sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Uma pequena avalanche

25.09.2009 - Luís Miguel Oliveira

Um conjunto de textos, duros, densos, informados, mas também divertidos, imaginativos, soltos, sobre uma das obras mais importantes, mais aventurosas do cinema contemporâneo. Na monografia "Cem Mil Cigarros", lançada a 1 de Outubro, o mundo pensa e ama a obra de Pedro Costa. Uma avalanche...


Há não muitos anos, e os leitores do PÚBLICO recordar-se-ão porque isso foi noticiado no Ípsilon, a "Cinema Scope", uma revista canadiana de cinema que ainda vive a cinefilia como uma "coisa aventurosa" e, se for caso disso, um bocado "palerma" (e estamos a citar, na coisa "aventurosa e palerma", uma belíssima definição da cinefilia por Louis Skorecki), acompanhou a descoberta da obra de Pedro Costa com um "slogan" que, estampado em "t-shirts", ficou célebre nos circuitos dos festivais: "Vote for Pedro - Pedro Costa that is", "Votem no Pedro - no Pedro Costa, isto é". Anedótico, dirão (pois certamente, e autoconscientemente que o é), mas um sintoma revelador do entusiasmo suscitado pela descoberta americana de Costa.

Outro exemplo anedótico: há uns meses saiu no "Inimigo Público" uma "notícia", até bastante bem disposta, que dava conta das excursões de "turistas franceses" ao Bairro das Fontaínhas, cenário de vários filmes de Costa; pois bem, a realidade é melhor: é do Japão (onde Costa tem uma "base de fãs" enorme) que eles vêm, directos à Cinemateca, a perguntar o caminho para as Fontaínhas...

Anedotas à parte, o cinema de Costa tornou-se nos últimos anos uma referência a nível mundial. Exemplo nada anedótico, vai em breve ser mostrado, em retrospectiva, na Tate Modern, em Londres. É estudado, discutido, amado - e talvez o mais impressionante até seja mesmo isto, o amor que suscita, tantos são os textos críticos em cujas entrelinhas perpassa, em primeiro lugar, uma tentativa de explicação desse amor. No fundo, esta monografia que está disponível a partir de 1 de Outubro, "Cem Mil Cigarros" (é a carta de Ventura em "Juventude em Marcha": "eu gostava de te oferecer cem mil cigarros"...) é sobre isto: o pensamento da obra de Costa e o amor por ela. São cerca de trinta textos (e uma montagem fotográfica de Richard Dumas), maioritariamente originais e escritos para o livro, por autores estrangeiros (quase todos) e portugueses (alguns). Ricardo Matos Cabo, que organizou, compilou e prefaciou a edição, escreve na abertura que se trata de "sedimentar e fixar ressonâncias de magnitude diversa, possibilitadas por uma visão retrospectiva da sua obra, num momento particular de produção crítica acerca do seu trabalho". O "momento particular" corresponde aos últimos dois anos, na sequência da retrospectiva itinerante que correu várias cidades dos EUA (e do Canadá) entre 2007 e 2008, também um momento decisivo, a par com a selecção de "Juventude em Marcha" para a competição de Cannes 2006, no acréscimo de visibilidade da obra de Costa e na sua fixação como referência crítica fundamental no cinema contemporâneo.

Nova partilha de informação

O livro não é, ou não pretende ser, uma crónica da "recepção dos seus filmes" (escreve ainda Matos Cabo no prefácio), mas é inevitável que em certos momentos, sobretudo em textos de autores estrangeiros, funcione como um "eco" de uma crónica dessas.

Jonathan Rosenbaum, um dos críticos americanos com os olhos mais postos no horizonte para além do seu continente, escreve no seu texto ("Algumas Erupções na Casa de Lava") que só em 2002 tomou contacto com a obra de Costa; Thom Andersen (em "Histórias de Fantasmas") conta que descobriu Costa com "No Quarto da Vanda", num festival em Montreal em 2001, "quase por acaso" ("fazia parte de uma programação especial sobre cinema português, e eu desconfio sempre das secções de cinematografias nacionais nos festivais"). De maneira "lateral", mas nem por isso negligenciável, "Cem Mil Cigarros" também mostra como, neste mundo fragmentado e de canais tornados exíguos, o reconhecimento crítico (ou popular) de uma obra é uma condição dependente das formas de divulgação dos filmes. Jacques Rancière (em "Política de Pedro Costa") aborda de maneira bastante clara essa questão ("filmes [como os de] Pedro Costa vêem-se imediatamente etiquetados como filmes de festival, reservados ao prazer exclusivo de uma elite de cinéfilos, e tendencialmente empurrados para o espaço do museu e dos apreciadores de arte"), indiciando até um certo estreitamento das selecções dos festivais (não foi pacificamente que "Juventude em Marcha" passou em Cannes) e a forçada "co-optação", de objectos como estes, pelo "espaço do museu" (é a Tate que vai mostrar Pedro Costa, não é o British Film Institute, por estes dias mais ocupado com uma retrospectiva...Penélope Cruz).

"Os mecanismos de visibilidade são complexos", diz Ricardo Matos Cabo ao Ípsilon, "o caso dos filmes do Pedro Costa é complicado e indissociável da sua recepção", e nos últimos anos se houve "transformações no circuito dos festivais e da exibição", aconteceu sobretudo uma "mudança na forma de partilhar informação, designadamente através da Internet".

Esta nova partilha de informação talvez explique a sensação de aceleração, nos últimos anos, no conhecimento internacional nos filmes de Costa. Do "Sangue" (1989) a "Ossos" (1998) teria sido essencialmente uma batalha da crítica portuguesa (não quer dizer que em unanimidade, nem teria que o ser - mas nunca faltaram a Costa os defensores portugueses, não se trata de um daqueles casos de um autor que é imposto para dentro a partir do que se diz lá fora), depois partilhada com alguma crítica francesa (que só viu o "Sangue" a seguir ao sucesso de "Ossos"). Mas depois, no dealbar do século XXI, a partir de "No Quarto da Vanda" (2000), pareceu iniciar-se uma pequena avalanche, multiplicando-se os ecos e os relatos de descoberta, vindos daqui e dali, sempre em crescendo. Matos Cabo acrescenta um terceiro momento, "a selecção do ‘Juventude em Marcha' para a competição de Cannes que reenviou muita gente para ‘No Quarto da Vanda' e finalmente para uma visão retrospectiva da obra que é o que está na base de muitos dos textos no livro". Isto - a recepção, a porta de entrada - pode parecer uma questão de somenos mas é capaz de o não ser. Os portugueses foram descobrindo os filmes de Costa na sua sequência cronológica linear, onde "O Sangue" é sempre a "origem" mítica que lança a sua sombra sobre os filmes posteriores mesmo quando estes voluntariamente fazem por afastá-la. Na maior parte dos textos estrangeiros de "Cem Mil Cigarros" encontramos uma visão construída em desordem cronológica, muitas vezes de trás para a frente, com outra "luz" inicial, outro centro emanador, e com isso toda uma diferente cadeia de ligações e relacionamentos entre os filmes.

Modulações

Precisaríamos de um Ípsilon inteiro para comentar cada um dos textos, e para cada um dos textos precisaríamos de um artigo do tamanho deste. Há-os de todo o tipo.

Sobre a obra no geral, como o magnífico texto de João Bénard da Costa ("O Negro é uma Cor ou O Cinema de Pedro Costa") que abre o livro sob o signo da cor (ou da ausência de cor) e da obscuridade, naquele modo único de trazer todo um mundo (cultural e vivido) ao mundo representado nos filmes e de se colocar num plano poético que quando parece estar à beira de se desligar do objecto em análise volta a mergulhar nele e tudo se torna maravilhosamente claro (ou, parafraseando-o neste texto, maravilhosamente obscuro).

Textos só sobre um filme, como as lapidares "Nove Notas sobre Onde Jaz o Teu Sorriso?" de Jean-Pierre Gorin, ou a análise de Bernard Eisenschitz aos menos analisados filmes de Costa, "Tarrafal" e "A Caça ao Coelho com Pau", contida em "O Que Conta(m) Estes Filmes", ou ainda o texto de João Nisa sobre uma faceta semi-oculta do trabalho do cineasta, as instalações (em "Do Filme à Exposição: As Instalações Vídeo de Pedro Costa).

Textos que pegam num aspecto particular, como o de Mark Peranson ("Ouvindo os Filmes de Pedro Costa ou Pedro Costa, Realizador Pós-Punk"), sobre o emprego da música, e em especial do "rock", na obra de Costa, e sobre a musicalidade dos seus filmes (Vanda e Ventura como um encontro entre Charlie Parker e Paul Robeson). Poeticamente mais livres (como o de Rui Chafes, "Condenados à Morte, Condenados à Vida") e teoricamente mais densos (palma para Nicole Brenez e "Toda a Arte Nova Poderia ser Qualificada como Montagem": Onde Jaz o Teu Sorriso? ou Da Necessidade Artística em Contexto Materialista").

O enfoque é, por norma, "interior", interior ao cinema, aos seus processos e referências, reflectindo a importância que essa presença no "interior" do cinema (e no interior de uma tradição) assume para o próprio Costa (Adrian Martin aborda esta questão - "uma questão de cinema" - no seu texto, "A Vida Interior de um Filme"). Sendo cada texto entendido como um testemunho livre e individual, não há medo das repetições; elas existem, porque as ideias não são infinitas e os planos dos filmes ainda menos, mas é fascinante seguir as modulações nessas ideias, as ligeiras alterações, as coisas que lembram a toda a gente mas nunca lembram da mesma maneira - e se é espantoso que tanta gente se lembre de John Ford a propósito de Costa, mais espantoso é que toda a gente pense num Ford diferente. Do "Sargento Negro" às "Sete Mulheres", dos "Três Padrinhos" às "Vinhas da Ira", toda a gente tem direito a encontrar o seu Ford num filme de Costa. Outros realizadores que vão cruzando o livro com frequência são, claro, Jacques Tourneur (cujos zombies são uma presença quase declarada na obra de Costa), e os japoneses clássicos (clássicos-modernos...) como Yasujiro Ozu e Mikio Naruse. E obviamente, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, com quem Costa manteve uma cumplicidade real (traduzida, à evidência, no filme com eles, "Onde Jaz o teu Sorriso?"). O texto de Tag Gallagher, "Straub Anti-Straub", reflecte sobre as relações entre o cinema de um e de outros.

Dois textos focam, em particular, a dimensão política de Costa. O de Rancière, que já citámos, olhando para a relação com a miséria, com a pobreza e com os "humildes" (e para o lugar da arte no meio disto), e o de António Guerreiro ("A Suspensão e a Resistência"), que olha para "Juventude em Marcha" a partir de Benjamin (a juventude "como ideia e como figura política"). A discussão é trazida para o contexto português - ou para um contexto capaz de pensar a relação, política ou poética ou de outro tipo qualquer, entre o cinema de Pedro Costa e Portugal - poucas vezes. É o único ponto onde o livro podia ter avançado mais - o contexto histórico não tem que estar sempre presente, mas por vezes ganha-se algo quando ele é misturado na equação. Como no texto de Jacques Lemière, "Terra a Terra: o Portugal e o Cabo Verde de Pedro Costa", que entre outras coisas, e pegando em declarações de Costa, materializa o tema do medo, tão presente no seus filmes: é o medo da PIDE, "o medo de um puto de quatorze anos". Outro texto em que isto se faz é o de João Miguel Fernandes Jorge sobre "Ossos": "Creio que Portugal é particularmente este filme: fome, negros e brancos, não se distinguindo no seu comum horizonte de miséria".

Uma flimografia, notas biográficas sobre os autores e uma bibliografia seleccionada completam o volume. Resumindo, e voltando ao princípio: um conjunto de textos, duros, densos, carregados, informados, mas também divertidos, imaginativos, soltos, sobre uma das obras mais importantes, mais ricas, mais aventurosas do cinema contemporâneo.

ípsilon