puto que acha que conhece o gajo que matou e que fugiu da Polícia. O meu trabalho é ficar lá um bocadinho mais e ver como é que aquilo funciona. Como fiz isso, percebi que aquilo é um sítio completamente explorado pelo governo, pela falta de emprego, pelo racismo, pela falta de oportunidades e até por eles próprios. Ia levar o Cinema, o dos camiões, das luzes, das câmaras? Não ia. Se fosse sério, não ia. Cheguei à conclusão que só podia fazer filmes lá como eles os aceitassem. Assim, escolhi uma forma de produção que fosse nesse sentido. Comecei a recrutar pessoas de lá para trabalhar os filmes de lá. E, simultaneamente, tentar que o Cinema não saísse enfraquecido. Tinha dois trabalhos: um era fazer o filme que eu queria, o outro era dizer-lhes: “o Cinema pode ser possível aqui”.

Luís Miguel Oliveira, jornalista do Público, chamou aos seus filmes fábulas. Consegue vê-los dessa maneira?

Com todo o respeito pelos críticos ou historiadores, não os encaro assim. E cada vez tenho menos a atitude e a vida de um cineasta. Se amanhã falar com outro cineasta português, ele certamente que lhe vai falar da psicologia, dos actores, da personagem. Isso são coisas que não me dizem muito. O meu trabalho é outro. É ir comprar uma aspirina para um gajo do Bairro; ir com ele à escola primária onde andou, pois recebeu um papel, e se eu não for com ele fica muito à rasca, porque não sabe como o fazer. E isso faz parte do filme. Tal como os mil dias em que não filmo e estou para lá a comer asas de frango e a beber grogues. Estou mesmo interessado na coisa humana e não tanto na ficção. Agora, isto não tem a ver com o documentário: não estou interessado nessa ficção. Acho que já há filmes de mais sob esse prisma.

A primeira vez que o filme Ne Change Rien foi apresentado, em Cannes, e as palavras são suas, “oito minutos exactos depois do seu início”, houve pessoas que abandonaram a sala de cinema.

Eu explico-lhe. Durante oito minutos passa-se uma coisa muito linda, com pessoas a cantar, com música e tal, e ao oitavo minuto, os músicos sentam-se e começam a trabalhar a música. E aí as pessoas percebem e pensam: “ó diacho, isto agora vai ser ver músicos a trabalhar”. Só que esse era o filme que queria fazer. Não enganei ninguém [risos].

Acha que o seu trabalho é difícil de ser entendido? Que não é para toda a gente?

O que quer que lhe diga? Que as pessoas têm muitos interesses hoje e que, quando vão ao cinema – e vão cada vez menos – querem ver, provavelmente, o que já viram? Eu não posso competir com isso.

Uma das suas marcas pessoais é filmar com câmaras digitais mini-DV. É uma forma de omitir a intervenção da mão humana?

Não. É uma forma de conseguir tocar na câmara. A máquina que utilizo pode ser comprada em qualquer lado. Quando comprei a minha, fui para o Bairro, li o livro de instruções e comecei a filmar. Eu, com as mãos. E isso mudou mesmo muita coisa. Há um lado que não mudou: a seriedade do que estava a fazer. Eu era o único responsável por aquilo ficar bem. Não havia ninguém que pudesse culpar. Acho que hoje em dia, o mundo da arte, da cultura vive muita da inflação. Verifiquei-o quando fazia os outros filmes: olhava à minha volta e via dezenas de pessoas que questionava o que é que realmente faziam. Mas, realmente, para quê? Eram nocivos ao projecto e essa inflação ia juntar-se a outras inflações orçamentais e tive muito medo que a essa inflação se juntasse uma estética ou artística. Às tantas, temos uma espiral progressiva. Se falar com alguns colegas meus, nem todos, vai ver se eles não lhe dizem que daqui a uns tempos têm que fazer um filme “mais”. Há algo que, forçosamente, tem de ser “mais”. Não digo que tenham de se fazer coisas minimais, mas acho importante que se encontre um método pessoal, que ressalve as pequenas coisas humanas.

Dizia isto mais no sentido daquilo que costuma dizer, que “é a vida que intervém no cinema e não o oposto”...

Tento que seja assim. Há qualquer coisa maior do que nós que tem de ser posta à prova e isso talvez me venha do facto de ser mais teimoso, de ser mais paciente. Não é nada que tenha aprendido na escola. Acho que a nossa cabeça não é o centro do universo, que a minha imaginação não é a coisa que faz mover o mundo. Acho que não tenho grande coisa a dizer. As minhas ideias não servem para fazer Cinema, nem pintura, nem arte alguma. Estou a ser pretensioso, mas é um desafio também.

Como é o seu método de trabalho? É conhecido por gravar em inúmeros takes.

Quando gravo no Bairro, é chegar de manhã, como se fosse o meu estúdio, o meu laboratório. Já li o jornal, andei no autocarro, fiz uma hora de reflexão… Chego lá e, pronto, já está tudo vestidinho [risos]. Já abriu o café, o sapateiro, o alfaiate, e eu vou lá, cumprimento-os, ouço as senhoras que vou encontrando… Depois, depende muito dos filmes. Quando já há um filme em andamento, já tenho pessoas à espera e vamos fazendo coisas que acho importantes. Por exemplo: “hoje gostava de fazer uma coisa sobre quando eras novo, quando a tua mãe morreu”. Portanto, quando digo: “lembras-te desse dia em que a tua mãe morreu?” e a resposta dele é “lembro-me”, sei que aquilo nos vai dar assunto para um ano. E então? São cassetes que custam cinco euros e não me importo de estar um ano a falar disso com ele, até conseguir dizer aquilo que tem a dizer.

Presumo que na fase de pós-produção tenha dificuldade em cortar…

Toda a gente tem. Mas é trabalho. No meu caso, é até arranjar uma história, porque não há guião – nunca se sabe de onde é que se vai para onde é que se vai. Facilmente se passa o mesmo tempo que se passou na rodagem. Normalmente são nove, dez meses.
É um processo difícil, mas não é nada de transcendente. É como fazer um prédio ou escrever um texto. Há que desmistificar a ideia de que no Cinema fazer isso é muito complicado.
É uma coisa que tem uns segredos artísticos que não se podem revelar, dizem alguns colegas meus. Ora, eu nunca dei por eles… [risos]

Existe uma certa tendência para rotular o seu cinema como cinema francês.

Bem, este filme [Ne Change Rien] é em francês [risos]... Tem de vir às Fontaínhas connosco para ver se é francês ou não. Enfim, tem de perguntar isso ao pessoal das Fontaínhas, quando vamos ao Festival de Cannes. A sério! Eles [os críticos] não vão, mas nós vamos. Já lá fomos com dois filmes meus e estamos lá dois ou três dias, em França, comemos e bebemos bem e depois vimos embora. E regressámos a Portugal, ao nosso mundo.

Quando diz “nós” refere-se a quem?

Sou eu, dois ou três amigos meus que fazem o som – a equipa técnica – e os actores do Bairro.

E é importante levar as Fontaínhas a Cannes?

Faço filmes para ir a Cannes, para estar lá com o [Quentin] Tarantino! E estou [risos]. Mas não é para ganhar o grande prémio, não é uma ambição minha. Não estou cá para fazer as Belas e os Paparazzos, não se faça confusão! Basta-me estar no sítio onde se está. Não é por mim, é por tudo. É por provocação, se quiser, é levar as Fontaínhas ao sítio mais improvável. Sei, e tive a prova que, em 2006 [o Festival de] Cannes pertenceu às Fontaínhas.Você vai a qualquer revista do mundo e vai ver que não foi ao Tom Ford [estilista e realizador de cinema], que estava lá, mas aos meus actores. Ele disse-me: “as pessoas mais elegantes!” – e quando ele diz elegantes, é um grande cumprimento dele às Fontaínhas, ao referir-se aos meus três rapazes e à rapariga que fizeram o que tinham que fazer e depois vieram embora.

E a crítica nacional, como a vê?

É como tudo. É um país esquizofrénico, como a gente sabe. Os nossos críticos, os cineastas e os estudantes são esquizofrénicos. Acho que é um país a brincar, de faz de conta. Não vamos ao cinema, nem há crítica de cinema, nem há Universidade para ver isso.
As coisas que realmente se vêem à nossa volta mostram que isto é pequeno…

A sua obra parece seguir a tradição lançada em Portugal por Manoel de Oliveira e António Campos, a do cinema inspirado no conceito de antropologia visual.

Isso, é preciso dizer, é uma coisa que mais ou menos não existe. Não sou muito purista. Os artistas de que gosto são os Sex Pistols ou os The Clash. Gostava muito do vocalista dos Sex Pistols, o Johnny Rotten. No cinema gosto do António Reis, do Andy Warhol, do Charlie Chaplin. Vou referir-lhe um grupo de que gosto muito, mas que foi completamente assassinado: os Nirvana. Aquilo tinha tudo: a poesia, a paixão, a política, a economia. Se for ao YouTube ver os vídeos de quando eles iam receber os prémios, verá que eles não eram parvos. Há uma intervenção, na aceitação de um prémio da MTV, em que eles dizem: “não se esqueçam do Goebbels!” (Ministro da Propaganda Nazi), como que a dizer: “tenham cuidado com as coisas que vos vendem. Nós estamos aqui no meio desta fancaria toda, mas não somos parvos”. E a música deles era extraordinária, mesmo a letra do mais banal “Smells like teen spirit” é muito bem conseguida. É muito complicado chegar àquela simplicidade. É algo que ninguém alguma vez havia feito, nem o Samuel Beckett! E isso é algo que não existe no Cinema! Não estou a arvorar que faço isso. Longe disso. Mas acredito que era preciso aspirar a isso, como eles aspiraram! Essas coisas é que nos devem guiar. Não são as Belas e os Paparazzos.

O que é que procura através do cinema?

Que haja algumas pessoas que sintam qualquer coisa. Não vou entrar naquelas pretensões habituais. Gostava muito, mas porque é que hei-de atingir milhões e milhões? Quero que, pela menos um, se sinta satisfeito. Que depois de assistir a um filme que meu, saia da sala, acenda um cigarro, e diga seja o que for. Mas que por um segundo pense naquilo que viu. Isso basta-me.

As suas obras venceram alguns prémios internacionais de cinema, tendo igualmente sido incluídas em listas de melhores filmes da década. Em Portugal é pouco (re)conhecido. Como é que explica esta situação?

Apesar de tudo, a maioria dos filmes que fiz foram feitos no Bairro das Fontaínhas.
As pessoas com quem fiz os filmes viram-nos, conhecem-nos e têm os DVDs. Falámos sobre eles e iremos fazer outros filmes. É isso que é importante. Agora, se o resto do país não quer saber… O importante é continuar a trabalhar em algo que me interessa e que lhes interesse, que lhes dê algum gozo. Nem que seja por rivalidade: “a Cova da Moura não tem filmes. Nós temos!”.

Como encara o reconhecimento além-fronteiras?

Não é bem reconhecimento. Há pessoas que vêem os filmes e outras que não. Não faço filmes para o Cavaco Silva, nem para o Sócrates! O Cavaco não é o meu Presidente da República. O Sócrates não é o meu Primeiro-Ministro. Este não é o meu país. O meu país é as Fontaínhas. Esse reconhecimento não existe. É uma coisa do jornal Público, do Expresso e dos intelectuais de Lisboa e do Porto. E aí não dá luta nenhuma, porque a minha luta é no Bairro, encarando os problemas do quotidiano. É verdade que vêem mais os meus filmes em Madrid do que em Lisboa, mas também há mais pessoas lá, a cidade é mais intensa. Até diria que a juventude é mais agressiva. Acho que a juventude portuguesa é muito mole e que o país, como eles dizem, tem um problema endémico.

O escritor e ensaísta Almeida Faria, Prémio Universidade de Coimbra ex aequo consigo, disse em entrevista à Rua Larga que “o artista que não seja um mercenário não conta com gratidões, move-se por outras razões”. Procura gratidão, por vezes?

Sou muito obsessivo. Parece que quanto mais fujo dessas coisas mais me querem puxar para lá, um bocado como com o Al Pacino n’O Padrinho, do Francis Ford Coppola. Mas isso é a doença da cultura. Acho que, tirando as pessoas das Fontaínhas e alguns intelectuais, pouca gente viu os filmes. No estrangeiro alguns viram, mas não terão sido muitos.

Não é essa a informação veiculada…

Gostava que fossem muitos. Mas há reconhecimento e conhecimento. São duas coisas distintas. É como a História: há o Carlos Magno, a Inês de Castro ou o D. João II e, depois, há saber o que são. Como o Charlie Chaplin: já apanhei críticos de Cinema, quando falo dele, que dizem “maravilhoso”, e depois faço umas perguntas mais puxadas sobre determinado filme e percebo que eles viram umas fotografias do Chaplin com um cão, com um miúdo ou em frente à barbearia. Não viram o filme, viram uma fotografia e pensam que viram o filme. E isto acontece muito hoje: tem-se um índice, um sumário e acha-se que é suficiente.

Pela primeira vez, na 7ª edição do Prémio UC, foi premiado um cineasta. Na sua opinião, considera o cinema uma arte subvalorizada em Portugal?

De certa maneira, sim. Portugal é um país muito marcado, que ainda não teve tempo de se libertar do séc. XX, um período muito manhoso, muito chato. Eu vivi um bocado isso. Para se conseguir juntar 300 pessoas para protestar ou reivindicar alguma coisa, é uma loucura. Isso parte-me o coração. Basta olhar para a Catalunha, ou para Valência e, se há um problema, juntam-se 6000 pessoas de repente e, se for preciso, partem uma esquadra de polícia. É irracional, eu sei. Mas cá, antes de se fazer alguma coisa, vamos beber uma cerveja e: “ah, o meu pai”; “ah, a minha carreira”; “ah, o dinheirinho”; “ah, o meu carro”. Tudo bem, mas é uma data de gente e é preciso passar à acção.

Em que projecto está actualmente a trabalhar?

Num projecto no Bairro – não nas Fontaínhas, mas no sucessor, o Casal da Boba. Vou tentar fazer alguma coisa com os mais novos, que não têm qualquer consciência do que era um bairro da lata, nem em que condições os seus progenitores viviam. Mas que, por outro lado, representam um futuro, em que são miúdos mais violentos. São a parte que passa à acção, a parte que mata polícias e os portugueses brancos não gostam. Gostava de conseguir expor a verdade que existe ali, que, na sua relatividade, não deixa de ser verdade...

Não sente necessidade de se despedir do Bairro?

De vez em quando, sim. Tenho de sair do Bairro, porque aquilo é pesado. O Ne Change Rien aconteceu-me, porque foi um projecto especial. E espero que me aconteçam mais. É só nos intervalos. Aquilo é como um casamento: às vezes temos de cometer umas infidelidades.



Revista Rua Larga (Universidade de Coimbra); Nº 29