sábado, 9 de fevereiro de 2008

uma certa distância...deixar as formas falar por elas mesmas


Que tipo de arte contemporânea o toca?

Sou sensível a formas de arte contemporânea que jogam com uma certa distância, que não procuram antecipar os efeitos. Penso nas fotografias que Sophie Ristelhueber fez de estradas secundárias palestinianas: não têm nada de espectacular, podiam mesmo ser uma espécie de imagem idílica. Penso também nos filmes de Pedro Costa, uma arte eminentemente comprometida, feita no coração de uma realidade social, com os actores dessa mesma realidade e que ao mesmo tempo, não se sacrifica em nenhummomento à vontade de explicar, de denunciar, mas que deixa as formas falar por elas mesmas. Sou muito sensível a toda a série de Vanda e de Ventura; uma maneira de representar a trajectória de pessoas a que chamamos marginais como uma realidade estética. Estética não no sentido de que seja bela, mas em que aquilo que está em questão a cada momento é o poder da palavra e do gesto, a relação da palavra e do gesto num lugar. Em “Juventude em Marcha” toca-me essa capacidade épica que é confiada aos personagens; o facto de [Ventura] não ser um imigrante infeliz, doente da cabeça, desempregado, que exibe o seu sofrimento, mas, pelo contrário, uma espécie de senhor de um reino longínquo, que impõe absolutamente a sua presença e a sua palavra, bem como o seu silêncio.

Num seu livro recente, “La Fable Cinématographique”, escreve sobre Godard e as suas “Histoire(s) du Cinéma”, na qual o realizador dá visibilidade a acontecimentos políticos, como Auschwitz.

Há duas coisas algo contraditórias no projecto de Godard. Nas “Histoire(s) du Cinema” há, por um lado, a vontade de mostrar o cinema como actor do seu século, ou seja, podemos ler um século através de certas formas cinematográficas, personagens, modos de iluminação; por outro, existe uma visão “auto-acusadora” - o cinema é convidado a arrepender-se de não ter sido o instrumento que deveria ter sido. Em Godard existe essa espécie de tensão entre uma visão do cinema enquanto actor e esse discurso um pouco crepuscular do fim das ideologias, do fim das utopias...

Diz que “uma arte crítica deve ser, à sua maneira, uma arte da indiferença, uma arte que construa o ponto de equivalência de um saber e de uma ignorância, de uma actividade e de uma passividade.”...

O poder de um saber é simultaneamente o poder de uma certa ignorância. Pedro Costa não dá explicações sobre as razões sociais que fazem com que existam esses bairros, que haja o realojamento dessas pessoas, e por aí fora. Decide não querer saber o estado do mundo que explica tudo; é necessário ignorar toda esta longa cadeia de razões para dar a um lugar, a um personagem, a uma palavra, a um gesto, a sua potência sensível. A relação distância/proximidade pode ser compreendida assim: para fazer ouvir uma palavra que nunca é escutada diria que é necessário instaurar um dispositivo estético de distância. Essas palavras por que as não ouvimos? Não as ouvimos enquanto elas forem tomadas sob a forma da reportagem: um pobre fala pobre, um imigrante fala imigrante, e, no fundo, ele apenas faz reconhecer a sua condição. Espera-se que as vítimas se manifestem como vítimas, que os pobres se manifestem como pobres, que os drogados se manifestem como drogados. A força da arte é, precisamente, a de sair das figuras, das formas sensíveis esperadas, para lhes dar um outro modo de presença. Isso supõe esta espécie de distância: estamos diante de um ecrã, não estamos perante uma pessoa, estamos na posição do espectador; o que temos diante de nós não é um indivíduo que conta a sua vida, mas uma figura estética que impõe a sua potência.

Jacques Rancière, ípsilon, 6 Abril 2007

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O titulo deste post, se por um lado serve para pensar as ideias de um brilhante filosofo, por outro é a minha explicação do porquê eu escrever tão poucas palavras próprias – a distância certa, deixar falar o homem a quem este blogue é dedicado, ler coisas escritas por quem sabe mais do que eu, etc…

P.S: se bem que dentro em breve vão levar com um trabalho meu que eu escrevi, na altura, para a escola de cinema…eheh