João Bénard da Costa
1: Eu sei que a interrogação titular do filme de Pedro Costa não pergunta quem escondeu o sorriso, nem pergunta quando é que esse sorriso se ocultou. Mas o quem e o quando parece-me, crescentemente, da maior importância, à medida que revejo o mais claustral e o mais clausural dos filmes de Pedro Costa. No sentido monacal de clausura, pois – foi Camilo quem o escreveu – «isto de viver na clausura não é para todas as compleições».
Talvez, por isso, tanto tardei em escrever este texto e tanto tenha revisto o filme (em sala ou em casa) à busca do claustro dele. Ou seja, à busca de um espaço exterior e descoberto, onde, mesmo nos mais severos conventos, se demanda a paz e se pode achar a paz.
Não estou nada certo de o ter encontrado, como não estou nada certo de saber melhor onde jaz o sorriso oculto, nem quem o ocultou, nem quando foi ocultado.
Mas vamos por partes.
2: Como se sabe, ou se é suposto saber, este filme situa-se numa sala de montagem do Fresnoy, perto de Tourcoing, no Pas-de-Calais, onde Jean-Marie Straub e Danièle Huillet montaram a terceira versão do seu filme Sicília!.
50% das imagens dele são imagens de Sicilia!, do qual seguimos, por ordem cronológica, algumas das sequências, ou alguns planos dessas sequências. Para além de Sicilia!, sã-nos mostradas também algumas imagens (comparativamente poucas) de Chronik der Anna Magdalena Bach, obra de 1968, realizada trinta e dois anos antes de Sicilia!. Dos 24 filmes Straub-Huillet, Chronik é o terceiro e Sicilia! o vigésimo segundo, como, aliás, o próprio Straub o sublinha a certa altura do filme.
No entanto, desviando-me da trindade – tomista ou marxista – ideia-matéria-forma, sobre a qual Straub insiste com particular veemência, parece-me legitimo dizer – até porque estou a falar de um filme de Pedro Costa e não de um filme dos Straub – que a obra straubiana com quem mais rima, não é Sicilia! nem Chronik, mas Von Heute auf Morgen, o filme dos Straub imediatamente anterior a Sicilia!
Como se sabe, ou se é suposto saber, Von Heute auf Morgen baseia-se na ópera homónima de Schönberg, terceira e última das óperas do compositor, estreada a 1 de Fevereiro de 1930. O libreto, da autoria da mulher de Schönberg, gertrud, sob o pseudónimo de Max Blonda (pseudónimo masculino, pois) situa a acção num apartamento da alta burguesia, regressado a casa, noite alta, após uma festa. Tudo o que se passa, passa-se durante a noite, uma «noite branca» em vários sentidos, até ao romper do dia. Recorrendo a uma tradição, velha como as «comédias de enganos», a intriga varia sobre o «on ne badine pas avec l´amour», com a mulher a provocar os ciúmes do marido e a tentar salvar o casamento da rotina e da superficialidade. Resumindo ainda mais, a conjugalidade é o grande tema dessa noite entre o hoje e o amanhã, para me refugiar na tradução literal de Von Heute auf Morgen. A «velha fidelidade» ou a «moderna infidelidade». Por alguma razão, Schönberg acabou a ópera com uma criança – o filho do casal – a perguntar à mãe o que é que quer dizer «pessoas modernas».
Ao contrário do que fizeram em 1974, quando adaptaram, também de Schönberg, Moses und Aaron, os Straub não recorreram a décors ditos «naturais» para esta segunda incursão no mundo do escritor vienense. Pela primeira e única vez na sua obra, filmaram tudo em estúdio, «numa incerteza entre o teatro e a vida». E só fugiram ao texto da ópera, uma única vez. No final, após a pergunta da criança, filmaram um muro com um grafito que, durante a rodagem, ocasionalmente lhes chamara a atenção. Wo liegt euer Lacheln begraben? O que se pode traduzir por Onde Jaz o teu sorriso oculto? ou, na mais explicativa tradução francesa (escolhida por Pedro Costa para titulo original do seu filme) Où gît votre sourire enfoui?, vertido mais elipticamente, no titulo português como Onde Jaz o Teu Sorriso?.
Nem o marido nem a mulher da ópera formulam, alguma vez, nesses termos, a pergunta sobre o que aconteceu ao amor deles, mas há múltiplas referências ao muito que mudaram e o marido, a dado passo, exprime mesmo saudade pelo brilho do olhar dela, o brilho de quando casaram, o brilho que ele já não vê. Aliás, é o tempo e a passagem do tempo o que domina a ópera de Schönberg, (e o filme dos Straub), como a questão da modernidade, da verdadeira modernidade, (a de Schönberg, utilizando, pela primeira vez o dodecafonismo serial numa obra cénica) à falsa modernidade, personificada no «casal livre» da ópera. Como escreveu Andreas Maul: «Schönberg, compositor “moderno” por excelência, troça, na sua ópera, de uma “modernidade” mal entendida. Os diálogos ligeiros conferem à obra a aparência de uma “ópera-bufa”, com repetido recurso ao coloquial para a assemelhar ao nível e à desenvoltura de um sketch musical».
3: a conversa vai estranha.
Se vim para falar de um filme de Pedro Costa, sobre e com os Straub, filme que têm como matéria o filme Sicilia! e não o filme Von Heute auf Morgen, porquê e para quê perder tanto tempo e espaço com Schönberg e com o filme dos Straub sobre a ópera de Schönberg?
Porque, na minha opinião (às vezes convém ser pedagógico) penso, genericamente, que tudo quanto disse se aplica tanto à ópera de Schönberg como ao filme de Pedro Costa; porque Pedro Costa, ao escolher para título do seu filme, uma frase daquele filme, me reenviou (não julgo das suas intenções, penso em factos) a três questões maiores que atravessam o cinema dos Straub e o cinema dele, e que, elíptica ou explicitamente, são as três questões maiores que atravessam a ópera de Schönberg.
a) Concebeu o seu filme como uma «arte poética», ou seja, como uma reflexão sobre o que o cinema é para os Straub e para ele. Situando-o num estúdio (não num estúdio de cinema, mas numa sala de montagem de um moderno estúdio de artes) deixou-nos na mesma incerteza entre o teatro e a vida (incerteza entre o cinema e a vida) em que os Straub nos quiseram deixar em Von Heute auf Morgen, ou, mais aventurosamente, em toda a sua obra. Do estúdio, nunca se sai do filme. Da sala de montagem sai incessantemente Jean-Marie Straub (para um corredor que nunca saberemos nem donde vem nem para onde vai) e sai Pedro Costa, com os Straub, por três vezes: duas para um auditório onde Straub, no lugar de professor, expõe aos seus alunos que participaram no mesmo atelier, as suas confissões maiores sobre o cinema e a vida; uma, a final, quando o par abandona (fim de um dia de trabalho) a sala de montagem e se prepara para sair para o exterior. Eventualmente, Danièlle Huillet saiu, mas Jean-Marie Straub detém-se num patamar a espreitar para o interior de um auditório (não vemos o que ele vê, nem sabemos o que ele espreita) e, depois de algum tempo como voyeur, senta-se no degrau de uma escada, e fica de cabeça entre as mãos, em cansaço ou reflexão, até o plano fundir em negro para o genérico final.
E, enquanto entra e sai, em permanente agitação, em permanente solilóquio, permanentemente a fumar, na sala de montagem (quase todo o filme) não cessa de expor a sua «arte poética» (a sua teoria de cinema) quer recorrendo à teoria, quer contando histórias, quer socorrendo-se da história do cinema (Chaplin, Eisenstein, Dreyer, Bresson, Buñuel, Nicholas Ray, Godard, cassavetes, etc., são dos muitos autores citados).
Mas a arte leva consigo uma espécie de rudeza, como dizia o velho Mathias Ayres. Straub não é um teórico, ou não é sobretudo um teórico. E a sua «arte poética» exprime-se sobretudo ligada à prática, ou seja à montagem (ou remontagem) do seu filme Sicilia!, tão cerne deste filme como o corpo e as vestes da mulher o eram na ópera de Schönberg. Essa é a matéria (para voltar ao vocabulário straubiano) com que Pedro Costa deu forma à sua ideia de um filme sobre os Straub. E através da qual nos comunicou a sua própria arte poética, ou seja a sua absorção da arte poética dos Straub na arte poética dele. Herdeira da deles mas não inteiramente coincidente com a deles.
b) Subjacente ao filme (subjacente?) está também a reflexão sobre a modernidade no cinema, sobre o «was ist das die Modernitat», modificando muito pouco a pergunta final da criança de Von Heute auf Morgen.
Longe vão os anos 60 e 70 em que o cinema dos Straub era o nec plus ultra dessa modernidade. As «pessoas modernas» hoje, ultrapassados até os chavões sem sentido do que chegou a ser chamado «post-modernismo» (a expressão mais contraditória nos termos que inventar se pôde) rejeitam esse cinema como relíquia pré-histórica, último suspiro de uma raça em vias de extinção, que acreditava em arte, em cinema como este e em cinema como forma de expressão individual e colectiva. O cinema dos Straub – hoje – como o cinema de Pedro Costa, é um cinema de resistência, à margem de qualquer discurso dominante.
Onde está a modernidade? No fundo daquela sala de montagem, onde Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet lutam, fotograma a fotograma, para chegar à forma que exprima com fidelidade a ideia deles, dedicando horas de tempo a segundos de filme?
Ou no que se passa lá fora, nos outros estúdios de cinema, nas produções que são vistas por milhões e que dão milhões a ganhar?
A resposta de Pedro Costa – como a dos Straub – é inequívoca. Mesmo que sejam os últimos, serão fiéis até ao fim. Mas é sobre isso – sendo o isso o cinema – que Onde Jaz o Teu Sorriso? é. Como o era, há setenta e alguns anos, a ópera de Schönberg.
O oculto – o sorriso oculto – é o sorriso deste cinema jacente e ressurrecto. Neste filme e enquanto se fizerem filmes como este.
c) Mas há também a questão da conjugalidade. Os Straub não são um, são dois e dois que são marido e mulher. Jean-Marie e Danièle. E todo o filme é um filme sobre a relação daquele casal, sobre a paz e a guerra conjugal.
Contrastando com a permanente mobilidade de Jean-Marie, com as suas idas e vindas, com o seu in e com o seu off, temos a imobilidade quase permanente de Danièle Huillet, que nunca se levanta da mesa de montagem (a não ser quando o dia de trabalho acabou), que quase não fala e que nunca desvia os olhos da mesa de montagem. Ele fala, fala, fala. Ela responde-lhe cortantemente, tratando-o sempre por «vous», ora por «Jean-Marie», ora por «Straub». Certamente conhece de cór e salteado todas as histórias que ele conta, certamente antecipa e adivinha as soluções que ele pensou encobrir e ela lhe dá, de fotograma beijado. Mas, como em todas as discussões de velhos casais, repetem-se incessantemente discussões velhas como eles, mas que os apaixonam, irritam ou enfurecem como sempre os apaixonaram, irritaram ou enfureceram.
Li numa critica ao filme uma comparação que não me parece nada parva: a guerra Jean-Marie – Danièle parece repetir as guerras conjugais de Spencer Tracy e Katherine Hepburn nas comédias clássicas de Cukor. Até fisicamente, qualquer deles faz lembrar os actores citados. Adam´s Rib. Pat and Mike. Tracy e Hepburn discutiam sobre outras coisas? É bem verdade. Como é bem verdade que era sobre outra coisa que discutiam o marido e a mulher na ópera de Schönberg. Mas a violência e a ternura (para usar termos utilizados por Straub no filme) são idênticos, como idêntica é a comunhão e a separação. Nenhum deles assume a divisão de trabalho (género eu trato da montagem, você trata da rodagem). Como não vimos a rodagem, não sabemos do lugar que qualquer deles teve nela. Mas a obra é na montagem comum, por mais que Straub se afaste da mesa e Danièle se agarre a ela. A rivalidade está implícita e não precisa de ser explicitada, como a comunhão. A discussão faz parte do jogo, é regra do jogo, aceite pelos dois, por muito que ou um ou o outro pareçam impacientar-se com a obstrução. Uma tal conflitualidade cúmplice ou uma tal cúmplice conflitualidade só pode ser conjugal. Mesmo que nunca se toquem, mesmo que nunca nenhuma intimidade intervenha (até há o vous, até há o Straub e nunca há o Danièle) sentimos a cada momento a história comum, o passado comum, medido a vinte e dois filmes e trinta e oito anos de vida.
O tom de voz de qualquer deles é sempre crispado, agressivo, quase violento. Nunca os vemos brincar, nunca os vemos rir (à excepção de uma breve gargalhada, que não sabemos a quem atribuir). Mas sabemos que ambos se lembram (e não estou a fazer poesia) do sorriso que nos fica oculto e que a pergunta tutelar a ambos interpela também. Como todos os grandes filmes, Onde Jaz o Teu Sorriso? é também um filme de amor e foi sobretudo para um filme de amor que Pedro Costa nos convocou.
4: Mas há outra questão e é a minha questão final.
Durante todo o filme – já o disse – quase não saímos de uma sala de montagem nas profundezas de um estúdio. Von Heute auf Morgen (neste caso de manhã à noite) aquele casal esteve enterrado numa sala subterrânea, sem luz que não luz artificial, sem qualquer contacto com o exterior e com a luz «natural».
Será por acaso que nunca os vemos chegar cá fora? Sabemos que vão sair, sabemos que vão voltar para casa. Mas perdemo-nos deles nas subidas das escadas e ficamos com ele, a meio da subida, prostrado num degrau.
Pouco antes, Jean-Marie notou à mulher que a vida deles, comparada com a vida de 90% das pessoas, é uma vida feliz. O trabalho deles é um trabalho feito por prazer, enquanto o comum dos mortais trabalha para viver.
Mas o princípio do prazer está ausente do filme, ou o sinal dele fica-nos tão oculto como o sorriso ou os sorrisos.
Ou como esse sorriso, que Danièle Huillet vê esboçar-se no rosto do céptico protagonista de Sicilia!, quando, na carruagem do comboio para Catania , o companheiro de viagem se apresenta como chefe do cadastro. «É preciso que o espectador o perceba» diz-lhe Straub, «perceba que ele não se deixa levar pelas lérias do outro». Mas até esse sorriso ficou oculto. Como todos os outros, jaz algures. Onde? É a pergunta capital do filme de Pedro Costa.
«Por nós, por ti, por mim, falou a dor/E a dor é evidente/libertada».
Este filme lembrou-me esse final do soneto final de Jorge de Sena em As Evidências. Esse soneto que fala da «cendrada luz». Tudo se aplica menos a libertação. Seja por ela a minha última pergunta a Pedro Costa.