segunda-feira, 28 de abril de 2008

Ossos e Intimidade

por Sérgio Dias Branco e convidadas

Esta é a transcrição da sessão 2 do ciclo de projecções e debates Os Sentidos da Cidade. Dez encontros entre o cinema e a arquitectura, organizados por Sérgio Dias Branco (SDB).

24 de Abril, 2002.

TEMA: Intimidade.

FILME: Ossos (Costa 1997).

CONVIDADAS PARA O DEBATE: Prof.ª Doutora Arq.ª Dulce Loução (DL), professora de Projecto na licenciatura em Arquitectura da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa. Elisabete França (EF), ex-crítica de cinema do jornal Diário de Notícias, jornalista na área das Artes e Multimédia da mesma publicação.

TEXTO INTRODUTÓRIO (por SDB)

Intimidade. Não há modo de dizer ou ouvir esta palavra sem sentir a violação do inviolável. Ou que se desvanece o espaço que o discurso e a escuta tentam desvendar no momento em que é dita, no instante em que é escutada. A palavra pretende evocar. É uma imagem que profana, porque tenta representar aquilo que conhecemos demasiado para querermos enunciar. O íntimo como o sagrado não pode ser representado. Estas palavras com que escrevo compõem uma ilusão que não consegue reduzir essas paisagens inomináveis a uma imagem mental, a uma ideia, a um conceito. Pedro Costa evita esta violência exercida sobre as coisas. O seu trabalho paciente procura captar o que se revela num olhar furtivo, numa respiração demorada, num gesto cru. Aceita que a linguagem dos corpos é, talvez, anterior a toda a ordem e invenção. Que as suas presenças são os limites do secreto, as manifestações do espírito. Que quando eles falam só podem falar da solidão e do medo. Porque sob essa fala corre um processo simples, lento, sem palavras, de ligação com as pessoas e com os lugares, para que o amor e o desespero possam ser vividos sem terem que ser comentados. Partilha, feita de silêncios e frases cortantes, que precisa do olhar humano do espectador para existir. Ao contrário da palavra. Intimidade.



DL: Eu quero dizer que não tenho nada preparado, como calculam, porque cansada de dar aulas já estou eu e tenho muitos objectos para dar aulas teóricas. Portanto, tenho imensa dificuldade em dizer alguma coisa organizada sobre intimidade e a propósito desta fita. E acho que as coisas correm sempre melhor quando estamos à mesa do café e eu acho que nós já esgotámos grande parte da conversa ali, a tomar bicas. Aquela que eu via que, eventualmente, pudesse ter sido a razão pela qual o Sérgio me pediu para vir cá dizer umas palavras sobre intimidade, é porque eu acho que se acredita que a arquitectura teve e tem o papel de resolver este tema de um modo que eu imagino que seja, ao longo dos tempos na sociedade ocidental, considerado como politicamente correcto. A arquitectura teve essa coisa fantástica de lhe ter sido atribuído o direito, o dever, a responsabilidade, de regular espacialmente a relação entre as pessoas. É nesse sentido que eu penso que o Sérgio me pediu para vir cá. Devo dizer-vos que, para início de conversa, tenho a maior das dúvidas de que o tenhamos conseguido, nós enquanto disciplina. Portanto, esta é a minha primeira abordagem.

EF: Ia pegar na nossa conversa de ali fora. No sentido em que, pelo meu lado, eu vejo as condições do bairro em que o filme é rodado como condições ao mesmo tempo de abertura a uma intimidade e de fechamento. Aliás, o filme acaba com uma porta que se fecha. Se as pessoas quiserem fecham a porta e mais nada nos é acessível, da sua intimidade. Mas antes disso aquilo que vemos é que elas vivem com janelas e portas abertas ou entreabertas e estão profundamente sozinhas no seu canto, mas chegam-lhes todos os ruídos das ruas, as falas, as músicas. E nesse sentido há uma certa devassidão da intimidade, se quiserem.

DL: Eu gostei imenso do filme. Não consegui deixar de ficar comovida provavelmente por uma coisa de espectadora, que eu considero muito importante, que é a qualificação espacial daquele bairro. A qualificação até formal. E a dimensão compositiva das presenças todas e das vidas humanas naquele território. E fiquei comovida também por outra coisa. Não conheci este bairro, mas conheci o Alto da Cova da Moura que tinha uma estrutura espacial — não sei se tem ainda, já foi há alguns anos — muito semelhante a esta. E uma das questões que se colocava — neste caso aos alunos do final da licenciatura — a propósito das estruturas urbanas era a de poderem ou não conduzir situações no plano social: é que estes bairros contêm tudo aquilo que são os modelos iconográficos da arquitectura, portas, janelas, ruas, largos, pessoas a passar, têm o mote todo daquilo que habitualmente as pessoas entendem como sendo uma situação urbana adequada. O sítio, portanto, onde as pessoas comunicam e onde — o que é fantástico aqui, ao mesmo tempo desagradável e fascinante — há a aproximação entre as pessoas, portanto o problema da dimensão das coisas e a interposição de distâncias ou a ausência de interposição de distâncias manipula exactamente os mesmos instrumentos que a estrutura urbana tradicional. Só que, readequando as dimensões, origina ao mesmo tempo situações espaciais fascinantes, mas totalmente incorrectas, inadequadas.

Como é que habitualmente a cidade constrói os diversos graus do universo da intimidade? Como diz o Sérgio neste texto: a intimidade não se representa, é parecido com o sagrado. Todos os esforços de representação são esforços menores. São exercícios de aproximação a um desejo de plenitude, neste caso do sagrado ou do íntimo. Mas não deixam de ser exercícios de aproximação. No privado, a coisa já se torna menos equívoca. Só os elementos relativos à dimensão do privado, relativa à capacidade de divisão, podem ser controlados pela arquitectura.

O universo da intimidade é, de facto, uma coisa mais inatingível. E porquê? Quanto a mim, porque a intimidade prende-se com uma incapacidade que tem a ver com o confronto do indivíduo consigo próprio, para conseguir com isso reconhecer os seus limites e interagir com os outros. A definição da identidade provém da definição da oposição entre o privado e o colectivo, na organização social. Esta procura do eu pode passar por um universo que se manifesta como uma profundíssima solidão ou um profundíssimo silêncio interior. E isto é particularmente manifesto neste filme, por oposição à ausência de silêncio naqueles espaços que nós reconhecemos naturalmente como espaços privados, nomeadamente as casas. É uma leitura dificílima, porque o universo do privado, que é o sítio que culturalmente é o lugar da intimidade, onde eventualmente a entidade a existir se corporiza ou se instala, tem os códigos do colectivo. Tem a noção do colectivo, tem a partilha, tem os espaços de divisão. Mas por outro lado existe o espaço do colectivo: o espaço da rua, o espaço da relação entre ruas, o espaço do peão. A estrutura é claríssima e era uma coisa fantástica, carros por um lado, peões pelo outro, largo, rua, a possibilidade das pessoas, porque estão próximas, se deslocam.

Portanto, contém, até do ponto de vista da dimensão, qualquer coisa de muito parecido com algumas críticas que foram feitas à arquitectura por outras pessoas — não presentes, espero eu — num encontro de profissionais de Saúde no qual também participaram arquitectos. Na altura, fui eu e mais uns tantos colegas que debatemos o problema da infelicidade das pessoas por viverem em estruturas urbanas. Enfim, no limite, a situação era esta. Ou seja, o espaço da cidade, exactamente como espaço do colectivo, era o espaço onde a privacidade e portanto a inevitabilidade da intimidade estava a conduzir as pessoas a situações de grande infelicidade. O que, no limite, provocou uma ausência de relação, que é como quem diz: a ausência de cidade podia ser eventualmente o caminho para um paraíso qualquer. Não acreditando eu, nem que a arquitectura tem esta capacidade regeneradora, nem que tem esta capacidade demolidora, aquilo que é fascinante do ponto de vista arquitectónico neste filme, parece-me a mim, é a utilização de todos os instrumentos que espacialmente introduzem um processo iniciático entre o colectivo e o individual e entre o público e o privado e entre o não íntimo e o íntimo. Que passa, por exemplo, pela porta. Que é fantástico: a porta como manifestação do acto de entrar, do acto de sair, do acto de estar dentro ou de estar de fora. E a janela. E a parede. E tudo aquilo que significa a bolha, o espaço de protecção contra o espaço que não é de protecção. Portanto: da casa contra a não casa. A consagração do que é que é o espaço da família. Quer dizer, a consagração de um certo modo de viver e de um certo modo de estabelecer relações familiares. Porque a arquitectura só faz coisas que o conceito cultural não sabe como manifestar. A arquitectura não tem esse talento de inventar uma coisa que está fora do contexto, tudo aquilo que está fora do contexto não é reconhecível, visível. Já não tem clientes, enfim. Isto quer dizer que a arquitectura como disciplina corporiza e manifesta contextos e relações, que são as estabelecidas. Incluindo, evidentemente, o modo como organiza o espaço do privado, ou neste caso, da casa, da morada. A casa é um modo de construir e um modo de manifestar uma relação de natureza familiar. Ou uma disposição de elementos, portas, janelas, paredes. Dentro e fora. O modo como o dentro e o fora se estabelecem dependem de contextos. A arquitectura só tem esse talento, que é conseguir manifestar isso. Há uma imagem fantástica no filme, dele com o saco de plástico, que descreve aquele percurso de aproximação do bairro até à Praça da Figueira. E a estrutura urbana que está presente no bairro é igual à que está presente na Praça da Figueira. É um problema de dimensão. Só muda o tamanho. Eu não consigo explicar isto de outra maneira. Para mim, isto é claríssimo.

EF: É a mesma a uma escala diferente?

DL: Não. Tem outro tamanho, não tem outra escala. São dimensões diferentes. A escala tem a ver com proporção, portanto com a hierarquização de coisas. Estas dimensões têm mesmo a ver com o tamanho maior ou mais pequeno. A dimensão da incomunicabilidade, a dimensão do silêncio, a dimensão do discurso referencial — que é o modo como eu, como pessoa, me situo em relação ao filme, este silêncio, a perda, o autismo, do conjunto de pessoas que circulam e que se cruzam e que aparentemente definem coisas, não só territórios —, a estrutura desse território é igual, só que têm dimensões diferentes, não escalas, porque as proporções não são alteradas. A proporção é a mesma, a dimensão é que se altera.

EF: Mas não há uma diferença entre um local que é uma residência e outro que já só é de passagem? Porque tudo se polariza na Praça da Figueira, na boca do Metro, não é?

DL: É. Mas vamos lá falar de residência então: morada, lar, sítio de morar. Há uma frase fantástica ali, que é assim: “A minha casa é entre as pernas da não sei quantas, mas pode ser entre as tuas.” O sentido de lugar, o sentido de residir, o sentido de morada, é este. Percebe o que estou a dizer? O sentido de morada é este, é isto ou aquilo ou será uma ruína. Eu referia-me à Praça da Figueira, sítio público, que por acaso é contornado por um conjunto de paredes que têm janelas e portas. Nós denominámos aquelas casas do Bairro das Fontaínhas de residência, se acreditamos nisto, as relações de lugar familiar são diversas, são muito diversas daquelas que nós estamos habituados a conhecer como adequadas. As pessoas partilham de outro modo. Aquilo que para nós é o limite da intimidade, que nós consideramos que é a relação afectiva, o acto de fazer amor, é partilhado por toda a gente que passa. A questão está em saber que nós entendemos que o espaço da cama, o espaço do quarto, é um sítio, eventualmente, distanciado do sítio público — aliás, tem sido na cultura ocidental e, enfim, na cultura da casa ao longo do final século XIX e do século XX. A casa é organizada também por esse ponto, esse sítio mais sagrado, o tal lugar da intimidade, que é a alcova, vamos supor. Aqui isto está completamente subvertido, não sei se por razões de natureza distancial ou se por razões de contexto. Ou seja, finalmente, a intimidade é aquilo que nós entendemos como sendo algumas coisas que na cultura ocidental não podem ser partilhadas pelos outros ou a grande intimidade é outra coisa? No sentido de residir, então não é um sítio físico, mas é um sítio de outra natureza. E portanto não representável, como diz o Sérgio.

— Acha que se naquele mesmo espaço existisse outro contexto arquitectónico a interacção das pessoas e o seu comportamento seria igual?

DL: Respondo-lhe assim. Há uns anos fizeram um estudo a propósito de áreas mínimas de habitar e constatava-se que as áreas menores de todas as áreas mínimas de habitar eram ocupadas por japoneses. Isto a propósito também das áreas mínimas do R.E.G.E.U. — foi na faculdade suponho eu, ou alguém já o tinha investigado e nós usámos — e constatava-se que havia uma inadequabilidade na aplicação das áreas mínimas do R.E.G.E.U. para habitação social, porque se entendia que quem conseguia viver em espaços genuinamente pequenos e eventualmente com todas as questões relativas à identidade, deveriam ser pessoas com contextos culturais um pouco mais elevados. Quer dizer que a construção da intimidade, deste silêncio, esta capacidade de estar imóvel, silencioso, sem tocar, está desadequado: as casas de topo de gama deviam ter áreas mínimas, as casas de habitação social deviam ter mais espaço. Ou seja, de facto, a construção da intimidade é um acto — não sei se estou a dizer barbaridades tão grandes assim —, mas é um acto de evolução interior que pressupõe contextos económicos, culturais, bastante mais diferenciados do que a questão da habitação social, daquilo que é habitação social, isto é, auto-construção. Respondendo à pergunta: nós, de facto, viveríamos de um modo diverso, provavelmente porque vivemos noutras casas, acredito eu, mas não sei quão diverso. E, pelo contrário, não sei se as pessoas deslocadas — e é verdade que já há pessoas deslocadas — alterarão, senão de um modo muito gradual, as relações com a vida só porque finalmente já têm um T3. Porque eu não sei se tem a ver com o T3, está a perceber. As relações de casualidade, de intimidade, é isso mesmo, de silêncios, de cruzamentos, desencontros, são inevitáveis. Mas há uma coisa que é fantástica neste bairro: é que a definição territorial está asseguradíssima. Um bairro de auto-construção funciona como outros territórios que têm a ver com modelos ancestrais. Na Alto da Cova da Moura haviam três comunidades que tinham estabelecido localizações e partilha de momentos comuns. E a organização do território era de facto um exercício de apropriação de território. Coisa que nós não sabemos fazer.

— Mas era uma organização táctica ou estratégica?

DL: Não, não. O Alto da Cova da Moura que eu conheço, e que é um bairro parecido com este, é um bairro de auto-construção. Portanto, há uma apropriação de um pedaço de território, onde não sei quantas famílias começaram a construir. E a seguir, entre elas, estabeleceram os limites da sua territorialidade. Decidiram o que partilham, o que não partilham, e qual é a relação que estabelecem entre elas, enquanto grupo, e os outros. Nós não sabemos fazer isso, por exemplo. Graças a Deus, nós moramos em habitação colectiva, que alguns de nós, autores, inventaram para estabelecer o tipo de relação que as pessoas devem ter umas com as outras. O interessante para nós, arquitectos, é ver como é que nós conseguimos funcionar com a auto-construção. Através dessa capacidade, por exemplo.

EF: Bom, ainda relativamente àquilo de que se falou agora, que é uma situação hipotética. No filme aparece, e é a casa para onde a rapariga vai trabalhar, a casa da enfermeira. E aí há já uma relação que é de patroa/empregada, mulher-a-dias.

— E é uma patroa que tenta introduzir-se na vida dela e das pessoas com estão próximas dela. Aquela casa vai servir também de casa para o rapaz, o pai da criança, que é uma espécie de marido das duas empregadas. E, falo por mim, o filme toma como exemplo uma patroa que não é o comum. Ela preocupa-se com as empregadas, mas vive numa promiscuidade, porque não pertence de facto àquele meio. Ela apropria-se de tudo, menos da criança.

EF: Pois, comum não é, pelo contrário, é completamente excepcional. Tanto assim que é a única daquelas imensas pessoas que passam ali, pela Praça da Figueira, junto ao supermercado, a responder ao apelo do pai.

DL: Exactamente.

EF: Mas eu estava a referir-me ao território da casa e à diferença real. Porque aquela é uma casa fechada onde as pessoas vão para trabalhar. Ou no caso do pai, para receber auxílio, porque ela ofereceu o leite que intoxicou o bebé, que depois ficou hospitalizado — e ela é enfermeira no hospital. Tudo isto leva ao nascer de outro tipo de intimidade.

DL: Acho que podíamos começar a falar sobre esse desejo que as pessoas têm de que quando a intimidade é obtida, eventualmente a vida das pessoas seja melhor. As casas das patroas são casas de uma tristeza infinita ou estarei eu a ver mal? São casas sem gente, não têm vida. Só têm resíduos de coisas. Têm copos. Têm pratos. Têm, têm. Não é? Têm máquinas. Têm coisas, não se percebe muito bem para quê. E nós, deram-nos tudo aquilo que, em condições, enfim, teóricas — como sabem os alunos —, são fundamentais para a qualidade de vida das pessoas: janelas, luz, electrodomésticos, máquina disto e despertador daquilo. Não sei se percebem. Não sei.

— A intimidade estará na partilhada forma do bairro mostrado ou na intimidade de ter um espaço para si próprio, na mais completa solidão?

DL: Eu não sei. Mas voltando à história da outra conversa, que também foi um bocadinho traumática para mim, em que se falava de cidade e de felicidade. Eu vim na qualidade de representante daqueles que produzem ou desejam vir a produzir futuros arquitectos ou lá o que é que eles passam a ser. Há uma coisa que eu garanto que nós, que eu pelo menos nas aulas não ofereço nenhuma garantia: é que a arquitectura confira felicidade e que o desígnio da vida das pessoas seja mesmo alcançar felicidade. Isso não posso garantir e não está escrito em sítio nenhum que tenha que garantir. Tenho que eventualmente aceitar a inevitabilidade de construir espaços para albergar vida com todas as características incluindo as mais dramáticas, as mais horrorosas, as mais incorrectas. Não sei quanto à felicidade. Sei que é para cumprir listagens de desejos que um grupo alargado de pessoas determina que são os de um contexto e de uma época. E o que é interessante fazer é eventualmente, de um ponto de vista da definição da cidade, uma comparação de dois territórios ou de dois modos muito diversos, mas igualmente inevitáveis, manifestados espacialmente de dois modos diferentes; sendo que, para meu desgosto, a competência espacial do subúrbio, da periferia, é poeticamente mais adequado do que o outro. É assustador, isto. Ou seja, é mais clara a manifestação espacial relativamente ao propósito. É mais clara a relação entre o público e o privado, por exemplo. Percebe-se essa intimidade numa imagem fantástica que é quando a senhora vai a casa da prima e nós estamos a vê-la numa janela de outra janela, e as pessoas passam e aquele espaço intersticial é rigorosamente igual, com outra dimensão, a não sei quantos espaços construídos por nós e que são dimensionalmente feitos para as pessoas partilharem coisas, mas de facto são espaços feitos para pôr outras coisas. Ou seja, aquele espaço do ponto de vista arquitectónico é igual a este, só que por acaso aquele é mais qualificado do que este do ponto de vista poético. Pode é ser problemático.

— Acha que os condomínios fechados, que estando fechados ao exterior deviam projectar uma imagem de intimidade entre pares, não são muito diferentes destes bairros suburbanos, onde isso existe, essa partilha da intimidade? Não sei se me estou a fazer entender.

DL: Está. Esses condomínios são construídos por duas ordens de razões. Primeiro acho que as pessoas têm terror da morte e vão à procura de segurança. E a segunda é porque o condomínio fechado projecta uma imagem e as pessoas vivem desesperadas à procura de uma imagem para projectar. São muito diferentes destes bairros, porque a gente é completamente diferente. As pessoas aproximam-se umas das outras e coabitam por razões. As pessoas têm hábitos próximos porque provêm de contextos próximos. Enquanto que aqui é o facto de serem todos muito pobres e terem todos que partilhar. Portanto, não é um acto intencional, é uma situação precária, enquanto que no outro caso é mesmo um acto intencional, as pessoas desejam aproximar-se daquilo que supõem vir a ser a sua paz, por razões que se prendem com o isolamento em relação aos outros. É um exercício assim um bocadinho prévio a este da intimidade e é um pouco adolescente, do meu ponto de vista: a gente reconhece quem é, por oposição aos outros, que não são como nós. Talvez um dia consigamos ser alguma coisa, no dia em que conseguirmos. O problema é que nós só conseguimos ser alguma coisa quando nos separarmos do grupo. Esta coisa do grupo tem esta vantagem e esta enorme desvantagem. Além de que o condomínio fechado tem outra coisa assustadora: é que ocupa pedaços fundamentais da cidade, porque tem esta característica, essa sim, claramente “voyeur”: penduram-se no sétimo andar para ver a vista, retirando da cidade essa componente, não chamarei estética, mas visual. As acessibilidades, as localizações fantásticas, e depois não interage pura e simplesmente. Esse é que é o verdadeiro gueto, do meu ponto de vista. Isto é capaz de ser o mais incorrecto politicamente e o Sérgio devia desligar o gravador neste momento. Mas tem mesmo a ver com isto. O condomínio fechado é um grande gueto, as origens são completamente diferentes, as pessoas não sei se partilham o que quer que seja ou se vivem na ilusão de que, porque moram juntas umas com as outras podem, eventualmente um dia, vir a partilhar a fantástica piscina do condomínio. É um problema de imagem, neste caso. E um problema de vida, no outro. Como eu estava a dizer, não são comparáveis.

— Na sessão anterior falou-se da autenticidade da arquitectura e do cinema. E esta auto-construção é um exemplo de um arquitectura ainda feita para o Homem, construída pelo próprio, em que há uma totalidade, uma autenticidade, bem diferente do absurdo de algumas arquitecturas.

DL: Agora vou falar como membro da Ordem dos Arquitectos. Eu acho que esta profissão de arquitecto tem uma componente ética e social poderosíssima, sem a qual devia ser retirada a carteira profissional a todos aqueles que não entendessem este tipo de conduta ou de missão que o arquitecto deve ter. Se falasse como académica provavelmente diria que a disciplina da arquitectura avalia relações num contexto cultural e manifesta essas relações — e só faz isso. Não tem que funcionar contra elas, até porque esta função da arquitectura só se manifesta porque o contexto pede. Se falar como docente aproximo-me muito mais seriamente da atitude do missionário do que da atitude da academia. E se falar como docente provavelmente fico numa situação horrível de não conseguir explicar a todos os futuros arquitectos que aquilo que eles estão a fazer são exercícios de natureza transitória, meramente instrumentais, para conseguirem construir arquitectura. A arquitectura, de facto, não é imagem nem é progresso, é uma tarefa árdua de procurar pelo menos que a vida das pessoas não seja agravada por más soluções por parte daqueles que tinham obrigação de garantir uma infra-estrutura mínima de habitabilidade das coisas. Os arquitectos, em função do lado da barreira, responder-lhe-ão de maneiras tão diferentes quanto estas. Porque, em última análise, ao arquitecto profissional acontece uma coisa interessante: é que ele só faz arquitectura se tiver com quem. E esse quem é o contexto económico, é o contexto social, o contexto cultural, somos nós, é a sociedade. Portanto, nós nem sequer podemos fazer projectos sobre o vazio por uma razão simples: os projectos não são arquitectura e os que vão para a gaveta perdem o sentido. Nós não somos donos das obras, não somos donos da pedra. Enfim, andamos aqui no meio disto tudo.

EF: Eu creio que me perdi um bocadinho a tentar acompanhar a conversa. Mas nesta parte final direi que, ao contrário do que disse em relação à arquitectura, o cinema é imagem. Imagem ou a ausência dela, imagem e som a partir de uma determinada forma de território, concretamente no fim deste filme, quando a porta se fecha, deixa de ser imagem e é ainda som.

No contexto da obra do Pedro Costa a mim parece-me que este bairro — e no Bairro das Fontaínhas ele já fez dois filmes, o Ossos e o No Quarto da Vanda (2000) — foi onde ele chegou de um trânsito da Ilha do Fogo em Cabo Verde onde esteve para fazer a Casa de Lava (1994) e onde estabeleceu relações com algumas destas pessoas, relações essas que se mantiveram e que o levaram ao encontro de outras pessoas que coabitavam ali, com aquilo a que talvez se pudesse chamar tribos do império, digamos assim, misturas de crioulos. E este lugar é, do ponto de vista da intimidade ou do afecto a ela, o lugar de uma comunidade que de filme para filme é um tema para Pedro Costa. São comunidades de onde se exclui o pai e isso aliás acontecia logo no primeiro filme, onde se matava o pai: O Sangue (1989), que ele rejeita muito por considerá-lo um bocado “arty.” Depois, no segundo filme, na Casa de Lava, há um filho que é devolvido à origem, que é acolhido basicamente pela comunidade das mulheres. E quando se chega ao Ossos, há um pai que finalmente leva o filho para tentar salvá-lo, mas que é eliminado por esta comunidade das mães, onde todas querem ter mais um bocadinho daquele bebé. Até que chegamos ao No Quarto da Vanda e o pai pura e simplesmente não chega a aparecer. Portanto, esta é a imagem que eu vejo a percorrer os filmes do Pedro Costa. E onde ele se encontrou mais. De tal maneira que se no Ossos ainda tem actrizes profissionais misturadas com aquela comunidade é retirando-lhes completamente o “glamour” que ele pretende ir ao osso do que me parece ser a sua procura de uma certa essência do humano — confirmada, de resto, em entrevistas que tivemos tanto acerca do Ossos, como depois acerca do No Quarto da Vanda. E se o que fascina o Pedro Costa nestas pessoas é, como ele me dizia aqui a propósito do Ossos, “uma espécie de língua nova que brilha na escuridão,” a mim também me parece que os filmes dele constituem no cinema uma espécie de língua nova que brilha na escuridão. Tudo isto é muito escuro, mas tudo isto é uma língua cinematográfica profundamente poética.

SDB: Queria só aproveitar a oportunidade para deixar uma nota, que foi uma coisa que eu não expliquei no início. Não devíamos ter passado este filme. A primeira ideia foi passar o No Quarto da Vanda, só que parece que o filme já não existe. No outro dia, estava a conversar ao telefone com o João Antunes da Cinemateca Portuguesa — e que também vai participar neste ciclo — e ele falou com o Pedro Costa na semana passada e deu-me algumas informações. Curiosamente, esta semana, e isto é uma mera coincidência, na sexta-feira este filme vai passar na RTP. E a RTP queria passar o No Quarto da Vanda, simplesmente o filme já não existe. O filme está a ser remontado pelo Pedro Costa, portanto podemos dizer que haverão várias versões. A semana passada tivemos o Sicília! e tal como eles fizeram outra versão daquele filme, cuja montagem aliás foi documentada pelo Pedro Costa — é uma ligação interessante o facto do Pedro Costa ter feito um documentário sobre esta segunda versão do Sicília! —, também o Pedro Costa resolveu remontar o seu filme. Era só para esclarecer que é por isso que nós passámos o Ossos.

— Tenho visto alguns filmes, mas não tenho esse conhecimento cinéfilo que demonstrou. De qualquer modo, será que um filme destes pode traduzir a força do feminino no presente? Será que os homens se estão a afastar do poder?

EF: Eu não dei, de maneira nenhuma, esse tipo de interpretação. Eu limitei-me a fazer uma leitura sequencial dos filmes do Pedro Costa. E não posso responder pelos criadores. Posso quanto muito tentar ler as suas criações. Mas parece que cada um procurará criar alguma coisa que, de certo modo, confesse as suas falhas mais profundas. No caso do Pedro Costa, provavelmente será a falha materna, porque a mãe lhe morreu quando ele tinha oito ou nove anos. E portanto ele privilegia altamente a comunidade das mulheres e das mães.

SDB: O No Quarto da Vanda não tem actores profissionais, mas há uma actriz que aparece nos três primeiros filmes dele, que é a Inês de Medeiros.

EF: Ele disse-me numa das entrevistas, já não sei em qual, a propósito de um destes dois últimos filmes, que tem de haver sempre uma mulher de alguma idade, que no caso de O Sangue era a Isabel de Castro, no caso da Casa de Lava era a Edith Scob, uma actriz francesa, no caso do Ossos é a Isabel Ruth, e no caso do No Quarto da Vanda é a mãe da Vanda Duarte.

SDB: Professora, se tiver alguma coisa para dizer, diga.

EF: Eu não tenho nada para dizer... Não, ia dizer uma coisa horrível que é começar por perguntar se a arquitectura tem um feminino e um masculino. Esta leitura do papel da mulher ou da mãe ou da demissão do pai...

Vamos lá ver se a gente se entende: há aqui um processo que eu não sei se tem a ver com o exercício do patriarcado no sentido em que se estava a colocar. Eu acho que as mulheres sempre tiveram poder, mesmo quando cederam simpaticamente aos homens a possibilidade de se ocuparem dessas tarefas mais visíveis. A intimidade é uma coisa feminina. É no feminino. E a arquitectura também é uma coisa no feminino. Sendo que eu odeio a frase “a arquitectura feita por mulheres”. A arquitectura masculina ou feminina: eu acho que a arquitectura, essa entidade, não tem a ver com o universo masculino ou feminino. Mas tinha que dizer o que eu acho que é essa a situação do matriarcado e do patriarcado. A cultura ocidental é claramente matriarcal, no nosso contexto cultural então, do sul da Europa, é claramente matriarcal. Sempre foi, porque as mulheres têm aquilo que é mais essencial na vida, determinam as coisas mais fundamentais, exactamente porque são aquelas que operam as grandes transformações. Há uma frase que aquele homem, o marido da Clotilde, diz e que é importantíssima: quem assegura a vida daquela família é ela. A atribuição, no sentido da vida na sua dimensão global, é esta: é a casa dele, mas ela é de facto o garante daquilo tudo. Mas eu acho que, no limite, é um elogio. E provavelmente, ao nível da estrutura da arquitectura e culturalmente, quando a arquitectura não tinha essa questão funcional que fazia com que tivesse que ter casas de banho e cozinhas, nem nada determinado, quando só havia lugar para o fogo e o sítio de ir buscar água, quando as funções do espaço da casa não estavam organizadas com atribuições espaciais próprias, as casas construíam-se em função de relações de intimidade que não tinham lugar físico. Como é que eu consigo explicar isto? Toda a gente conhece o Palácio da Vila, em Sintra. É um paço medieval que tinha uma coisa que eu acho belíssima imaginar-mos, que é assim: a corte quando lá ia incluía as pessoas e os adereços. Portanto, é a ideia de que a casa, a morada, é alguma coisa habitada. Por isso é que eu dizia à bocado que não me parecia tão diferente o facto de haver sofás ou isto ou aquilo, para a construção da intimidade, ou da boa maneira de viver, ou da maior felicidade se quiserem, face à ausência dessas coisas no outro território, no território das Fontaínhas, porque houve tempos em que as pessoas não associavam a privacidade ou os lugares de intimidade a localizações físicas fixas. E aquilo que acontecia quando a corte ia para Sintra era: quando chegava a corte havia de haver um sítio, que era o sítio dos fogões, das chaminés e havia sempre um sítio onde se confeccionavam coisas, porque tinham outras ao pé. Depois, as pessoas organizavam-se a partir do sítio onde o rei dissesse que era a cama dele. Ou seja, havia uma hierarquia que não era coisa física, portanto tinha a ver com estas importâncias, que determinava a dimensão de afastamento das pessoas em relação à cama do rei, que contrariamente ao nosso modelo, era o momento mais consagrado. Aliás, toda a gente conhece aquela história de que o grande momento público era o banho do rei em França. Portanto, a ideia de intimidade ou o que são as hierarquias dos espaços e das coisas são determinações que provêm de quem tem mais poder. E se nós avaliarmos como é que tradicionalmente, no século XIX, a casa se organizou acabamos por perceber bem o poder da mulher. No momento em que a mulher disse ao homem: “muito bem, tu agora vais para a guerra e fazes e aconteces” ou “agora não há guerra e tu trabalhas e nós remetemo-nos a esse trabalho menor, horrível, de gerir a vida e os filhos e consolidar tudo isso”. O marco no território é a casa e quem organizou a hierarquia da casa foi a mulher. Fê-lo foi de uma maneira silenciosa. Era só isto que eu tinha para dizer.