sexta-feira, 9 de abril de 2010

Durante o trabalho

por Carlos Melo Ferreira


Dizer que “Ne Change Rien, o último filme de Pedro Costa (2009), é um filme belíssimo não diz quase nada e é, no entanto, a estrita verdade.
Rodado em mini DV a cores, o filme foi passado a preto e branco durante a montagem e pode considerar-se decisiva essa opção do cineasta, já que o preto e branco marca o filme de forma indelével, tornando-se indissociável dele. Se um sopro narrativo romântico atravessa aquilo que poderia ser um simples, embora muito livre, documento de ensaios de Jeanne Balibar, tal fica a dever-se em grande medida a essa decisão tardia, que explica que a fotografia surja como escura e sombria, num preto e branco muito distante do da primeira longa-metragem do cineasta, “O Sangue” (1989). Ora é o regime visual assim criado que, em primeiro lugar, liberta os fantasmas que atravessam o filme a partir das figuras, das vozes, da música tocada e cantada.
Mas a própria sequência das imagens e dos sons, que acaba por se estruturar, na segunda parte do filme, nos ensaios de “La Périchole”, opereta de Jacques Offenbach, torna fulgurante a passagem do mero registo passivo dos ensaios de uma banda ou de um concerto, a que o cinema para o pior e para o melhor já nos habituou, para um tom de insinuada narrativa de amores frustres e perseguidos, em fuga. Não chega a haver uma linha narrativa expressa, mas as próprias canções, as letras delas, as palavras trocadas entre a cantora e os membros da banda que a acompanha, mesmo as sonoridades musicais ganham, graças à montagem, uma vida nova, que lhes dá sentido e cria o sentido do filme.
De facto, “Ne Change Rien” arranca sobre “Peines perdues” e aí vai regressar para a fabulosa sequência de imagens que culmina com o plano das duas japonesas (uma das quais se levanta e sai no final), e a partir daí vai ser o ensaio de Offenbach, com a sua encenação própria, que vai dominar, regressando recorrentemente, para se preparar um final em perda a partir de “Ton Diable”. Esta simples arrumação formal permite que se soltem os fantasmas que habitam aquelas imagens a preto e branco e aqueles sons, vozes e música, que remetem de forma inequívoca para a história, o passado do cinema, nomeadamente para essa figura incontornável dos filmes de Pedro Costa que é Jacques Tourneur. Com efeito, sob as referências expressas a John Ford, nas figuras do pianista e do homem que atravessa a porta no final do ensaio de Offenbach, e a Nicholas Ray, na sugestão do par em fuga (o momento em que Jeanne canta “Johnny Guitar” é de puro encantamento cinematográfico, já que então ela canta com todas as vozes que para nós cantaram essa canção), aquilo que mais fortemente se desprende da pessoa da cantora e actriz durante o filme é a sua metamorfose, as transformações que ela sofre de canção em canção, de tentativa em ensaio, de plano em plano e no interior do mesmo plano, sem que, todavia, seja mostrado nada mais além dela e dos que a rodeiam no estúdio. Apenas se verifica que o preto e branco lhe acentua os contornos e traços do rosto, que ganham uma ainda maior, excepcional expressividade, que lhe anima o corpo e que o corpo dela anima, o que se torna vertiginoso quando modulado pelas pálpebras dela quando se fecham, pelos olhos dela quando abertos, atentos ou cansados, vivos e atravessados, também eles, pela ligeira ironia proveniente dos seus lábios. Ora, como se sabe, a metamorfose é uma figura central nos filmes fantásticos de Jacques Tourneur.
Outra coisa que impressiona e merece toda a atenção é a insistência de Pedro Costa nos planos fixos e longos, que permitem ritmar um filme centrado em canções e música de forma diferente e que são uma constante da obra dele, especialmente trabalhada a partir de “No quarto da Vanda” (2000). Esse facto vai permitir acentuar o cenário fechado, de estúdio, em que os ensaios decorrem, em que a porta visível dá para os bastidores e apenas através das vidraças de uma janela se vislumbra, por momentos, o exterior. Mas dentro desse espaço e durante esses ensaios passam-se imensas coisas entre as personagens (cantora e banda, cantora e ensaiadora, cantora, outros cantores, o pianista), mas delas destaca-se uma enorme quantidade e variedade de emoções da própria cantora, prodigiosa Jeanne Balibar, que é quem em primeiro lugar o cineasta trabalha, quem em primeiro lugar ele capta durante o trabalho. E se no início a figura dela, rosto e braços, se recortava contra um fundo escuro que uma luz ou um reflexo dela pontuavam - e todo o trabalho de iluminação dos rostos e dos espaços é, durante essa primeira parte, de uma grande precisão -, para o final as paredes surgem mais claras, mais iluminadas, e a figura dela, sempre vestida de escuro, passa a recortar-se contra elas, acompanhando a tendência para planos mais afastados, mais abertos.
Faltará ainda uma referência, que se afigura capital. De facto, “Ne Change Rien” é feito contra os hábitos dos espectadores do comum, e tantas vezes banal, cinema comercial de hoje, e vai insistir num distanciamento que vem dos filmes anteriores do cineasta, a que, no entanto, quer o som ruidoso da banda, quer a voz, ora hesitante, ora justa da cantora, não dão tréguas. Assim, se o preto e branco do filme cria, por si mesmo, um princípio de estranheza e de distanciamento, que a duração em geral longa dos planos acentua, tudo isso é abalado nas suas próprias bases pelo que se diz, pelo que se canta e se toca, pelo sentido que tudo isso faz, que é também sugestivo de narrativa, de narrativas fragmentárias no contexto fílmico criado.
Chamando as coisas pelos nomes, o distanciamento abertamente criado neste filme tem, como nos anteriores filmes do cineasta, um tom que é trabalhado pela influência dos Straub, que ele filmou em “Où gît votre sourire enfoui?” (2001), mas também por uma influência muito godardiana, manifesta na configuração da sugestão dos fugitivos numa narrativa lacunar - que, se vem de “Os Filhos da Noite”/“They Live By Night”, de Ray (1948), passa também pelo inaugural “O Acossado”/”À Bout de Souffle”, a longa-metragem de estreia de Jean-Luc Godard (1960) - e na liberdade de trabalhar autonomamente imagens e sons, presente em trabalhos mais recentes dele, nomeadamente naqueles que fez em vídeo a partir da década de 70 do século passado. Agora que esse trabalho sobre imagens e sons venha introduzir um novo princípio de fascinação, elaborado de forma diferente do que é usual no cinema, será já uma outra questão, que haverá que relacionar com as sugestões narrativas mas também com o excelente trabalho com o fora de campo - a longa sequência da lição de canto, em que a cantora treina, ensaia o seu “instrumento”, a sua voz, é a este respeito prodigiosa, e se não é caso único na obra do cineasta terá tudo que ver também com a inspiração em (e a influência de) Andy Warhol.
Profundamente trabalhado pela memória do cinema, em “Ne Change Rien” Pedro Costa filma Jeanne Balibar, já por duas vezes actriz em filmes de Jacques Rivette, em si mesma, por si mesma e sem tropeçar de ternura por ela, mas também como uma continuação, uma rememoração e uma nova síntese das mulheres que filmou antes, de Inês Medeiros, Isabel de Castro, Edith Scob, Isabel Ruth até, mais recentemente, Vanda e Zita Duarte, Danièle Huillet. Nesse aspecto (dir-se-ia que sobretudo, embora não exclusivamente nesse aspecto), o filme é também uma fabulosa súmula da obra do cineasta até agora.
Deste modo, o mais recente filme de Pedro Costa, para além de belíssimo, como se disse inicialmente, confirma o seu autor como um dos mais importantes cineastas deste início de século. Uma parte absolutamente imprescindível do melhor cinema actual passa pelos filmes dele, está a passar por aqui.


Revista "Cinema", nº 41.