Thierry Lounas
Discussão elíptica, comentários cruzados, contradição e discussão, se necessário: a solução encontrada não é intermédia e a lição de montagem é muito pouco didáctica.
Danièle Huillet, sentada à mesa de montagem, concentra-se no ecrã, deixa correr os fotogramas da frente para trás, de trás para a frente, em busca de um ponto de corte possível. Jean-Marie Straub, sentado um bom metro atrás dela, falsamente distraído, gesticula como um menino de escola, realça os efeitos mortíferos das ideias demasiado sedutoras e dos raccords perfeitos, mas está sempre pronto para uma divagação teórica. O que aqui se procura não é a fluidez ou legibilidade da montagem. Por isso, é perfeitamente natural que o espectáculo do trabalho dos cineastas possua também algo de hermético. Depois, a pouco e pouco, vamo-nos adaptando. Vão-se preenchendo os vazios, vamo-nos habituando ao implícito do pequeno teatro. Os movimentos, o ritual tornam-se familiares: trabalho de pesquisa, assistência silenciosa, depois, cerimónia do corte por Danièle Huillet, de luvas, enquanto Jean-Marie Straub, que saiu da sala, anda de um lado para o outro no corredor, irrompe de vez em quando pela sala e faz algumas reflexões, para si próprio, para o fora de campo, para Danièle. Mas o recreio é curto. È repreendido. Porta fechada. Luz apagada. Regresso ao lugar.
É-me difícil ser apenas o relator/espectador de Onde Jaz o teu Sorriso?, na medida em que participei na sua feitura.
Eu conhecia os Straub. Sabia que iam montar uma terceira versão de Sicília! na presença dos alunos do Studio National des Arts Contemporains de Le Fresnoy. Sugeri a Pedro Costa que os filmasse, nessa ocasião. Respondiu-me que gostaria muito. O que se segui é muito simples e, simultaneamente, muito complicado; tem quase a ver com o bom senso. Houve algumas constatações práticas, ligadas ao método de trabalho de Straub, que orientaram o filme. As mais determinantes foram as seguintes.
Num primeiro momento, os Straub não queriam fazer o filme. Não queriam um documento oficial. Achavam que seria comprometerem-se a deixar pistas, dar mostras de vaidade, quando as únicas pistas admissíveis eram os seus filmes. Havia, depois, o receio do álibi cultural: parecia mais lucrativo para o canal televisivo ARTE produzir um filme sobre eles do que apoiar ou comprar os seus próprios filmes. Finalmente, a exiguidade da sala de montagem de Le fresnoy dificultava a presença de uma equipa de filmagens, mesmo reduzida.
Penso que houve duas coisas que os tranquilizaram: a leitura da recensão feita por Emmanuel Burdeau nos Cahiers du Cinema sobre a rodagem, com uma pequena câmara digital, de No Quarto da Vanda, e o facto de Jacques Rivette, que os Straub admiram, gostar muito dos filmes de Pedro Costa, que eles, Straub, ainda não conheciam. Finalmente, não disseram que sim, mas também não disseram que não. A única recomendação era não perturbar Danièle Huillet, nem os alunos.
O sucesso do filme – e digo «sucesso» porque, antes de ser um belo filme, Onde Jaz o teu Sorriso? exigiu alguma sorte e umas quantas coincidências – reside, na minha opinião, numa evidência e dos seus corolários. A evidência é que o esquema clássico «entrevista mais excertos» não poderia de forma alguma servir para o que se queria fazer.
1. Primeiro, porque é um esquema académico e feio.
2. Jean-Marie Straub, como bom porta-voz (e, em primeiro lugar, de sua mulher, Danièle Huillet) tem um discurso a toda a prova, forjado e cultivado, ano após ano. Analisado só por si, esse discurso, dificilmente permeável, poderia ser considerado dogmático e visto como mais um discurso de verdade (a utilização do som directo, o respeito da perspectiva, a abstracção necessária da representação do actor, etc.) quando, pelo contrário, inserido no contexto de trabalho de ambos, talvez revelasse uma incrível preocupação de eficácia e de intensidade. E o que se vê é, precisamente, uma tensão: em cada um dos seus planos, o cineasta hesita, contradiz-se e recomeça, entre a maravilhosa eficácia do cinema clássico e a intensidade formal de um cinema mais experimental. Os Straub citam constantemente (quase por uma questão de moral) Renoir, Chaplin, Mizoguchi ou Dreyer. É mais raro evocarem, decerto por prudência, Hitchcock, Rouch ou Snow.
3. Os Straub são dois, não dois irmãos, como recentemente ouvi dizer, mas um casal. Um deles fala em público. O outro fica na sombra, saindo voluntariamente da cena espectacular, porque, como diz a própria Danièle: «O Jean-Marie fala por mim, por nós». Filmar apenas Jean-Marie Straub a falar seria o mesmo, para usar um exemplo straubiano, que dar a palavra a Aarão, sem nunca mostrar ou fazer ouvir o diálogo ou a discussão com Moisés. Mais simplesmente ainda, um filme dedicado a um casal de cineastas deve ser, necessariamente e acima de tudo, um filme sobre um casal. Aliás, um dos mais belos casais que me foi dado conhecer.
4. Outra das grandes vantagens de filmar o trabalho dos Straub, em vez de uma série de entrevistas, tem a ver com a evidência de que a dificuldade não seria a mesma e a discrição, obrigatória nesse caso, daria lugar a uma ficção mais generosa. Para qualquer filme, mas sobretudo num filme dedicado a um cineasta, a menor modéstia é que o cinema não seja mais forte, nomeadamente pelos seus meios, do que aquilo que se filma. A lógica da entrevista, a mise-en-scène, em geral, são, nesta matéria, sempre duvidosas porque submeteram tudo ao filme. Assim, quando não se quer ser demiurgo, tem que se proceder de forma diferente. A primeira prioridade é arranjar maneira de a relação de forças com aquilo que se filma não jogar unicamente a nosso favor. Caso contrário, surgem inevitavelmente os anedóticos e insolúveis problemas do «natural corrompido pela presença da câmara». Tem de haver sempre uma situação (nem que seja criada artificialmente) que marginalize o cinema e o obrigue a firmar um novo acordo com aquilo que se capta. Ganha-se mais com a troca e a paciência do que com a expressão vampírica da nossa própria imaginação. Pedro Costa, por coincidência, já o havia compreendido em No Quarto da Vanda.
Pensávamos que o momento da rodagem não era o mais propício. A maioria das opções e dos pormenores importantes são decididos muito cedo. A planificação, o trabalho sobre o texto com os actores, fazem-se durante os meses que antecedem a rodagem. Portanto, falta sempre qualquer coisa a quem assiste e, mais ainda, a quem quiser fazer uma descrição precisa. Além disso, sabíamos que seria difícil, admitindo que tivesse algum interesse, obter autorização para filmar durante as cenas, e que só poderíamos ter acesso ao trabalho de preparação dos planos.
A perspectiva de uma terceira versão de Sicília!, de uma terceira montagem, era, portanto, ideal. Permitia um acompanhamento constante da montagem, o que não teria acontecido na primeira versão. E permitia igualmente articular, melhor do que em qualquer outro momento do trabalho dos cineastas, o discurso prático e teórico.
Pedro Costa também tinha pensado filmar os ensaios de Operai, Contadini, no Teatro Comunal Franceco di Bartolo, de Buti, em Itália, por um lado, para compreender melhor como é que, nos Straub, se faz a passagem de um filme para outro e, por outro lado, para mostrar o trabalho minucioso que é feito com os actores sobre um texto. Seis meses depois da montagem de Sicília!, foi filmar alguns desses ensaios. Ficaram registadas umas trinta horas, mas essa parte italiana não aparece na montagem final de Onde Jaz o teu Sorriso?. Pedro Costa preferiu preservar a coerência espacial da sala de montagem e não fazer «transbordar» o filme. Sendo a versão longa o que é, dificilmente se imagina como é que esse pequeno teatro straubiano teria passado incólume pelos ensaios.
Le Fresnoy é uma escola enorme, com uma arquitectura contemporânea, construída nos bairros operários dos arredores de Lille. É um local frio e fantasmagórico. A rodagem começa com uma equipa reduzida: Pedro Costa, com a pequena câmara Panasonic que já tinha servido para No Quarto da Vanda; Jeanne Lapoirie, com mais uma câmara digital, um director de som, Matthieu Imbert. A sala não é grande, os alunos ocupam-na quase toda. Está escuro. Felizmente, há um candeeiro de mesa que se acende automaticamente quando a película deixa de correr, o que dá uns raios de luz ao filme. Costa resolveu colocar-se atrás de Jean-Marie-Straub, enquanto a outra câmara foi colocada no outro lado, mais perto da porta, para não perturbar os alunos e enquadrar o vaivém de Jean-Marie.
Seria necessário filmar os alunos? A montagem propriamente dita não exige contracampo. Todavia, quando Straub sobe à tribuna, quem é o interlocutor? A quem se dirige, quando não se dirige a Daniélle Huillet? Os bons costumes documentaristas exigiriam que se inserisse, pelo menos uma vez, se possível muito cedo, um local de escuta os rostos alegres, ou não, dos alunos de Le Fresnoy. Ora, esses rostos não estão no filme. Onde Jaz o teu Sorriso? é um espectáculo sem espectador, sem outros espectadores a não ser nós mesmos. É o que confere a este filme a sua extraordinária força teatral. A invisibilidade inicialmente desconcertante da audiência converte-se em mera frontalidade onde as intervenções de Straub figuram como apartes. Não são caricaturais. São mais subtis e problemáticas, mais próximas do one-man-show.
Numa situação de monólogo, há dois comportamentos possíveis. Há quem deseje que tudo tenha um cunho muito pessoal e seja dito olhos nos olhos, para dar a ilusão democrática de um intercâmbio possível e, sobretudo, para não haver ambiguidades acerca da originalidade do que é dito. E também há quem só de vez em quando encare o interlocutor, olhando para outro lado e acompanhando, por vezes, esse olhar errante por uma errância real. Straub faz parte desta segunda categoria. Só episodicamente se dirige à assistência, um pouco à maneira de Jean-Pierre Léaud, e raiando sempre o solilóquio. Está – e isso é perturbador – ao mesmo tempo in e off, dando espectáculo para Daniélle Huillet, para os alunos presentes e para a câmara, mas também, de certa maneira, para o espectador desconhecido. Se assim é, para quê mostrar um fora de campo qualquer, já que o fora de campo, o off deste pequeno teatro, é o próprio Straub, que transforma o corredor em bastidores onde se esconde.
Estas notas, ainda que dispersas, pretendem revelar um sentimento: entre os filmes dos Straub e os últimos filmes de Pedro Costa, embora a sua concepção seja muito diferente (os primeiros foram concebidos antes da rodagem, os outros, depois), há uma preocupação comum, vital e determinante: fazer cinema sem lhe ser devoto, exprimir com o cinema o que não lhe pertence exclusivamente. Quer isto dizer, mais concretamente, que cada uma das fases de criação de um filme não tem o carácter lamentável e ridículo das produções clássicas. É ridículo ver que é tudo representação. É ridículo ver que é tudo simulação – a desmistificação gerada, normalmente, pelo espectáculo da rodagem só está, infelizmente, à altura da preocupação de mistificação que o rege (recusam-se os artifícios da série B). O documentário é o local privilegiado para essas aberrações e esse esquematismo.
Pensa-se, filma-se, faz-se a montagem, tendo em mente uma forma de cinema. Não se fica preso a nada e, inexoravelmente, perde-se firmeza. Quer-se a forma antes da ideia e isso é, precisamente, o que não se deve fazer. Aliás, Straub é categórico sobre esses assuntos, no inicio de Onde Jaz o teu Sorriso?. «Não se pode dizer isto ou aquilo, é evidente, em primeiro lugar há a ideia. Do encontro da ideia coma matéria nasce a forma.» Van Der Keuken também falava assim dos seus filmes. Para ele, os vaivém constante entre as intenções e os obstáculos era a expressão suprema da improvisação, ao contrário das ideias preconcebidas. A improvisação não é o lugar ameno da espontaneidade, da fusão, de uma imanência graciosa e desinteressada. A improvisação é conflituosa e difícil: Costa faz o enquadramento, fixa, compõe o plano, ilumina o menos possível para não incomodar, conhece cada vez melhor a mise-en-scène do lugar e tenta antecipar o esquema da montagem, pensa nos vários ângulos, não esquece os «pequenos planos», não omite as situações mais «picantes», aceita perder muito para não sabotar o que filma. Um pouco como o ciné-transe de Jean Rouch.