domingo, 26 de setembro de 2010

O NEGRO É UMA COR ou
O CINEMA DE PEDRO COSTA


João Bénard da Costa


Nos nossos dias, arte
radical significa arte sombria,
negra como a cor fundamental
Theodor W. Adorno

Méfiez-vous des roses noires
II en sort une langueur
Épuisante et l'on en meurt

Robert Desnos


The Blackness of Black



De 30 de Junho a 5 de Novembro de 2006, a Fundação Maeght de Saint-Paul de Vence organizou uma exposição, "homenagem viva a Aimê Maeght", no centenário do seu nascimento, comissariada por Dominique Païni, à época director artístico da citada fundação.

O título era o mesmo da primeira exposição organizada por Aimê Maeght em Dezembro de 1946, em Paris: "Le noir est une couleur", frase atribuída a Matisse e que em português tanto se pode traduzir por "o negro é uma cor" como por "o preto é uma cor", única língua que conheço em que os termos são rigorosamente sinónimos 1. Em 1946, a seguir à guerra, o título, sem esquecer as ruínas e os lutos, transformava-se em energia e esperança, em cor. Em 2006, após cerca de sessenta anos, a frase de Matisse quase que adquire um sentido inverso, como se, chegado o tempo de abandonar "os prazeres pueris das cores", ficasse o negro, "fogueira apagada, consumida, que cessou de arder", "fim dos fins" a que talvez se siga - quem sabe? - "o nascimento de um outro mundo" (Kandinsky).

O negro é uma cor? Longa polémica?

Durante a Idade Média, o negro foi cor interdita devido à sua associação com o demoníaco ou com a melancolia 2. Só no Renascimento o negro se afirmou como cor nos retratos de Lotto, Tiziano, Tintoretto, Dürer, Holbein, etc. Curiosamente, foi pelo realismo que o negro se introduziu. Se de negro se vestiam os reis e nobres retratados, como pintá-los diversamente? O maneirismo insinua-se por essa brecha. Fugindo ao idealismo renascentista, e em plena época da Contra-Reforma, a grande pintura devia ser a de uma dramaturgia onde as trevas e as luzes violentamente se contestassem e violentamente contrastassem. Quanto maior o negrume, maior a luminosidade. Cerca de cem anos mais tarde - as Pinturas Negras de Goya - já só o negrume, que o sono da razão gera monstros e todos somos os filhos devorados por Saturno. Goya levou às últimas consequências o tenebrismo do século precedente, ou libertou a pintura de visões de luxo, calma e volúpia? Tinha que ir dar uma longa volta pelo romantismo, pelo impressionismo e pelo simbolismo para responder e o tema do artigo impõe-me limites.

Recordo apenas três pontos capitais para esse mesmo tema:

a) O negro como cor emblemática das vanguardas mais incisivas, desde Kandinsky e Malevich às grandes obscuridades de Mark Rothko. Se há, na história da pintura do século xx, quem o tenha usado como apelo da noite, ou apelo à noite, ou como expressão da "treva mais que mística do silêncio" (as Iconostasis de Parmiggiani, por exemplo) a maior parte dos grandes pintores utilizaram-no ou como exorcismo ou como reforço da ameaça. The Blackness of Black, para citar o título de uma tela célebre de Motherwell ou a aproximação a Beckett de Judit Reigls 3.

b) O surto de novas artes figurativas (a fotografia, o cinema), de que grande parte da história só se pode fazer a preto e branco ou com tintagens posteriores, químicas ou manuais.

No caso do cinema, do advento do sonoro aos anos 50-60, a grande parte da produção é a preto e branco, tornando-o, como na profecia seiscentista de Kirscher, "a grande arte da luz e das sombras". Sobretudo o cinema americano, nos anos 40 e 50, foi, muito mais do que um cinema expressionista, como hoje errada e apressadamente se diz, um cinema nocturno e um cinema negro, alegoricamente reproduzindo o combate das luzes e das trevas, com o branco muito branco para as primeiras e o negro muito negro para as segundas. Nunca, talvez, o negro tenha sido tanto uma cor como nessa época da história do cinema.

c) Mas a partir dos anos 60 (na América) e dos anos 70 (um pouco por toda a parte) o preto e branco, no cinema (muito mais do que na fotografia, o que levaria a outra digressão) desaparece, como desaparecera, nos anos 50, o onirisco tecnicolorizado, só surgindo em casos excepcionais e por criadores que como excepção se assumiam 4. Ou seja, em épocas em que lhe coube na pintura uma primazia e um significado fundamentais (no sentido do nosso próprio fundamento) o negro deixou de ser uma cor no cinema, ou rarissimamente o foi, a não ser como efeito especial (penso por exemplo no filme de Malick, The Thin Red Line [1998]).

Sob este pano de fundo, posso passar à obra de Pedro Costa. Ou eu vejo tudo escuro ou só nesse escuro ela se deixa ver com a sua assombrosa claridade.

Sangue escuro e sarça ardente

Em 1989, aos 30 anos, Pedro Costa iniciou o seu primeiro filme, O Sangue, estreado em 1990, e que obteve, nesse ano, a Menção da Crítica de Roterdão.

Com Pedro Hestnes Ferreira e Inês Medeiros (actores típicos desses anos, actores da geração de Pedro Costa) nos protagonistas e ainda com secundários tão relevantes, na história do nosso cinema e do nosso teatro, como Canto e Castro, Luis Miguel Cintra, Isabel de Castro, Henrique Viana e Manuela de Freitas (parece o cast quase exemplar de um filme "política e esteticamente correcto" desses anos).

O Sangue começa quase de noite ou quase de dia, à hora indistinta do escurecer e do clarear. Antes de o sabermos, e durante alguns segundos é só o que sabemos, ainda não vimos ninguém. Mas já vimos negro. O negro, o muito negro, dos planos negros do início do filme. Misturados com eles, diversos ruídos: trovões, vento, motores de arranque e de desarranque. De súbito - um dos começos mais súbitos de qualquer filme, como sempre sucederia depois em filmes de Pedro Costa - vinda do escuro, a primeira personagem do filme está diante de nós. Um rapaz alto, novo, magro, com expressão obstinada. É enquadrado a meio-corpo (plano de busto) e se está diante de nós não nos olha a nós. Olha quem? A resposta não vem de nenhuma palavra mas duma mão que atravessa rapidíssima o enquadramento e lhe dá uma bofetada. Contraplano (ou novo plano?) e vemos quem deu a bofetada. Um homem baixo, de meia idade, gordo, com uma expressão perdida. Novo contraplano (ou novo plano) e voltamos a ver o rapaz. A expressão não mudou, continua a olhar o homem mais velho e não esboça nem movimento de defesa nem movimento de resposta. Seguem-se mais dois contraplanos (ou mais dois planos), o primeiro do homem olhando o imóvel rapaz, o segundo deste. Pela primeira vez, alguém fala. É o rapaz. E diz: "Faça de mim o que quiser." O ecrã volta a ficar todo escuro, todo negro.

Mas sabemos que entre aquele rapaz e aquele homem - filho e pai, como a seu tempo saberemos - se perdeu a confiança. Só a morte é tão súbita, tão preparada e tão irremediável como a confiança perdida. Diz-se "faça de mim o que quiser", mas não há qualquer doação ou qualquer entrega. Não há nada. Nada que se possa fazer. Nada que se possa dizer. Nada que se possa ver. Escuro, muito escuro.

Como é escuro, muito escuro, o acordar das crianças na noite, que se segue a esses planos (ainda antes do genérico). "Acordam no meio da noite, tomados de um súbito e invencível terror", como nos anos 50 escreveu Nuno Bragança a propósito de Il Bidone (1955) de Fellini. "Mais do que medo porque não tem objecto inteligível." "O que são as coisas e o que somos nós, no meio do verbo ser?" Este filme começa aí no meio do verbo ser, ainda não sabemos quem é Nino, ainda não sabemos quem é a miúda que dorme ao lado dele.

À época, houve muito quem se espantasse com a opção de Pedro Costa de filmar a preto e branco. Não era o vulgar brilho da pobreza nem o ardor banal da originalidade. Era mesmo, pela raridade da película utilizada e pelo recurso ao grande operador alemão Martin Schäfer, o luxo dessa produção barata. Nenhuma cor podia reproduzir o sonho ou o pesadelo que O Sangue também é. Em noites dessas não se vêem cores. Por isso não foi por modas, modernismos ou pós-modernismos que este filme é preto e branco. O preto é uma cor e essa cor é a necessidade deste filme circulatório, onde o fondu é palavra proibida. "Mes faims, c'est les bouts d'air noir", dizia Rimbaud, e podiam dizer as personagens d 'O Sangue que "bateau ivre" também é. Cercle noir sur fond blanc é um quadro de Malevitch, e se a luz se apaga e acende, como se esconde e adormece no primeiro plano d'O Sangue, efeito de surpresa semelhante ao negro inicial é o que nos dão as letras muito brancas do genérico, logo após a noite das crianças. Passou uma eternidade e dela vem, na escola, a mulher do filme, fabuloso contra-luz. Passará outra eternidade até vermos a luz do dia.

Mas Pedro Costa não inventou um novo preto e branco, como não inventou uma nova história de amor, nem uma nova história de fantasmas.

Se Nicholas Ray (o Nicholas Ray de They Live by Night, 1948) visita O Sangue é porque aquele rapaz, aquela rapariga e aquele miúdo "were never properly introduced to the world we live in". Por isso Vicente e Clara (o rapaz e a rapariga) se perguntam se os sonhos existem mesmo. A resposta é a árvore assombrada. Ou melhor, as respostas são a árvore assombrada, a dívida reclamada e o homem com um grande termómetro no chapéu. Na noite mítica do amor, Vicente e Clara descobrem-se sós e têm medo. "Estás a tremer... Pede-me coisas... Mais perto... Mais." Um tal diálogo ouvia-se pela primeira vez n'O Sangue e voltar-se-ia a ouvir na Casa de Lava, nos Ossos. Como nesses filmes, reencontramos os bichos mais famintos e mais antigos que nos restam da magia negra. Eles ofuscam a magia dos juncos e dos pântanos, ou a magia do plano final de Nino, no barco, de gorro e a olhar para nós. E reconhecemos naquele imaginário o das águas envenenadas do poço de Stars in My Crown (1950) de Jacques Tourneur (esse filme tão amado por Pedro Costa) como reconhecemos os zombies com que nos passeámos. Os ogres de Laughton, as mulheres evanescentes de Siodmak. Um dia, o Cinema foi assim, e esse dia, transfigurado, só pode voltar a esse canto da infância, a esse quarto escuro onde tudo estremece tão de dentro.

Houve quem visse no filme um lirismo desesperado e incerto que, no final, nos deixa suspensos no longuíssimo plano do olhar de uma criança navegando de estígios antigos para estígios novos. Mas as personagens escondiam algo de ainda mais terrível. Tão doces carnes ocultavam a estrutura óssea que no filme seguinte o realizador começou a desvelar. Quatro anos depois d'O Sangue (Cannes, "Un Certain Regard") Pedro Costa olhou pela primeira vez o mundo dos cabo-verdianos. O filme foi quase todo rodado na Ilha do Fogo, em Cabo Verde, onde um vulcão adormecido de quando em vez retoma actividade. Nesse filme, pela primeira vez, Pedro Costa usou a cor, que usaria, depois, em toda a obra futura. Mas usá-la-ia, sempre, nas suas dominantes negras. Não há um só plano na obra de Pedro Costa (se o há, não o recordo agora) em que as chamadas cores vivas (as "cores acidentais" de Buffon) sejam dominantes.

Algum leitor mais atento terá notado que, nos meus apontamentos sobre O Sangue, tornei quase sinónimo, não o negro e o preto de que falei na introdução, mas o negro e o escuro. Ora não são a mesma coisa. O escuro não é uma cor, mas é a origem das cores, como é também a origem do visível. Como dizia Goethe: "o olhar não vê forma nenhuma. São o claro, o escuro e a cor conjugados que fazem com que o olhar distinga um objecto do outro." "A realidade é concebida ao mesmo tempo que o olhar." 5

Se O Sangue necessitava do preto (como necessitava do branco) para a sua evocação-invocação, só nos confins das sombras há algo para ver. Do filme noir que O Sangue tende a ser, é nos ditos confins das sombras que Pedro Costa situa a obra futura. Se o negro é o primeiro grau do "escuro", as cores prosseguem, encadeadas umas nas outras nesse ritmo tenebroso.

Daí que Casa de Lava, um filme quase todo situado durante a erupção de um vulcão, seja simultaneamente um filme púrpura ("o mundo é um braseiro, tudo se incendeia" 6) e um filme negro. O fogo e o mar, ou, para melhor rodear a poderosa metáfora líquida, a lava e o mar. "Assim o amarelo, quando se alaranja pela intensidade e escurecimento, emite uma radiação avermelhada que vai aumentando. A púrpura é, por conseguinte, a luminosidade no escurecimento." Mas a sua cor contrapolar, o violeta e ou índigo, mais "luminescente" e mais escura do que o azul, vai desembocar no mesmo efeito 7.

Mas Casa de Lava não se passa só na Ilha do Fogo para onde uma rapariga (de novo Inês Medeiros) levou, de regresso à origem, um operário cabo-verdiano. O que se pode chamar o prólogo do filme - sequências em Lisboa, na construção civil - são as do acidente quase mortal (ou mortal) que o cabo-verdiano sofre. Por isso, na "sinopse oficial", Pedro Costa escreveu: "No início é o ruído, o desespero e o obscuro [sublinhado meu] [...]. Morrer quer dizer sair do Inferno [...]. Mariana, plena de vida, pensa que talvez possam escapar juntos do inferno. Acredita que pode trazer o homem morto para o mundo dos vivos. Sete dias e sete noites mais tarde percebe que estava enganada. Trouxe um homem vivo para o meio dos mortos."

Entre mergulhos na casa dos mortos e ascensão a ela, entre erupções e lavas decorrentes, Casa de Lava é um filme onde se pode passar mais facilmente da morte à vida do que da vida à morte. De que se lembrava todo o tempo em que estava morto o protagonista de Casa de Lava? "Do sangue/ do Escuro a lamber-nos/ do teu cheiro/ das tuas mãos." Neste filme que explode em ocre (vermelho púrpura) a cor do sangue é cercada por todos os lados pela cor negríssima do mar.

E se o luxo d'O Sangue, como atrás referi, fora a fotografia a preto e branco, o luxo de Casa de Lava é a presença não só, novamente, de um operador de excepção (Emmanuel Machuel) como sobretudo, no papel mais entrelaçante do filme, a presença mágica de Edith Scob, vinda de Les Yeux sans visage, de Thérèse Desqueyroux, de Judex e de Thomas l'imposteur, filmes de Franju dos anos 50-60, para revisitar simultaneamente Musidora e Christiana, voltando a ser o pássaro que esvoaça eroticamente, a mulher que dá realidade ao irreal, o outro lado das mortes e reaparições do protagonista. Filme sobre um mundo de mortos-vivos, de zombies, religa, nessa explosão do espectro das cores, os nocturnos de Tourneur com as trevas Franju. “As trevas em cor é uma coisa que eu não entendo”, dizia Franju. A partir de Casa de Lava , Pedro Costa começou a entendê-lo. E a suspender nelas o que delas emana.

A descoberta dos Ossos

A que meio social pertencem as personagens d'O Sangue, vamo-lo sabendo, a pouco e pouco, ao longo do filme. Dívidas e credores, professoras primárias, natais burgueses. Em Casa de Lava, o acidente do operário e a nacionalidade deste recordam-nos como se fazia e faz a mão-de-obra em Portugal nos anos 90. Imagens chamadas documentais viam-se neste último filme, buscadas a um filme conservado por Orlando Ribeiro 8 sobre a grande erupção do vulcão do Fogo, em 1951. Mas, para além do fortíssimo sublinhado das sequências do operário, no início de Casa de Lava, o meio social não é muito acentuado nos primeiros filmes de Pedro Costa, como o não é qualquer matriz documental. Argumentos do autor são ficções, com participação relevante de actores vários 9.

Ossos, estreado no Festival de Veneza em 1997, é o primeiro filme de Pedro Costa situado quase integralmente no Bairro das Fontainhas, que, desde então até hoje, não mais deixou de ser a morada de Pedro Costa, com a óbvia excepção do filme sobre os Straub de 2001 Onde Jaz o Teu Sorriso? ou das 6 Bagatelas que o prolongam. Ossos é o último filme de Pedro Costa onde ainda surgem alguns actores, ou melhor, algumas actrizes como Isabel Ruth ou Inês Medeiros. Ossos é o último filme rodado em película por Pedro Costa, com o mesmo Machuel de Casa de Lava. Também é o último filme com uma produção "convencional" assegurada, como no filme anterior, por Paulo Branco. Ossos é assim o mais mutante filme de um realizador associado a mutantes, embora seja certo que os intérpretes "autóctones" (Vanda Duarte) ainda não são eles próprios, como depois sempre sucederia, mas representam personagens.

O Sangue e Casa de Lava são filmes líquidos. A um e outro convêm os verbos irrompidos: brotar, manar, derivar, mesmo se é verdade que a irrupção ou a erupção alagavam e incendiavam o mais íntimo. Fosse no preto e branco ortocromático, fosse no ocre e púrpura pan- cromático, eram filmes escuros, muito mais que filmes obscuros.

Com Ossos, pelo contrário, toda a seiva parece retirada e todas as cores parecem a reverberação de uma ausência de cor original e circundante.

Ossos é um filme traçado em semifusas e o que fica é essa textura do que está para além do cerne secreto, num filme traçado em "sons agudos e palavras orantes", cortadas pelo tutano. "E é outra ossatura mais forte/ que o esqueleto comum, de todos/ debaixo do próprio esqueleto/ no fundo centro dos seus ossos." São versos de João Cabral de Melo Neto, de quem tanto me lembrei ao ver o filme, sozinho numa manhã do Monumental. A resistência dele é, em termos de João Cabral, a do "aço do osso, que resiste/ quando o osso perde seu cimento". Já imaginaram cor para esse aço ou para esse osso? São as cores que aparecem na fronteira entre o corpo e as coisas, são as cores que se adequam aos "sons agudos e palavras orantes", cores sinestésicas como as do célebre poema de Rimbaud. E, dessas cores, prevalece a vogal inicial, "o A noir", "golfes d'ombre".

"Os ossos são a primeira coisa que se vê nos corpos", disse Pedro Costa numa entrevista. Mas são também a última coisa que resta deles. O que mais me espanta neste espantoso filme é que ele vai, incessantemente, osseamente, brancamente, do mais exposto ao mais oculto, da evidência básica da nossa imagem à da desaparição dela. É um filme de corpos vivos atravessado pela morte ou por aquilo que na morte implica o desaparecimento dos corpos. É um filme de mutantes, no mais radical sentido da palavra, pois que todos uns nos outros se mudam.

Este filme suporta, simultaneamente, duas visões tradicionalmente opostas. Uma coloca em primeiro plano a realidade social que é o Bairro das Fontainhas (ou a secção dele onde vivem os protagonistas) e escancara-nos existências que João Miguel Fernandes Jorge, num texto admirável, situou num "post-humano português, se, acaso, as nacionalidades permanecerem na linguagem cifrada do replicante". E continuou: "Neste filme mostra-se como se ultrapassou um tempo histórico e social. Como a comunidade na qual nos inserimos já é outra. Como já não se situa no ponto exacto onde cada um de nós ainda a concebe. A ficção fílmica alastrou a toda a geografia portuguesa e, nisso, o filme tem também força documental."

Mas uma outra visão, que não anula nem abala esta, pode colocar em primeiro plano uma realidade fantasmagórica, se o fantasma é, como foi na pintura veneziana do século XVI (Giorgione ou o primeiro Tiziano que os grandes planos e a composição do quadro neste filme tão fortemente evocam), um ex-novo da realidade. A uma tal visão, a visão do filme reflecte a das primeiras páginas d'Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, aquelas que Rilke escreveu na Rue Toulier, em Paris, perto do Val de Grâce, hospital militar. Como Rilke, Pedro Costa viu cheiros, sons, e o medo, sobretudo o medo. Viu casas singularmente cegas. Viu bebés embrulhados em plástico ou a dormir debaixo de camas. Viu um rapaz a correr e viu-o, por três vezes, beber a água de um chafariz. Viu janelas como molduras e viu como são fortes os fechos das portas. Viu muros esburacados de inscrições, restos de graffiti políticos de antanho. Viu troncos de árvores miseráveis. Viu rafeiros a ladrar. Viu mulheres a sufocar em barracas e a aspirar andares alheios. Viu um corpo caído no chão de um hospital e viu os que não viram esse corpo. Viu um corredor enorme com muitas portas e lâmpadas amarelas. Viu frutos e miolo de pão. Viu as doenças que não deixam ficar com ninguém. Viu fogões de gás com as torneiras todas abertas, único sopro ainda possível ou jamais possível. E viu, como única contra-imagem, os ruídos, o som que escava os ossos dos corpos aguentados neles.

O "aço osso" deste filme são esses ruídos. Mas, e volta Rilke, "há alguma coisa aqui ainda mais terrível: o silêncio. Nos grandes incêndios deve haver, às vezes, também, este instante de tensão extrema. Os jactos de água apagam-se, os bombeiros deixam de subir escadas, ninguém se move. Sem barulho, uma cornija preta desloca-se, lá em cima, e uma parede enorme, atrás da qual o fogo alastra, inclina-se, sem barulho. Toda a gente fica imóvel e espera, de ombros levantados, de rosto contraído em tomo dos olhos, a terrível queda. Aqui, o silêncio é assim".

O mais terrível desses silêncios (até porque não há silêncio) é o do plano na Praça da Figueira, quando o pai, com o bebé nos braços, pede esmola para ele. Ao fundo, da estátua do rei que foi trocada e não se sabe quem é, só se vê o pedestal. E nenhum dos transeuntes com que o rapaz se cruza tem olhos, corpos enquadrados abaixo do pescoço, nenhum olhar devolvendo o olhar do protagonista.

Como o mais terrível desse ruído é o do plano (repetido) à noite nas Fontainhas, com a porta da casa aberta, as escadas e duas janelas iluminadas de amarelo, pouco antes ou pouco depois de o marido de Clotilde dizer a Tina que pode ficar entre as pernas dela como ficou entre as pernas de Clotilde.

"A morte não nos larga", diz-se a certa altura. E Ossos é também uma dança da morte em que a morte estabelece a semelhança entre as personagens e torna todas aquelas mulheres espelhos umas das outras, como se a morte as fizesse todas iguais, na véspera ou no dia seguinte de coisa nenhuma. Porque se os ossos são, em tradição cristã imemorial, a figura usada para nos lembrar que somos pó e em pó nos havemos de tornar, neste filme a metáfora desdobra-se pela insistência (grandes planos) com que nos é recordado que eles são, também, a parede contra a qual bate a morte, o limite da resistência e da vida. Ossos brancos. Ossos negros.

No quarto de Vanda e na carta de Ventura

Pedro Costa contou numa entrevista que, quando terminou a rodagem de Ossos e se deixou cair numa cadeira extenuado, Vanda veio ter com ele e perguntou-lhe se o cinema tinha que ser sempre assim, tão difícil, com tanta gente, tanto bulício, tanta maquinaria. Histórias? As histórias dela, e as histórias de tantas e tantos como ela, davam dezenas de filmes. Porque não vinha ele, ele Pedro Costa, até à beira dela, ela Vanda, e ficavam a conversar ou só os dois ou com quem lá entrasse e muita gente entrava no quarto de Vanda, quando o quarto de Vanda ainda era nas Fontainhas.

Vanda Duarte tinha sido em Ossos a mais relutante a seguir as instruções do realizador, a mais resistente às ordens do realizador. "Não havia maneira de fazê-la dizer o que eu queria nem fazê-la ir às marcas." Pedro Costa começou então a pensar - há uma entrevista em que diz a "sonhar" - "se o cinema não se fez para as pessoas dizerem o que querem dizer, para as pessoas fora das marcas". E um dia bateu à porta do quarto de Vanda e pediu licença para entrar, com uma câmara de vídeo, um tripé e três reflectores de esferovite. Durante dois anos (1998 e 1999) viveu nas Fontainhas, nas ruas das Fontainhas, na casa de Vanda e de algumas pessoas mais, no quarto de Vanda. Foram esses dois anos em que o bairro foi arrasado, supõe-se que com o louvável interesse de acabar com tais misérias, tais vergonhas, as chamadas chagas sociais. Filmou 120 horas, com umas dezenas de moradores de que ficámos a conhecer, por nome ou alcunhas, vinte e seis. Depois, aproveitou desse material 170 minutos. Passou o vídeo a 35mm. E estreou-o em Locarno, em Agosto de 2000, quase dez anos depois da primeira apresentação d'O Sangue.

No Quarto da Vanda. Também chamado "quarto das meninas". É nele que mais tempo estamos, é ele o espaço que melhor ficamos a conhecer. Mas não é todo o tempo do filme, nem todo o espaço do filme. Que espaço é esse que não é o quarto da Vanda? Fora alguns declarados exteriores, nunca sabemos ao certo se é dentro ou fora que estamos. Podem ser casas ou ruínas de casa, ou restos de casa, ou caminhos entre casas. Relentos ou abrigos. Mas fora ou dentro quase nunca se está certo, quase nunca é certo. O espaço, bem como o tempo, perdeu fronteiras no bairro e para as pessoas dele. Antigamente, diz Vanda e confirma Zita, não era assim, não foi assim. Mas como foi, quando ainda estavam orientadas, ou quando ainda estão desorientadas?

Penso naquele plano da venda das couves. "Dona, quer alfaces ou couves?" Quem é que está dentro? Quem é que está fora? Nunca se sabe bem. Há coisas que já só são o resto delas e outras que são comidas por uma escavadora amarela, que parece um animal pré-histórico e, quando actua, fica de olho vidrado, a olhar o que já consumiu. A própria ideia do "dentro" passa a deixar de fazer sentido a não ser no quarto da Vanda. "Não há remédio: não podemos deixar de ver." "Jamais poderemos deixar de ver." Mais uma vez o ecrã todo negro.

A esse negro, do outro lado do quarto de Vanda, responde o diálogo dela com Pango. Para o doce Pango aquela vida "é a vida que a gente é obrigado a ter. Parece que é já um destino, é um traço..." Vanda pergunta-lhe: "Achas?" e repete o que começa por afirmar: "É a vida que a gente quer, acho eu." Depois de ouvir a confissão daquele que saiu de casa para não fazer mais mal à mãe, "não aguentou ouvir mais nada".

Pedro Costa também não. Seguiram-se os anos dos seus filmes com os Straub, últimos anos da vida de Danièle Huillet e dos sorrisos ocultos. Numa das 6 Bagatelas (DVCam) Straub está na sala de montagem, talvez com passo mais ágil que jamais e diz a Danièle que está um dia lindo lá fora. Aqui dentro, que me adianta isso, pergunta, entre o desabafo e o amuo, Danièle. E estão jazendo dentro sempre mais dentro, sempre no negro, cor dos sepultados.

Por esses anos, os habitantes das Fontainhas saíram do bairro ou o bairro saiu deles e foram viver para horríveis prédios de horríveis imobiliárias, tentando reinventar neles o quarto de Vanda que continua a existir. Já não existe a lista amarela, lista sórdida, onde Vanda guardava a droga. A droga também já não existe, substituída pela metadona, mas, apesar de uma aparente claridade, o negro ainda é mais negro agora do que era dantes.

Estou já a falar de Juventude em Marcha, filme de 2006, o filme de Ventura, aquele que viveu um outro 25 de Abril a trabalhar na parede do Museu Gulbenkian, onde agora se podem ver dois Rubens e um Van Dyck. E há a luz coada do museu e há as cores exuberantes de Rubens, mas há sobre tudo e todos a mole negra de Ventura, esse a quem o filho pede um dia que lhe conte a carta de amor.

Para mim, Juventude em Marcha, filme de ousadia e de fidelidade, para usar termos de Pedro Costa, é o filme do homem que escreve uma carta de amor que outros homens já escreveram. É - e também Pedro Costa o disse - "a história secreta daquele corredor negro".

A 15 de Julho de 1944, Robert Desnos escreveu à mulher do campo de concentração de Flöha uma última carta, a cerca de um ano da sua morte.

Diz que lhe queria oferecer "100 000 cigarros louros, doze vestidos de grandes costureiros, o apartamento da Rua de Seine, um automóvel, a casinha da mata de Campiègne, a de Belle-Isle e um raminho de flores de cinco tostões. Na minha ausência, compra à mesma as flores, que eu tas pagarei. O resto, prometo-o para mais tarde. Mas, acima de tudo, bebe uma garrafa de bom vinho e pensa em mim." Ventura em Juventude em Marcha diz e rediz ao filho para que este nunca mais a esqueça, a carta que escreveu há trinta anos: "Eu gostava de te oferecer cem mil cigarros/ uma dúzia de vestidos daqueles mais modernos/ um automóvel/ uma casinha de lava que tu tanto querias/ um ramalhete de flores de quatro tostões/ mas antes de todas as coisas/ Bebe uma garrafa de vinho bom/ Pensa em mim." "Para contar o amor e o sofrimento do Ventura foi preciso ouvir o amor e o sofrimento de um poeta francês."

Nem Desnos nem Ventura reencontraram as mulheres. Nem Desnos nem Ventura receberam sequer resposta a essas cartas. Nem Desnos nem Ventura verão as mulheres que amaram com os vestidos que sonharam. Em lugar de tudo isso ficou aquele plano fantomático com que começa Juventude em Marcha, onde, para o saguão negro de uma ruína negra, uma mulher (a mesma? outra?) atira janela fora os restos dos pertences do marido. "Julgo que vou esquecer de mim" é a última linha da carta de Ventura. Não se esqueceu, na enganadora aparência da memória. Mas esqueceu-se no corredor escuro. De cor que era ao tempo d 'O Sangue, o negro volveu-se na ausência de toda a luz. Sobreviver é repetir incessantemente uma carta de amor ou, como Vanda, repetir incessantemente a história do dia em que deu à treva a filha.

Cá fora, no extremo de outro espectro da cor, uma cadeira encarnada, tão antiga como a carta e tão sem eco como ela. O negro é uma cor? De que cor é então o estado do mundo que, com outros cineastas, ele trajou em 2007, sob forma da caça ao coelho com pau?

Não o sei e não sei se Pedro Costa o sabe. Sei é que essa cor é a cor que nos circunda, nos novos desertos em que os quartos se perdem e as juventudes se fixam.



1. Em 1980, Manoel de Oliveira projectou adaptar ao cinema a peça teatral de Vicente Sanches O Negro e o Preto. O projecto nunca se concretizou, mas, nas referências que lhe foram feitas por comentadores estrangeiros, transparece a dificuldade de qualquer tradução. Jacques Parsi escolhe, em francês, Le Noir et le noir. Em inglês aparece The Black and the Nigger, o que desvirtua totalmente o sentido inicial. Mesmo The Black and the Dark ou Le Noir et le Sombre são coisas completamente diferentes. Nada a ver com Pedro Costa? Ver-se-á.
2. Gérard-Georges Lemaire, "La quête du noir" no catálogo da exposição referida, pp. 47-55.
3 .Pense-se, ainda, no caso da pintora húngara, na série de obras New York September 11, 2001.

4. Obviamente não estou a pensar no Spielberg de Schindler's List (1993), em que ocigarros preto e branco (aliás colorido) funcionou apenas como efeito para "o grande e horrível crime".
5. Cf. Philippe Bion, "índigo - A Papoila de Goethe" in Cinema e Pintura, Ed. Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, Lisboa, 2005, pp. 85-120; cf. sobretudo, pp. 96-102.
6. Ibid., p. 99.
7. Ibid., p. 100.
8. Orlando Ribeiro (1911-1997) foi o mais marcante geógrafo português do século xx. Professor universitário de grande prestígio, deixou uma obra vastíssima e muitas "reportagens" geográficas e fotográficas de erupções vulcânicas (Cabo Verde, Açores).
9. Embora deva ser notado que o protagonista d'O Sangue é um miúdo não-actor (Nuno Ferreira).

cem mil cigarros

OS FILMES DE PEDRO COSTA

coordenação de Ricardo Matos Cabo

ORFEU NEGRO, 2009