domingo, 2 de março de 2008

"As pessoas que eu filmo são 90% da Humanidade"

Pedro Costa (1959 -) é um dos mais singulares cineastas portugueses, interessando-se pelas transformações radicais do ser humano a partir do 'bas-fond'. Estreou-se com "O sangue" (1989), seguindo-se "Casa de lava" (95) e "Ossos" (97). "No quarto da Vanda" (2000) aprofundou-se em direcção ao 'cinema-verité'. Antes de "Juventude em marcha" (2006), fez o documentário "Onde jaz o teu sorriso?" (2001)

João Antunes, Outras, Estreias

Orealizador de "Ossos", "Casa de lava" e "No quarto da Vanda" volta ao mesmo território, filmando agora um homem, em busca dos seus filhos e de uma casa para viver. Exemplo cru de 'cinema-verité', o documento de Pedro Costa é, provavelmente, o filme português deste ano que mais dificuldade terá em agarrar espectadores - mas aqueles que agarra nunca mais os perde. O cineasta explica-se.


Jornal de Notícias As personagens que filma continuam integradas nas suas vivências. Pretende o realismo?

Pedro Costa O meu trabalho tem uma base muito documental, de puro registo, de arquivo de imagens, de um certo grupo de pessoas, numa certa zona de Lisboa, representativas de muito mais gente. As pessoas que eu filmo são 90% da Humanidade. Acho que não me engano muito se pensarmos na Índia, na América do Sul, no Sul dos Estados Unidos, nos países do Leste, muita parte da Ásia. Mas não me interessava fazer nem pura militância nem um filme hermético, poético, elitista, como sou muitas vezes acusado.

Como se processou a escolha do Ventura como "personagem" central?

Eu já o conhecia, porque tinha passado muitas vezes por mim durante a rodagem de "Ossos" e "No quarto da Vanda". Cumprimentámo-nos sempre com muita ternura mesmo, posso dizer. Desta vez, decidi aproximar-me dele, fazer qualquer coisa com ele, apesar de ser um homem doente, reformado, sem qualquer tipo de relação com o cinema. Ele, aliás, nem gosta de televisão, odeia televisão.

Há tempos, a propósito do método de trabalho, disse que se considerava uma espécie de funcionário público. Quer explicar?

Funcionário público é um sonho. Vivemos num país medonho. Se tivéssemos um país relativamente organizado e entusiasmante, podia ser um funcionário público das imagens e dos sons, como outros são das águas ou das minas. Mas um funcionário que funciona.

Mas esse método de aproximação, constante e diário, aos materiais manteve-se?

Sim. Sempre foi assim. Como se costuma dizer, sempre dei o litro a fazer os filmes. Mas já tive duas fases. Quando trabalhava com equipas relativamente grandes, orçamentos grandes e maquinarias grandes, conseguia obter menos resultados. Não tinha nem o tempo nem as condições, no fundo, para chegar aos resultados a que hoje chego. Agora, há uma espécie de trabalho permanente, em que não há princípio nem fim.

O facto de ter trabalhado e convivido durante algum tempo com Jean-Marie Straub e Danièle Huillet mudou de alguma forma a sua forma de trabalhar?

Vê-los trabalhar, para além do grande prazer, fortaleceu-me algumas convicções que já tinha. Há muitas convicções, muitos princípios deles, que são os meus, também, e acho que deviam ser de toda a gente. Como, por exemplo, o trabalho de montagem, que se não se faz daquela maneira, não é feito. Isto é uma convicção, como ser comunista ou ser contra as touradas.

Já falou com o Straub, depois da morte da Danièle Huillet?

Estive com ele pouco tempo depois, em Paris. Houve uma semana ou duas de grande sofrimento. É uma coisa que não tem palavras, para ele. Agora, está a preparar um filme, enviou mesmo os textos para os actores, e está a fazer uma vida quotidiana, prática. Com idas ao café, idas ao cinema, almoços com amigos. Não se deixou fechar.

O trabalho que faz, da forma como o faz, muito junto das pessoas, mais do que o cineasta, mudou o homem?

Da vida pessoal não gostava muito de falar. Como vivemos num mundo de autores, é impossível não ver hoje um filme sem ver o autor, mesmo que o filme seja quase anónimo. As pessoas podem imaginar como é fazer um filme diferente daquilo a que estão habituadas. O meu filme traz dentro dele a maneira como foi feito. Há filmes muito camuflados, como o James Bond. Insisto no James Bond, porque é o meu rival no momento, onde não há outra coisa a não ser os efeitos - não há seres humanos, não há qualquer tipo de relação com a vida das pessoas. O meu maior desgosto é estrear no mesmo dia que aquele produto...

Como viveu a experiência no Festival de Cannes?

Foi divertido porque levei alguns actores do filme. O objectivo era divertir-nos e mostrar o que é o outro lado. Eles só conhecem o lado do trabalho, às vezes chato, nem sempre entusiasmante, e eu quis mostrar um mundo que está a anos-luz de nós. Fomos jantar a casa dos ricos, é isso que a gente diz. Só deixámos os ossos e viemos embora.


J.N, Quinta-feira, 23 de Novembro de 2006