domingo, 28 de junho de 2009


Ne Change Rien, de Pedro Costa (Portugal/França, 2009) – Quinzena dos Realizadores

por Eduardo Valente, Maio de 2009

Existe uma pergunta que volta e meia aparece em textos críticos: o que é o essencial do cinema (ou por outra, o que é o cinema)? Claro que uma pergunta genérica e abrangente como esta permite inúmeras respostas “certas”, ao gosto do freguês, mas o fato é que (pelo menos após a inserção do cinema sonoro), ninguém poderá discordar que o essencial do cinema é: luz e som. Pois parece mesmo que, neste filme, Pedro Costa (alguém cujo cinema já não é nada estranho à associação com a palavra “essencial”) se dedica a exatamente esta missão: filmar a luz e o som, quase em estado bruto. E é para cumprir com essa missão tão simples quanto impossível, que ele se utilizará (por mais que ele prefira dizer, como hoje na entrevista depois da sessão, que o seu cinema é que está sempre a serviço de algo) da atriz Jeanne Balibar, no exercício de sua ocupação paralela como cantora.

Para ir mais adiante no filme, é interessante voltar à entrevista de Costa dois anos atrás, quando perguntando sobre outros filmes que o inspiravam ou obras que gostaria de realizar falou que gostaria de adaptar para o cinema o disco “Innervisions”, de Stevie Wonder. Bem entendido: mais do que um desejo real ou um projeto, Costa brincava para dizer que algumas das obras que mais o inspiram nada têm a ver com cinema nem com a literatura (fonte comum de adaptações para o cinema). Pois Ne Change Rien fecha com essa afirmação de Costa de maneira marcante, porque se há algo que fica claro no filme é o quanto de admiração pelo ato de produzir música existe por trás do realizador. Mais do que isso, poderíamos até dizer que há uma sensação sincera do filme ser feito por alguém que gostaria de ser, ele mesmo, músico, tal a devoção exibida frente ao ofício de alguém como Balibar ou como Rodolphe Burger, parceiro desta na carreira musical.

O que Costa faz aqui é acompanhar ao longo de alguns anos (embora essa informação entendida como tal não faça parte do filme – assim como nenhuma outra, aliás) a relação de Balibar com a música: ensaiando e gravando com Burger e os outros membros de sua banda; cantando e tocando num show; ensaiando e cantando numa encenação de ópera. Este mesmo material, que usualmente termina em inúmeros formatos repetitivos de DVD (seja o do show ou o dos “bastidores” de realização de algo), vira nas mãos de Costa a motivação para um trabalho que parece equidistante da abstração completa (algo de que, afinal, a música se aproxima com naturalidade) e da mais física e concreta matéria (pois a música precisa ser produzida por instrumentos, cordas vocais, do esforço de pessoas através de inúmeras repetições).

No campo da imagem, Costa aproveita-se dos meios absolutamente restritos de sua realização (como ele disse na entrevista, este é um filme feito por quatro pessoas: ele, Balibar, Burger e um técnico de som) para trabalhar com uma iluminação mínima que se torna, como de hábito nos filmes dele, sofisticadíssima pela maneira de enquadrar e posicioná-la. É através deste trabalho que o filme vira um dos mais incríveis exercícios de claro-escuro da história do cinema (vale a hipérbole), emprestando a cada imagem um elemento de mistério e de relação com algo desconhecido ou invisível que acaba sendo uma representação precisa do que realizam em cena os músicos. Dessa maneira, Costa acaba realizando aquele que é, sem dúvida e em todos os sentidos do termo, um dos mais belos filmes sobre música jamais realizados. Não é pouco.

Revista Cinética