terça-feira, 2 de março de 2010

Land of Pharaohs, A Terra dos Faraós

por Pedro Costa

HOWARD HAWKS, Cinemateca Portuguesa, Organização João Bénard da Costa.


"Turn your watch back about one hundred thousand years...
I'll meet you by the third pyramid...
Oh! C'mon!"

The B'52's

No filme Land of Pharaohs, A Terra dos Faraós, há um plano insuportável. É perto do fim, é o último plano da sequência em que a Rainha Nailla morre para salvar o seu filho, o Príncipe Zanin.
Interior, noite. No palácio do Faraó. Imóvel e nú, sentado de pernas cruzadas, o pequeno príncipe toca uma flauta que lhe fora oferecida pela Princesa Nelifer, a jovem amante do Faraó.
Concentrado como num pequeno hieroglifo, repete infinitamente a única música que a Princesa lhe ensinou: uma melodia infantil, simples e hipnótica. O ar quente da noite egípcia torna-se ainda mais lento e mais pesado. A Rainha, a mãe, prepara-lhe a cama, dobra toalhas, ouve e sorri. Não sei quanto tempo depois, um homem de pele escura e olhos a faiscar surge entre as cortinas da varanda; traz uma cesta de verga e uma cobra lá dentro; livre, o réptil desliza aos esses pela laje, encantado pela música. A mãe passa as mãos pelos longos cabelos negros e diz ao filho que já é muito tarde. A criança pede-lhe mais tempo, continua a tocar, engana-se, troca as notas e pára. A cobra pára também. Mas a música recomeça e a cobra vai-se aproximando. Quando a mãe a descobre, ela já está muito perto de Zanin. Tem pouco tempo para agir. Então passa-se uma coisa estranha: a mãe começa a avançar em direcção ao perigo repetindo, quase num murmúrio, "não pares de tocar", "é tão bonita", "não pares...". E a cadência dos passos dela é o tempo da melodia, é o rastejar da cobra. Os três tempos diferentes são agora e por longos instantes um só tempo. O plano que se segue dura dois, três segundos, menos talvez. O corpo da mãe voa na sala, impulsionado por uma força descomunal e esmaga-se sobre a cobra, ao lado da criança. A imagem desaparece no negro assim mesmo, a arder gelada.
Depois ouve-se um grito e vemos um gesto de alívio; a Princesa Nelifer respira fundo.

Tudo o que se passou neste extraordinário plano não pode ser dito. Ele não é a imagem do filme A Terra dos Faraós mas todo o filme está contido nele. A pressão do Tempo, a Morte no plano, no filme, explode-nos na cara. E a ferida que agora nos rasga já a tínhamos pressentido no passado, arranhões à flor da pele, no trabalho com as pedras, e não cicatrizará no futuro do filme que continua.
Não há remédio; não podemos deixar de ver.
Deve haver um limite para além do qual a imagem estática, frontal, ascética se torna insuportável e esse traço invisível, essa ferida, jamais poderemos deixar de a ver. O Tempo e o Espaço tão saturados, tão cheios de vazio e de tudo entram em guerra e a imagem só tem uma salvação: fazer um gesto, tornar-se criadora ou destruidora. O movimento recém-nascido será sempre belo e implacável. Howard Hawks sabia. Conhecia o segredo. Só que levou muitos anos de vida e muitos filmes para chegar a este confronto mortal.
Face a face como num duelo do seu filme seguinte.
E a face impenetrável, as ossadas vazias e pulverizadas que ele vê ao fundo dessa rua de poeiras sem defesa, interrogam-no, em silêncio. O duelo com o Absoluto, a magnífica construção que Hawks decidiu começar e acabar em A Terra dos Faraós devolveu-lhe uma violência surda e um terror cego que sempre lá estiveram, que eram dele. Um homem sonha com o Absoluto, submete-se aos ritmos cósmicos, e perde-se nele. Aquele plano que me mete medo é antecedido por um grande-plano – um dos raros grandes-planos do filme – um traveling do belo rosto da Rainha Nailla. O tempo dilata-se e comprime-se, torna-se elástico e múltiplo e a câmara de Hawks não nos ajuda a ir mais depressa. E era preciso ajudá-la porque ela sabe o segredo mas não o sabe dizer. Ela é luminosa e sombria, ela conhece a maldição ancestral, lembra-se de tudo, é ela a destruição, era preciso ir mais depressa, salvar a bela Nailla doente, morta entre os vivos. E, pouco a pouco, de repente, o medo absoluto que transparece nela, é enevoado por outra coisa ainda mais terrível: nos lábios finos desta mulher começa a nascer um sorriso muito pequeno, muito evidente; um movimento. Mas o plano não a socorre, não há impulso que a salve, que a projecte no plano seguinte. Hawks corta e monta. Quando ela voa já é outra coisa, já lá estava e começou no corte: é, num mesmo tempo e num mesmo espaço, o que é e o que já não é, o que mexia ainda agora vai parar para sempre. Exacta, fugaz e inocente. Morta entre os vivos. Desapareceu no negro e agora já não nos lembramos do seu belo rosto de esfinge. Porquê? E no entanto, longe dali, noutro tempo, há outra mulher que respira fundo, aliviada. Hawks, o homem, fez tudo o que havia a fazer nesse plano. Filmou o mais antigo e o mais moderno, a imobilidade e o movimento, o tempo imóvel. Perseguiu a fusão rebelde dos contrários, a pura beleza desesperada do gesto. Mas como nasceu aquele sorriso? Nos filmes de Howard Hawks não há suspense: espera-se a morte, corre-se para ela e basta. Num plano de Hawks ninguém entra ou sai; está-se preso e nunca se sai vivo, é tudo. Hawks trabalha arduamente para isso: constrói planos sobre planos como túmulos; gigantescos cemitérios. Mas uma pirâmide leva tanto tempo a construir... Uma ciência do pesadelo. Um homem sonha com o absoluto e perde-se nele.

A Terra dos Faraós é um longo pesadelo. É um filme negro, sufocante e perdido desde o princípio. Só lá poderemos entrar perdidos também. Hawks, meio cego e mudo como os seus arquitectos e sacerdotes, dá a mão ao seu Faraó frágil e nervoso – que como o Príncipe Mychkine, "não tem o gesto feliz" – e entram nos corredores secretos, atravessam grandes mastabas, vigiados e protegidos por grandes massas de esfinges monolíticas, alternadamente, plano a plano, à esquerda e à direita dos enquadramentos. Cá fora, à luz do Deus Rá, vistos do alto da pirâmide, eles todos, perfilados, nos castanhos e nos ocres do grande Trauner, um pouco enegrecidos pelo basalto e fulminados pela magia de Garmes e Harlan, sujos pelo tempo, pelo clima e pelo esforço, mas sempre serenos, impenetráveis, longínquos, camponeses e operários egípcios, trabalhadores do grande túmulo, artesãos das suas próprias sepulturas, em marchas longas como o Nilo, vigiados por lentas panorâmicas imóveis que não os deixam sair de campo, bem enquadrados os milhares de braços e troncos pouco humanos, em profundidade, com os perfis hieráticos, à esquerda e à direita, Osiris, Isis, Aton e as suas vozes de além-túmulo, de cinema. Nunca vamos com o Faraó pelo Vale fora; Menfis, Tebas, Heliopolis; ver os tesouros, viver as aventuras; ficam os fechados nos planos e as chaves da morte perderam-se. Uma pirâmide leva muito tempo a construir... Montagem paralela, pedra sobre pedra, as imagens dissolvem-se umas nas outras como num sonho, e tudo é pesado e real porque o tempo se vai gravando na película e daqui a pouco diremos: eles todos, estão mortos, podemos rever A Terra dos Faraós mas os figurantes egípcios já não estão vivos. Mas agora podemos vê-los dissolverem-se uns nos outros, gémeos como dois grãos de areia, grãos de tempo, egípcios-segundos, egípcios-minutos, filhos do Grande Deserto que vamos voltar a usar para fazer os nossos filmes do futuro, para esculpir o tempo. A Terra dos Faraós toma o espaço e o tempo como personagens principais: a grande pirâmide para sempre, protegendo os mortos contra os vivos. O combate de Keóps (o conflito, se preferirem) é com o tempo. Irmão do trágico Scarface, o pobre bandido da cara arranhada, o Faraó quer equilibrar-se na sua própria carcaça, podre dentro e fora; só quer voltar para casa para arrumar o seu cadáver; manter o delicado equilíbrio, atravessar outra vez as ante-câmaras de colunas altas, o precioso ponto de prumo entre a admirável postura hierática do semi-Deus e o patético trambolhão do inchado e velho Hawkins. Dar dignidade ao tempo que já falta. E então regressam as assombrações, os grandes-planos: déja-vus na sepultura lógica deste pesadelo. Num campo, o Faraó empapado em sangue, contra os anéis de ouro de uma sólida coluna; e um rosto bovino, suado e disforme; mas os olhos alarmados como os de Scarface. No contra-campo, a princesa Nelifer, aquela que, por natureza, jamais poderá descansar o seu corpo de pin-up, em segredo, no segredo do Faraó. E o que já acontecera acontece outra vez: o tempo pára e dispara, todos os ritmos são diferentes e existem no mesmo plano: o pobre olhar impotente do Faraó fixa a mulher coberta com as suas jóias e no rosto dela nasce um sorrriso. Sem saber ou poder escolher, Hawks faz o derradeiro sacrifício do cinema: não corta nem lança o plano ao negro. A voz dela desliga-se da boca, do êxtase passa ao prazer, a obscuridade obscurece-se e o rosto de Nelifer desfoca-se, perde contornos, perde Identidade.
O Faraó morre sem saber. Quem é esta mulher?
Nem quero pensar!

A Terra dos Faraós é a história de um homem obcecado em guardar o maior dos segredos mas que não sabia esconder nada ao seu amigo de infância. À imagem do seu herói, Howard Hawks perdeu-se entre o pequeno código, que toda a vida o regeu, e esse outro Grande Código do qual não sabemos se acabou por encontrar as chaves.
No Apocalipse (1.18): "Eu tenho as chaves da Morte".
No Livro dos Mortos Egípcio, um hieroglifo: "Não, tu não estavas morto quando partiste!"
De William Faulkner, argumentista deste filme: "Eles todos, perfilados sobre o fundo do verde luxuriante do Verão e a ruína do Inverno, antes que floresça de novo a Primavera, agora sujos, um pouco enegrecidos pelo tempo e pelo clima e pelo esforço mas sempre serenos, impenetráveis, longínquos, não como sentinelas, não como se defendessem com os enormes e monolíticos pesos os vivos contra os mortos. Mas antes os mortos contra os vivos, contra a angústia e a dor da raça humana. Nos bancos de jardim e nas salas de espera, há um peso de vagabundos que, se não existisse, nos transformaria em estrelas cadentes."