sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Nos ouvidos do Pedro

A primeira coisa que diz quando a música começa a tocar é: "Mas isso eu já conheço, pá". Isso era Jeanne Balibar, "Ne Change Rien". Foi o começo de uma "juke box" que preparámos para Pedro Costa. Quisermos dar-lhe música, ele proporcionou-nos surpresas. Pós-punk? Não, Stevie Wonder. Nick Cave? Não, Pet Shop Boys. E Kinks.

por João Bonifácio 27-11-2009


O escritório que utiliza para trabalhar, não sendo um aposento acolhedor, está surpreendentemente ordenado. É dominado por um Mac e por equipamentos cuja utilidade será certamente explicada por uma palavra complicada em alemão. Quando entramos, a música de D'Angelo corre no Mac. A música desempenha papel importante no último filme do autor de "No Quarto da Vanda" e de "Juventude em Marcha". À superfície, é uma obra sobre o trabalho musical da actriz francesa Jeanne Balibar. À partida, seria uma descolagem do modelo que marcara os filmes anteriores. Mas, tem dito a crítica, em "Ne Change Rien" Costa faz a Balibar o mesmo que fez a Vanda. Costa cresceu a ouvir música, andou pelo punk, fez rádio, e a sua obra tem marcas dos seus gostos: os Wire ouvem-se em "Ossos", os Tubarões em "Juventude em Marcha". O nome inglês de "Casa de Lava", o seu segundo filme, era "Down to earth" "por causa do Stevie Wonder", confessa. Já "Juventude em Marcha" em inglês chama-se "Colossal Youth", título do único disco dos Young Marble Giants. Para mais, diz que "o Straub [que filmou em "Onde jaz o teu sorriso"] "é a coisa mais próxima dos Ramones". Portanto, mesmo que ele agora diga que "a música deixou de ter importância na [sua] vida" ela foi, algures, fundamental. A proposta era fazer-lhe uma "jukebox", descobrir-lhe um outro lado. Mas em vez de o pormos a adivinhar bandas obscuras do circuito psicadélico-espacial de improvisação de Jerkoffville, USA, preparámos uma ementa que aproximasse do seu universo.
Ao início, ele foi um homem de poucas palavras, lentamente libertou-se e descobrimos-lhe o humor. No retrato desse outro Pedro Costa que hoje não está obcecado por música mas já a viveu intensamente, ele sur­ge mais à vontade do que se pode es­perar do cliché que faz a sua imagem. Pelo meio há descobertas inesperadas acerca do seu gosto.

O lado dos pretos

A primeira coisa que diz quando a música começa a tocar é: "Mas isso eu já conheço, pá". Era Balibar, "Ne Change Rien", retirado do primeiro disco da actriz, "Paramour". "Eu já a conhecia, mas quando es­tava a preparar o 'Juventude em Mar­cha' o Philippe Morel, que fazia o som do filme, passou-me o primeiro disco dela – que é este". E gostou? "Gostei". Muito? "De 50 por cento". O que é suficiente, porque "aos amigos a gen­te desculpa coisas, passa por cima de algumas fraquezas". Mantendo-nos nos franceses com ligações à música e ao cinema, pomos Serge Gainsbourg, "Je suis vennu te dire que je m'en vais", mas o ve­lho perverso diz-lhe pouco ou nada. Também não se interessa por bandas sonoras. Pomos "Main Title", da BSO de "A Desaparecida", filme de John Ford (herói de Costa), e ele atira: "Is­to aqui é fetichismo, e eu não sou fetichista. Isto ouve-se nos filmes, não em casa".
O caso de Balibar é diferente.
A actriz começou a cantar "porque um encenador a convidou para um espectáculo sobre os Velvet Underground, em que ela fazia de Nico". Só que Balibar nunca fez Costa lembrar-se de Nico. Do que Costa gostou, o que o apelou a fazer o filme foi ("e apenas à segunda, ou à terceira ou à quarta audição do disco") "do 'craft' da coisa, a construção das canções, das letras".
Quando diz: "a primeira coisa que eu e a Balibar des­cobrimos em comum eram os Kinks" já muito apropria­damente "Waterloo Sunset", da banda de Ray Davies, rodava no Mac. "Eu era fanático. Gosto de tudo até aos irmãos [Ray e Dave] começarem a andar à bulha. Depois disso há um disco muito mau, que tem o 'Lola', e deixei de os ouvir." Faz sentido este amor aos Kinks, se pensarmos do seu contexto pessoal: nascido em 1960, Costa "até 1974, 1978 ou 1978 tinha um benemérito, o José Gil [pro­grama 'Em Órbita']", que lhe dava discos. "Acho que ele comprava os discos e depois recebia-os da rádio e dava-me os repetidos." As primeiras bandas que gostou "mesmo a sério" foram "Beatles, Kinks e Box Tops". Dos Beatles com­prou "os discos todos no dia da saí­da". O primeiro que comprou com o seu dinheiro, "dinheiro de trabalho", "foi o 'White Album', que custou 200 e tal escudos." Lembra-se do sí­tio. Dizemos-lhe: "Se gostava dos Box Tops talvez goste disto...", e pomos "Ain't no mountain high enough", obra-prima do primeiro disco a solo, homónimo, de Diana Ross. Acrescen­tamos: "Ou então ainda lhe dá para vomitar".
"Vontade de vomitar não dá", res­ponde. Fica atento uns instantes e assume que não rejeita: "Gostei". Confessa: "A Diana Ross, para mim é o 'Upside Down', vem na mesma época em que descobri o Marvin Gaye, os anos 80". Diz com graça que podia "dizer que o [conheceu] com o 'I heard it through the grapevine', mas a primeira coisa [que ouviu] foi o 'Se­xual Healing'". "A partir daí", admite, "passei-me para o lado dos pretos. Os brancos deixaram de existir".
O lado dos pretos inclui Prince, que "também era muito bom". Mas no topo está Stevie Wonder, de que ouvimos "Village Ghetto Land", de "Songs in the Key of Life". A inusitada paixão vai ao ponto de referir que "já disse em Cannes que gostava de adaptar o 'Innervisions' ao cinema". O projecto ainda não foi para a frente por culpa própria: "Ainda não sei como fazer". Contextua­liza historicamente o amor por Stevie, em termos que a maior parte das pessoas não estarão à espera: "O Stevie Wonder sempre foi muito popular. O 'What's Going On' [de Marvin Gaye] não era música que passasse na rádio, enquanto o 'Superstition' era".
De repente, atira: "Ainda não fa­lámos de coisas muito importantes como Michael Jackson e Chic". Tem a mais simples das explicações para se interessar por Michael Jackson: "Gosto só porque é bom". Acres­centa ainda que gosta "das coisas bem produzidas, das coisas bem feitas".
Seria o asceta Costa capaz de dançar isto? "Sim, mas isto [Stevie Won­der] é mais música de se ouvir em casa".
Mantendo o pendor na música dançável, regressamos aos filmes dele, aos Tubarões com o fabuloso "Labanta Braço", que se ouve em "Juventude em Marcha": "Isto teve o seu momen­to em Lisboa e foi relativamente forte", lembra, e para que não haja dú­vidas: "Na altura, eu estava lá". Oferece-nos ainda mais uma confissão: "Os Tubarões são muito populares nas Fontainhas. Esta canção foi escolhida pelo Ventura – aliás, o disco era dele. O Ventura deu-me o gosto de ouvir o senhor Roberto Carlos, que ele gostava muito. Eu agora também gosto".
Em troca, ele levou-lhes D'Angelo: "Agora já ouvem D'Angelo", diz. O processo foi moroso: "Teve de ser aos poucos, que aquilo lá é complicado". D'Angelo é "a única coisa que oiço constantemente hoje". Todas essas coisas", assinala, "só vieram depois de quatro anos de fanatismo total do punk". Punk, sim, mas atenção, rock não. Confessa: "Nunca [gostou] muito de rock'n'roll, nunca [foi] rocker”.

O Punk

Tínhamos posto "Colossal Youth", a canção dos Young Marble Giants, que ele usa para titular "Juventude em Marcha" em inglês e ficámos surpreendidoso ao ouvi-lo dizer: "Não sou doido por isto". Na realidade na época "preferia Wire, Buzzcocks, Undertones, os Gang of Four. Na altura até lia o NME ['New Musical Ex­press']". Mudamos para Clash, "London Calling", do álbum com o mesmo nome, e isto faz Costa sair do tom "blasé". "Isto entusiasmava-me mesmo. Fui ao concerto, em 1981. Íamos todos juntos, um gru­po enorme. Nessa altura ia aos con­certos todos. Dois dos Gang of Four ficaram em minha casa". A recorda­ção vai ao ponto de ser confessional: "A Anamar, que era mesmo punk, ia aos concertos todos e arranjava ma­neira de ir aos bastidores – como ela era gira e tinha piada, acabávamos sempre com os músicos. Inclusive ela teve um ligeiro 'affaire' com o Élvis Costello".
Ali entre 1977 e 1981 Costa não foi punk, mas andou com o punk para todo o lado. Ele e os amigos organi­zaram "uma comemoração dos 25 anos do rock em 79": "Foi o primeiro concerto dos Xutos", recorda. Em 1980, tinha um programa de rádio chamado "Tecnicamente normal", na RDP2. "Naquela altura, a RDP2 só passava quase música clássica", pelo que Costa "passava Ramones, Small Faces e depois uns Schoenbergs, uns Stravinskys". Havia "uns fãs fanáticos, que iam à rádio para nos ver". Com o seu colega de rádio fazia "cola­gens do 'Pássaro de Fogo' com Ramo­nes. A gente fazia efeitos, púnhamos sons, como se fazia no 'Sgt Peppers'. Como lá há muito arquivo, juntáva­mos vozes de políticos, de poetas". De certa maneira, pode dizer-se que já na sua paixão musical "faziam ver­dadeiras montagens". Só para o provocar, pomos uma can­ção bem pop num disco nem por isso pop: GNR, "Dunas", de "Os Ho­mens não se querem bonitos". Re­acção imediata: "Eh pá, não. Na altu­ra, o único grupo português, para mim, eram os Faíscas. Isto [GNR] são coisas a que não ligava nenhuma". Segunda provocação: "E os He­róis do Mar?" A resposta é mais enfática do que podíamos espe­rar "Fui-me embora do meu gru­po de amigos por causa de gente que gostava dos Heróis do Mar. Musicalmente, ideologicamente não me dizia nada. E eu parti pa­ra o cinema. Até então, está­vamos todos de acordo nos discos e nos livros. Depois os tipos de direi­ta começaram a mistu­rar umas ideologias, umas filosofias e apareceu algo de afirmação pessoal e pátria que não havia até então. Fui-me embora".
Variações diz-lhe "o mesmo que diz a todos os portugueses". Costa viu o fe­nómeno de perto, tem simpa­tia, mas não mais que isso: "A minha namorada na altura, a Rita Lopes Alves, inventou o Variações um bocadinho, fazia-lhe os fatinhos, etc. Na altura a associação que se fazia ao Variações eram os Spandau Ballet. Andava tudo doido com os Spandau Ballet. A ca­beça das pessoas andava doida, não sei o que andavam a tomar. Aqui [em Portugal, nessa altura] houve um grande corte com a realidade: no dia seguinte [ao punk] estava tudo a ouvir Spandau Ballet, Variações". Costa foi-se embora da música de vez: "Desde então que não apareceu nenhum grupo com que tivesse uma relação intensa". Diz não ter palavras para "dizer o mal que [acha] do pós-punk, das coisas mais experimen­tais". Era "contra os Joy Division, porque vinham com as gabardinas e aquelas coisas sobre as paixões", mas abre excepções para os Smiths e para os PiL, de que ainda hoje é fã.

Os ícones

Porque Balibar começou na música a fazer de Nico, demos-lhe Nico. E ele levantou-se e foi buscar a sua garra­finha de uísque, porque "estes mo­mentos são penosos". Nunca gostou dela. E vai mais longe: "Se calhar não devia dizer isto, mas não posso com o [Leonard] Cohen, com o [John] Cale, com a Nico". Mais gente da pop-folk burguesa que ele não aprecia: Tom Waits e Johnny Cash. "Há um lado intelectual nesses gajos que o Ray Davies não tinha, que o Lennon não tinha", diz. Falamos de Bonnie Prince Billy, que ele viu, de uma das vezes que cá veio. "Quando o vi, no Ritz, julgava que era um dos valentes. Mas depois estes tipos pas­sam todos por uma coisa de 'Deixa-me lá ser original neste novo disco'. Presumo que seja difícil ganhar a vida como músico."Já que ele não gosta de Bonnie Prin­ce, experimentámos alguém de quem Bonnie Prince não gosta mas Dylan gostava: Townes van Zandt com "Waitin' around to die". Insolente, atira: "Tudo o que ele está para ali a dizer, a beira da estrada e os coiotes ou lá o que é [não há qualquer refe­rência a beiras de estrada ou a coiotes na canção] não me interessa nada. Acho que sou muito urbano". Pomos "In The Ghetto", versão de Nick Cave para a canção imortalizada por Élvis. "Isto é o Nick Cave. Há mui­ta gente que canta a fazer versões dis­to, não há? De certeza que são todas melhores. Já o conheci pessoalmente, é muito simpático, cozinha para a mu­lher e para os filhos, mas há ali um lado rock'n'roll misturado com teatro que nunca consegui gostar".
Pomos o próprio Élvis, com "Hound dog" e essa já é a sua quinta. "É o rei. Eu gosto mais da fase Las Ve­gas, embora tenha grande parte da obra dele. Não gosto dos filmes – o 'Jailhouse Rock' é o único que se aguen­ta. É um senhor, este homem".
Argumentamos que Élvis também é teatral e Costa reformula a sua irri­tação anterior: "Se calhar o que me irrita naqueles tipos não é o teatral, é o intelectual sentimental".
É visível que não gosta das luminá­rias, gosta é de grandes ícones não moralistas: reconhece "Young americans", de Bowie, cujo lado teatral não o incomoda porque "o teatro de­le é melhor". Além disso, Bowie "tem um lado de negro, por causa da pro­dução", é um tipo "com um certo grau de sofisticação".
Um certo grau de sofisticação e na­da de sentimentalismos. Pegámos então numa senhora pouco sofistica­da e muito sentimental: Billie Holiday com "The end of the love affair".
"Não sei como é que se há-de falar disto. Não tenho palavras". Imagina que o seu amor por ela "tenha a ver com o imaginário do cinema ameri­cano", mas, por outro lado, não se põe "a ouvir a Peggy Lee ou o Sinatra": Isto, diz, "não quer dizer que eles sejam maus, quer dizer que para mim a música não é uma coisa vital, não a procuro".
Conclui: "Nem sequer tenho uma discoteca".
E então atira a bomba: "Vocês sabem qual é a minha banda preferida?"
Não.
"Pet Shop Boys. Esses nunca enganaram ninguém."

Kinks com guitarras

Está a rodar "Love etc." primeira faixa de "Yes", o mais recente dos Pet Shop Boys, e Costa a admitir que deles compra os discos todos e que “o problema é explicar aos néscios a grandeza desta coisa", isto é, dos Pet Shop Boys. "Há uma coisa agradável neles, que é ser tudo parecido de canção para canção". A música dos Pet Shop Boys apela-lhe porque há nela "um lado de prazer imediato”, algo que quem veja os seus filmes nunca imaginaria.
"De vez em quando falam de politica ou assim, mas por norma são canções de amor e têm muita graça”. O lado lírico leva-o a ver "Neil Tennant como o herdeiro do Ray Davies": "Pegas no 'West End Girls', tiras os sintetizadores, pões guitarras e são os Kinks", atira em registo de boutade séria. As Fontainhas deram-lhe Roberto Carlos, ele deu-lhes D'Angelo.
Nós não lhe demos nada que o tivesse encantado, ele não só nos surpreendeu como ainda nos deu um disco que tinha "a certeza" que não conhecíamos: "Vai ser uma vergonha", diz ele.
São os Les Fleurs de Lys, o disco "Reflections". Não conhecíamos. Mas recomendamos sem vergonha.

ípsilon

sábado, 21 de novembro de 2009

BLACK ALBUM

TERNA É A NOITE DE JEANNE BALIBAR,
NA LUZ E NA SOMBRA DE UM FILME
ASSOMBRADO PELOS SONHOS DA JUVENTUDE.
NADA MUDOU: O AMOR TORTURA,
A PAIXÃO DEVORA. “NE CHANGE RIEN”

Texto e Entrevista de Francisco Ferreira


QUANDO Jeanne Balibar lançou o seu primeiro disco, "Paramour" (2003), muitos disseram em França que, para a ac­triz, aquela era uma experiência de passa­gem, um petit bijou, pausa chique (de al­guém que o é, de facto, da cabeça aos pés) entre mais um filme e mais uma peça de teatro. Afinal, são rumores e ideias feitas que surgem sempre que um artista se aven­tura em 'terreno alheio'. Acontece que "Pa­ramour", álbum de canções de amor, disco sombrio sobre a tortura dos sentimentos, mostrou uma elegância sem par e não foi um disco qualquer. Ao lado de Rodolphe Burger, ex-líder do grupo francês Kat Onoma, Balibar descobriu uma verdadeira ban­da rock que tocava, procurava e encontra­va uma forma de melodias clássicas e de arranjos complexos; 15 temas sensíveis que misturavam composições originais, covers de Peggy Lee ('Johnny Guitar') e samplers de Jean-Luc Godard; notas invernais e me­lancólicas, escritas à flor da pele – e uma inesperada alquimia, algures entre a femme fatale de Dietrich e o espectro vocal de Barbara. O resultado, muito eficaz, prolongar-se-ia a um segundo disco, "Slalom Dame" (2006). Pedro Costa conhece Balibar pouco depois de "Paramour". Começa a fil­mar uma mulher que se entrega à sua voz e à música, num espaço fechado – seja este o estúdio de Rodolphe na Alsácia ou o palco de um café de Tóquio –, e ela fá-lo com um tal investimento e emoção, quase como se a sua vida deles dependesse. Mais tarde, Bali­bar levantou um pouco o véu: "Sempre sen­ti que ser actriz era um regresso ao tempo do recém-nascido: lavado, vestido, pentea­do, observado; e o ser actriz de teatro, um regresso ao encantamento das primeiras palavras. Talvez o ser cantora rememore, indefinidamente, a vertigem dos primeiros passos – antes da palavra ou da primeira braçada –, já depois da idade da razão." Na estreia desta 'vertigem', em Cannes, Pedro Costa diria: "'Ne Change Rien' foi construído como um disco.” Dele saberemos um pouco mais, nas páginas seguintes. Este é o seu black album. Um black album oferecido à maior actriz francesa da sua geração.


Photomaton & Vox

PEDRO COSTA, tal como Jeanne Balibar, não separa o cinema do teatro e da música. Nem o som da imagem, que em "Ne Change Rien", segundo nos disse o realiza­dor, têm a mesma e fundamental importân­cia. Que haja, pelo menos, um filme assim – e logo cantado, com um certo encanto.


Como começou "Ne Change Rien"?

Como têm começado todos os meus fil­mes: com um encontro. Conheci a Jeanne no Festival de Marselha, em 2003. Descobri­mos paixões comuns: Lubitsch, Lennon-McCartney, Ray Davies, Howard Hawks, os Velvet, Marilyn Monroe... A Jeanne estava en­tão num momento muito tenso e intenso da sua vida: ganhara coragem para escrever as primeiras canções e acabara de gravar o seu primeiro disco. Mas, para além da exalta­ção, senti que ela estava cheia de dúvidas.

Que dúvidas?

Sobre a sua 'carreira' de actriz de cinema (ela não queria separar os filmes do teatro e da música) e sobre o cinema francês contem­porâneo – que detesta, tanto do ponto de vista artístico como, digamos, político, o que a leva, aliás, a recusar cada vez mais filmes e a concentrar-se no teatro. Lembro-me de fa­larmos sobre esta degradação no 'ambiente' do nosso ofício. É uma decepção que ambos sentimos e que naquela altura lhe pesava muito. Depois, creio que a experiência dos meus últimos filmes a intrigou e interessou; falei-lhe um pouco dos meus 'segredos de cozinha' no Bairro das Fontainhas, da metodologia que tentei pôr em prática nesses fil­mes. A Jeanne podia juntar-se, sem qual­quer problema, à Vanda, à Zita e ao Pango... Nem preciso de acrescentar que ela é uma das actrizes que eu mais admiro.

Pode falar-nos do trabalho de Philippe Morel? "Ne Change Rien" é-lhe dedicado.

O Philippe foi o director de som de "No Quarto da Vanda". Foi ele quem primeiro me deu a ouvir o "Paramour" e o primeiro a verbalizar um desejo latente: "Temos de fa­zer qualquer coisa com a Jeanne e a música dela!" Confesso que resisti bastante. Não apenas porque já tinha começado o "Juven­tude em Marcha" mas porque a ideia de fa­zer um filme à volta da música me assusta­va. Como de costume, deixei que o tempo fosse conselheiro. Comecei por impor-me um teste simples: filmar os concertos. Fui com o Philippe até Brest e Niort, onde a Jeanne e o Rodolphe Burger estavam a fa­zer uma série de noites. O plano que abre o filme, com a canção 'Torture', foi das primei­ras coisas que filmámos. Gostei dos dias que passámos com a banda. Mas não estava seguro que tínhamos embarcado num projec­to de filme sólido e coerente. E o tempo foi passando, e o Philippe sempre a picar-nos...

Quanto tempo passou, afinal?

"Ne Change Rien" atravessa um período de cinco anos, com intervalos de muitos me­ses entre cada etapa de rodagem. Entretan­to, fiz o "Juventude...", algumas curtas-metragens, e a Jeanne muito teatro, outro fil­me com o Rivette – e tudo isto nos 'mandou recados' sobre a maneira de estruturar o fil­me. Um dia, a Jeanne disse-me que ia pas­sar uma semana com o Rodolphe e a banda a ensaiar o seu segundo disco, "Slalom Dame". Foi quando resolvi juntar-me a eles que comecei a acreditar no filme e a adivinhar-lhe uma forma. Ficaram definidos os blocos que nos conduziram à montagem fi­nal: os concertos, os ensaios do segundo dis­co e os momentos em que a Jeanne repre­senta "La Périchole", opereta de Offenbach.

Este filme colocou-lhe novos problemas técnicos? Em relação ao som, por exemplo?

Nada de verdadeiramente novo. Por mui­to que se insista no progresso da imagem de alta definição e do som digital, os fundamen­tos técnicos e as bases de trabalho continuam os mesmos. Não podemos condescen­der com a demagogia que está a abastardar o nosso trabalho. Para falar no som, e só para referir filmes sobre rock, é preciso ser cego, surdo e estúpido para não perceber o abismo que existe entre o "Cocksucker Blues", de Robert Frank, o "One Plus One", de Godard, e os artifícios do filme que Scorsese fez sobre os Stones, por exemplo. Não há comparação possível! Os filmes de Frank e de Godard foram gravados em mono, en­quanto o de Scorsese é em THX Surround, com dezenas de pistas. Não quero dizer com isto que não se deva trabalhar o som estéreo com toda a sua sofisticação – e o Godard é magistral neste domínio. O que me entriste­ce e revolta é o que estamos a perder dia após dia e, pior, o que nos é imposto: dentro de dois ou três anos vai ser impossível fazer um filme em película de negativo preto e branco; o 16 mm está quase a ser posto de parte; as televisões começam a recusar tudo o que não tenha o formato 16:9 desses plas­mas de meia-tigela... A experiência incom­parável da projecção em 35 mm está pres­tes a ser-nos roubada. Quanto ao som, já há muito que vivemos sob a ditadura da Dolby. Tudo isto tem que ver com uma pretensa rentabilidade económica – no fundo, um gi­gantesco embuste. Claro que não fiz o "Ne Change Rien" (a preto e branco, no formato 1.1:33 e, parcialmente, em mono) como reac­ção a este estado de coisas. Um filme nunca se faz contra o que quer que seja. Mas, ago­ra que falamos nisso, quem sabe?... Aliás, se me tivessem deixado, tê-lo-ia feito integral­mente em mono. Só que não o poderia exi­bir em 99% das salas, que estão sob o mono­pólio da Dolby. E quero que os meus filmes possam estrear em Los Angeles, Tóquio ou Lisboa em igualdade de circunstâncias com os de Scorsese ou Tarantino.

O som mono tornou-se uma utopia?

Quando se gravam as vozes dos actores, o som dos diálogos, seja num filme do Spielberg ou de qualquer outro, é sempre mono. Os sons de ambiente, alguns ruídos e a maio­ria dos efeitos sonoros que se juntam na mistura final é que são gravados em estéreo. Só que, hoje em dia, o delírio é total: cada som é literalmente desossado, esventrado e depois disparado pelo máximo de canais possíveis. O som já não vem só de trás do ecrã, vem da esquerda e da direita, do fundo da sala, do tecto e até do solo. E já podemos 'vivê-lo' nas nossas casas, com o home cinema. A falta de ideias e de convicção no próprio filme, para não falar na falta de confiança na imaginação do espectador, fazem com que se tente 'envolvê-lo' e conquistá-lo por todos os meios, pistas e surrounds disponíveis. O ridículo é tal que, agora, para se reconhecer o bater de uma porta ou o assobio do vento nas árvores, temos de voltar a ouvi-los num filme de Renoir ou de Ford dos anos 40... Em "Ne Change Rien", tentámos repor o som no espaço do ecrã. Neste sentido, quase se pode dizer que é um filme feito tanto do ponto de vista da câmara como do microfone. Na mistura final, recentrámos o som, tentando, ao mesmo tempo, redescobrir a energia, o equilíbrio e a concentração de quatro músicos que tocam juntos. Vamos a uma comparação fácil: ainda me lembro de uns indigentes a planar com aquelas bodegas dos Génesis que, como por ordem divina, só se podiam 'apreciar' em grandes aparelhagens; e, depois, não foi um alívio poder pôr uma cassete dos Buzzcocks num deck de trazer por casa? Quanto ao mono, e para sossegar os progressistas, vale a pena lembrar o susto de John Lennon, há 40 anos, quando o produtor George Martin misturou em estéreo o "Sgt. Pepper`s...": "Que raio de coisa é esta?", perguntou Lennon. "Isto não somos nós! Somos quatro e tocamos juntos, não tocamos separados!" Foi o Lennon que disse a palavra: "separados". Há umas semanas, McCartney confirmou: "Se querem ouvir Beatles a sério, ouçam as gravações mono."

Há nos ensaios de rock uma estranha cal­ma, como se os músicos fossem um grupo de amigos reunidos em segredo. O ambien­te é um tanto thrillesco; levados por ele, esquecemo-nos da palavra 'documentário'.

Enquanto os filmava no estúdio, com aquela luz entre crepúsculo e alvorada, ima­ginava a história de quatro tipos que estão a fugir de qualquer coisa, como num filme do Nicholas Ray. Quatro tipos escondidos numa cabana na floresta, a bela que canta e acalma, o tipo do baixo sempre com o dedo no gatilho, prestes a explodir, o 'chefe do gangue', reservado, imponente e seguro... E o Rodolphe não é mesmo parecido com o Brian Keith no "Nightfall"? Via-os assim e ia ouvindo a música da Jeanne como se fosse a banda sonora ideal para esse filme. Acho que, nos ensaios, os músicos transformam-se um pouco em personagens.

E nas sequências de "La Périchole"?

O filme é organizado em blocos estan­ques que, apesar de contribuírem para uma narrativa única, contêm momentos musi­cais opostos. É evidente que Offenbach na­da tem a ver com a pop. Os puristas dirão que, nas representações de "La Périchole", está em jogo uma questão de técnica e outro nível de concentração. Que nos momentos rock a gravidade se dissipa. Que há uma dife­rença de 'elevação e de classe' quando se atinge o longo plano com a Jeanne e a sua directora musical. Não vejo nada as coisas assim. O Ventura no "Juventude..." recitava Desnos na Buraca e entrou na Gulbenkian sem pedir autorização. De qualquer modo, a aparição de Offenbach no filme é milagro­sa. Mas não sei quem mais ajuda quem: se é a pop a dar a mão à opereta, se o contrário. Vale a pena dizer que Offenbach desejava que a sua música fosse cantada por não-profissionais, por saltimbancos. E tudo se passa­va, de facto, nuns bares dos bas-fonds de Pa­ris, entre copos de absinto e umas danças selvagens que lembram muito o pogo de Sid Vicious e companhia. E é de "La Périchole" que nasce "Le Carrosse d'Or", de Renoir. A Jeanne/Périchole é outra versão da Camilla (Anna Magnani). Eu só conhecia Offenbach das vulgarizações do cancã, das cenas boé­mias de Pigalle e desse folclore. Julgava-o fora do meu raio de acção. Afinal, não: a sua descoberta enriqueceu o filme.

Volto ao rock para falar de uma sequên­cia que impressiona: às tantas, Jeanne diz aos músicos que precisa de uns minutos pa­ra se concentrar. E o filme 'dá-lhe' – e dá-nos a ver – esse tempo, que é precioso.

Essa sequência dura nove minutos. Foi, de todas, a mais difícil de construir. Talvez tão extenuante e tensa de trabalhar como o dia 'infernal' que a Jeanne e o Rodolphe ti­nham vivido. Mas a decisão de a colocar no início foi irreversível. Para o bem e para o mal, esse momento é afirmativo e severo: de­fine que não vamos ver um filme-rock, nem um filme-concerto, tão-pouco um making of dos bónus DVD. Anulam-se certas ideias feitas sobre o modo como a música é geralmente tratada no cinema. É uma maneira de arregaçar as mangas e pôr as mãos na massa da realidade. E é nesse momento que os mais impacientes desistem... Durante uma das projecções em Cannes, eu estava perto da saída, com a Jeanne, e passou por nós um casal que disse: "Tinha começado tão bem e logo lhes havia de dar para aquilo!"

Há um trabalho de insatisfação permanente dos músicos em "Ne Change Rien" que recorda o dos Straub em "Onde Jaz o Teu Sorriso?". Concorda?

Mas a Jeanne, o Rodolphe, o Marco e todos os outros músicos são pessoas tão sérias como o Jean-Marie Straub e a Daniele Huillet. E não estão a representar. Eu já sabia o que ia encontrar: trabalho duro, muitas repetições, angústia... Já ouvi dizer que este é um filme abstracto. Enfim, pode ser... Mas o que aqui se filma é muito concreto. Acho, no entanto, que o que une este filme ao "Onde Jaz..." não é o lado documental sobre um trabalho, é a sua parte de segredo, de ficção. Nos dois filmes tenta-se ir um pouco mais além do simples olhar interessado e cúmplice sobre o trabalho de alguns artistas; mesmo no caso da Daniele e do Jean-Marie, para lá da tenacidade e do esforço, há sempre algo mais que pode muito bem ser um contributo capital para que 'a coisa pegue'. Talvez seja o tal sorriso escondido. Se não houver esse mistério, essa tensão, não há documentário. Tenho sempre confiança em que esse 'algo mais' possa crescer e tornar-se ficção. Por exemplo: também neste filme se forma um casal – Jeanne, Rodolphe – e, a pouco e pouco, também se estabelecem alianças ou solidões. Mais do que em qualquer outro filme meu, é pelo som, pelo silên­cio e pela música que se constroem as rela­ções, a geografia e o tempo. E havia, no fun­do, o desejo muito forte de fazer outro filme 'intemporal' e espacialmente vertiginoso. O preto e branco, claro, ajudou. Foi uma deci­são tardia, já durante a montagem, um se­gredo de polichinelo... Eu detestava os light shows dos concertos – feitos pelos técnicos das salas. Regra geral, seja para o Stevie Wonder ou para a Jeanne, as luzes do rock são aleatórias e as cores acabam sempre por vir carregadas de psicologia barata. Filmei em vídeo, mini DV, a cores. Um dia, rodei o botão da saturação do monitor – e tivemos algumas surpresas: descobrimos o corpo da Jeanne, a boca, as veias, as rugas, os ner­vos... Apareceu uma sensualidade nova. E, por fim, um factor determinante: este filme nunca foi declarado como tal. Nunca nos dis­semos que estávamos a fazer uma longa-metragem. Não havia contratos. Nada.

Como funcionou a produção?

Sem fazer sacrifícios. Sem desperdício nem inflação. "Ne Change Rien" custou 100 mil euros. É uma co-produção maioritária portuguesa entre a Sociedade Óptica Técni­ca, que recebeu 50 mil euros do ICA, a Cinematrix, de Tóquio, que pagou a rodagem no Japão, e a Red Star Cinema, francesa, que cobriu a pós-produção. Nada mau para um filme de 95 minutos, em 35 mm, em verda­deiro negativo preto e branco, com som Dolby digital. Um orçamento que cabe na cova de um dente de qualquer longa-metragem portuguesa. Aliás, tive a prova de quão absurdos e corruptos são estes tempos quan­do, logo no início, tentei encontrar mais 5 mil euros em Portugal. Fui pedir a um se­nhor importante do sector privado: "O meu amigo deve estar a brincar! Esses números não são interessantes." Que fosse para casa e refizesse o orçamento para 50 mil... Repeti-lhe que só precisava de 5 mil. Nunca mais tive notícias do sujeito. É isto o cinema português. Caiu nas mãos de incompetentes que inventam fundos manhosos e deitam dinheiro à rua em filmes que não valem nada nem rendem um tostão. Não temos salas, o nosso único laboratório está moribundo, mas ganhamos a Palma de Ouro. Vive-se entre o roubo e a esquizofrenia. Quanto a "Ne Change Rien", vai estrear em cinemas de sete países. E não estou a falar do Belize ou da República da Quirguízia.

A Jeanne Balibar prolonga uma linhagem de personagens femininas nos seus filmes?

"Ne Change Rien" é um filme com muitas canções de amor... versos, poemas e palavras sobre a tortura da paixão e os tormentos da solidão amorosa. Talvez seja mais fácil dizer que há nele 'canções antigas' que contam a história de mulheres que já filmei: a Isabel de Castro, a Isabel Ruth ou a Edith Scob. Canções de embalar que podiam ter sido escritas para a Clara de "O Sangue". Outras que podiam ser, não digo cantadas, mas trauteadas – com um iróni­co sorriso nos lábios – pela Vanda Duarte no seu quartinho. A Jeanne disse-mo: "Este filme é muito mais do que um retrato meu." É um retrato de várias mulheres. Mulheres, ou fantasmas de mulheres, que me devem pertencer, que eu devo idealizar através do cinema e, neste filme, pela força da música. Ou, se calhar, sou eu o fantasma... Quando a Jeanne viu pela primeira vez "Ne Change Rien", descobriu-se, se assim se pode dizer. E, ao mesmo tempo, reparou que eu estive sempre ao lado dela. Nunca usei uma teleobjectiva na vida. Podia e queria sentir a sua respiração. Tal como aconteceu com a Vanda, de resto. Durante a rodagem de "No Quarto da Vanda", ela perguntou-me às tan­tas: "Mas quando é que a gente começa?" E eu já estava a filmá-la há seis meses.

Afirmou que "Ne Change Rien" foi cons­truído como um LP. Fiquemo-nos pela mú­sica pop: qual é o seu Top 10 de sempre?

Sem ordem: "Innervisions", Stevie Won­der; "Rubber Soul", Beatles; "Voodoo", D'Angelo; "Something Else", The Kinks; "Metal Box", PIL; "Chairs Missing", Wire; "Off the Wall", Michael Jackson; "Small Fa­ces", Small Faces; "What's Going On", Marvin Gaye. O último não digo.


Expresso, 21 Novembro 2009
Come together

"NE CHANGE RIEN" tem dois lados, como um LP. Um lado 'A', tenso e angustiado, e um 'B', mais melancólico e entregue ao sabor do vento, como uma das suas canções, 'Johnny Guitar'. Talvez as duas partes se separem naquele misterioso 'plano japonês' em que duas senhoras fumam cigarros num bar de Tóquio. É um intervalo breve — dir-se-ia que o tempo, ali, parou —, como se ao espectador fosse permitido tomar um café a meio do espectáculo. E é o intervalo que basta para afastar esta hipótese de 'filme-LP' de quase tudo o que alguma vez aproximou a matéria musical da cinematográfica. Pois esta não é a história passiva de uma música já feita, antes a acção concreta de uma música 'a fazer-se' — e o seu processo criativo, que evolui à nossa frente, abre-nos novas perspectivas de julgamento.
Durante a rodagem de "Ne Change Rien", Jeanne Balibar, além dos concertos e ensaios, interpretou "La Périchole", de Offenbach. A opereta tornar-se-ia o terceiro eixo de rotação do filme a explorar o perfeccionismo da artista. E se a espiral da Balibar rocker, na beleza e na penumbra que a envolvem, provoca empatia imediata (Jeanne está tão perto que quase parece podermos tocar-lhe nos cabelos), a Balibar cantora lírica, esteja ela entre a 'espada e a parede' de um ensaio ou num palco filmado dos bastidores, não é menos atraente. Afinal, falará "La Périchole", que Offenbach criou 140 anos antes dos discos de Jeanne, dos mesmos tormentos das suas canções? Dos mesmos lamentos e desencontros? Quanto mais se vê o filme mais se desconfia que existe por ali um lastro a reflectir o passado na textura do presente, no mesmo espelho do romantismo; uma linha de ficção escondida que se insinua e vem coser as pontas.
Trabalho, memória: mas isto não basta. E se aquele lado 'A' que imaginámos, formado essencialmente por grandes planos, fosse o inventor do romance? E se o lado 'B', em que a câmara se afasta consideravelmente do rosto de Balibar, anunciasse que o romance acabou? Afinal, Jeanne canta e não traz outra coisa do que canções de amor. Sorri, emociona-se, tortura-se, desespera... O seu teatro não é épico. Enquanto isso, o filme, noir do princípio ao fim, começa a criar personagens. E insistimos: há um thriller em "Ne Change Rien" ou, pelo menos, foi isso que vimos nele. Um thriller siderante em que, como noutros filmes de Pedro Costa, uma mulher se torna o espectro do desejo de um homem. O contacto é doce, a troca difícil. E a metamorfose não é uma mellow song: exige certas atmosferas, actores transformados em silhuetas pela luz e pela sombra, corpos que se exilam de si próprios para se suprimirem, como fantasmas que nos visitam e depois abandonam o ecrã em silêncio. Até que a matéria concreta ganhe um sentido sobrenatural. Até que o real e o poético possam ser o mesmo sonho. "Ne Change Rien" é um filme ultra-sensível. Deste cinema, haverá sempre pouco.


FRANCISCO FERREIRA

Expresso 21 Novembro 2009

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A arte de Pedro Costa

Ne Change Rien

por Manuel Halpern


Há quem faça filmes, Pedro Costa constrói obras de arte. Parte do real para chegar ao sublime. E a sua obra cinematográfica, válida por si só, tem a dignidade de peça de museu. Não é por acaso que o seu trabalho foi objecto de uma retrospectiva na Tate Gallery e tem feito uma espécie de digressão pelos museus. Efectivamente, Pedro Costa vai além do cinema, explora a sétima arte como a súmula das seis primeiras. Cada frame de Ne Change Rien poderia ser emoldurado. Há uma precisão estética absoluta sem margem para descuidos. Jeanne Balibar sai daqui deificada. Mas não é por ela que este filme se guardará nas estantes vivas da memoria do cinema, é por quem a olha, por quem a mostra.

Pedro Costa apaixonou-se e deixou-se seduzir pelos encantos sombrios da cantora. Mas ao revelar a sua paixão, faz de nós cúmplices sem retorno, nem qualquer remédio se não deixar-nos encantar pelo retrato em quadros hipnótico. É hipnótico o efeito, não só pela quietude da imagem, mas pela ideia de repetição. Se em Onde Jaz o teu Sorriso, Pedro Costa exibira o detalhe, a paciência inerente à arte, que consiste na inevitabilidade da minúcia da busca do pormenor exacto, no repete repete do trabalho dos cineastas Danièle Huillet e Jean-Marie Straub; aqui encontra o mesmo universo minucioso aplicado à música. Uma exigência estética, com a qual se sente seguramente identificado, em busca de uma perfeição, que não será necessariamente límpida. Interessa-lhe mais exibir a tentativa e o erro do que o final feliz.

Enquanto desvenda a sua personagem, que não precisa de muito mais do que cantar e ensaiar para se dar a conhecer, Pedro Costa apura as suas concepções estéticas, nos habituais tons soturnos, em jogos de sombras de um cuidado meticuloso. A soturnidade está mais no olhar de Pedro Costa do que em Jeanne Balibar.

Descobre-se assim perfeito o encontro entre música e cinema, numa montagem discreta, na criação de uma atmosfera de luzes (através da ausência de focos), de uma artificialidade realista, que permite que a sua percepção domine sobre a realidade. E, para nós, não há nada tão real como a percepção que temos do outro.

Para quem conhece o seu percurso, não surpreende assim tanto esta nova Vanda, pela qual Costa se apaixona. O realizador é extremamente musical. Já em O Sangue convidara Manuel João Vieira para um papel importante, e usara, sem chegar à parte cantada, This is The Day, dos The The. Aqui os encantos são mais do que óbvios. Balibar é uma cantora de uma versatilidade espantosa, com um timbre justo e uma capacidade de expressão arrebatadora. Tanto interpreta Offenbach como Peggy Lee. E o seu rosto enche de emoções o ecrã, mesmo quando o realizador opta por o deixar meio fechado na sombra. Literalmente, repetem-se palavras ditas no filme: «Se ao menos pudesse beijar-te, valia a pena a espera». E a música encontra-nos como um beijo que sobressai da escuridão.


Jornal de Letras

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Ne Change Rien

Uma pop song das trevas

por Luís Miguel Oliveira 19-11-2009


"Ne Change Rien" é um grande filme sobre o trabalho, sobre a paciência e a exasperação, sobre a aprendizagem, sobre o trabalho artístico como processo repetitivo.

Que "não mude nada", pede o título, sem explicar quem faz esse pedido a quem, se é que alguém o faz a alguém. O título vem de uma canção de Jeanne Balibar, que por sua vez "samplou" a voz de Jean-Luc Godard a dizer isto, "ne change rien", numa passagem das "Histoire(s) du Cinéma" (e é espantoso o momento em que, por via desse "sample" e da "puissance de la parole", Godard vem assombrar o filme). Mas portanto, ainda não passámos do título e já aqui há uma corrente (de pedidos?), uma "veia de transmissão" que dava vontade de perseguir (sendo certo que não é a única). Pedro Costa, evidentemente, não é nada alheio ao efeito provocado pelos títulos dos seus filmes, do que é um bom exemplo o caso de "Juventude em Marcha" e do seu título internacional "oficial", que na prática era um título diferente, "Colossal Youth". Usa os títulos como os pintores. Mas, como alguns pintores, gosta de os usar como pista, se não falsa, incerta. Não muda nada ou muda tudo? E é melhor que mude ou que não mude?

O filme não responde, com clareza pelo menos. Mas é curioso reparar no que vai mudando ao longo de "Ne Change Rien". Nas metamorfoses de Jeanne Balibar, que ora é Nico, ora é Marlene, ora é Nina Simone, ora é aluna de canto clássico com o empenho de uma liceal aplicada, ora é, mesmo (e é o "chiaroscuro" que o permite), Vanda, voltando sempre a ser, se é que deixa de ser, Jeanne Balibar. Há muitos ecrãs no filme, muitas telas brancas que Costa plantou no "décor" para cortar a profundidade ou para compor o delicado equilíbrio da iluminação. Mas os ecrãs e as telas existem para além dessa função, e ficam ali, a dar um ar de sala de cinema improvisada e rudimentar, à espera do arcaísmo de um jogo de sombras. Numa cena, contra um ecrã desses sobre o qual projecta uma sombra que faz lembrar as do "Nosferatu" (a "sinfonia das trevas"), Balibar ensaia uma canção ("Ton Diable") que fala do "teu diabo, o teu duplo ridículo". A reverberação não faz só um sentidos, faz imensos sentidos, para mais no contexto da cena: parece que fala da maneira como Balibar se oferece à câmara, à câmara que a apanha durante todo o filme numa espécie de fronteira entre a "comédia" e a "vida".

Mas parece que fala também da maneira como o cinema "entra", naquele espaço, neste filme: como uma coisa que "dobra" a vida, que se lhe sobrepõe, por vezes de maneira um pouco "ridícula" porque é só o que pode. E é o cinema que transforma Balibar em Nico ou em Marlene, como se Pedro Costa, filmando Balibar enquanto cantora, a filmasse sobretudo como actriz - o que, vale a pena notar, também assinala o regresso de Pedro Costa, ainda que desta maneira pouco ortodoxa e propositadamente ambígua, ao cinema "com actores", com actores profissionais. Uma actriz, neste caso, a quem Costa pode pedir - como um mestre bonecreiro - aquilo que não podia pedir a Vanda, ao Ventura ou aos Straubs: que mude, que vá mudando para ele.

Ainda a propósito da maneira como o cinema "entra" no filme (e nem sequer vamos mencionar o "plano Ozu"), é impossível não reparar que a cena com o plano mais aberto, com a luz mais clara, com o enquadramento mais distante e mais parecido com o que se veria num típico "filme-concerto", é a da canção do "Johnny Guitar". E é assim por uma razão muito simples: o cinema "entra" pela canção, não é preciso mais nada.

E o trabalho, evidentemente. "Ne Change Rien" é um grande filme sobre o trabalho (traço que mais salientemente o liga a "Onde Jaz o Teu Sorriso?", o filme com Straub e Huillet), sobre a paciência e a exasperação, sobre o cansaço e o erro, sobre a aprendizagem, sobre o trabalho artístico como processo repetitivo mas onde a repetição é a medida da disciplina que permite que a obra vá nascendo por decantação (e nisto estará o traço que mais salientemente liga "Ne Change Rien" a "One Plus One", o filme de Godard com os Stones). Balibar é a heroína deste processo. Há os outros músicos, com certeza (como o excelente Rodolphe Burger), mas a heroína é ela. Criatura das sombras, ora as domina ora é dominada por elas. Tanto se entrega ao ponto de se "zombificar" (a cena em que tenta interiorizar o compasso da melodia, repetindo-a infinitamente), como resiste, por exemplo na aula de canto com que se prepara para interpretar as canções de Offenbach. O anti-climax dessa cena é fortíssimo, com a distância (a "resistência") expressa na "nonchalance", ao mesmo tempo muito fria e muito doméstica, com que Balibar fala do frigorífico e do que se esqueceram de comprar para o almoço. Por outro lado, falando uma das canções de Offenbach (que ouvimos mais tarde) de miséria e fome, essa observação de Balibar torna-se um gag "diferido". Há outro mais directo: no fim da actuação, pela porta à esquerda do enquadramento (presumivelmente já uma porta de bastidores), mal Balibar acabou de cantar sobre a impossibilidade da felicidade de barriga vazia, sai um tipo a mastigar uma sandes. Pedro Costa justificou esse enquadramento com a vontade de ter nele o pianista, que era "um pianista de John Ford". Ainda uma pista incerta, diríamos: o que ele quis foi ter a porta, uma porta de ripas como nas casas do Bairro das Fontaínhas, e as paredes a brilharem com alguma coisa que parece humidade (e se conseguiu ter isto e o tipo com a sandes e ao mesmo tempo ter Ford, tanto melhor).

Portas e paredes que, sendo ingredientes fundamentais dos filmes de Costa, são aqui menos ostensivas. Ou não as há - o estúdio foi improvisado numa espécie de "loft" - ou estão escondidas pelas sombras, porque é sempre noite ou recriação da noite. Há um plano fabuloso como uma janela (de onde vem a luz do dia) e uma Balibar entre a concentração e a prostração (como se o dia não a tocasse). Por outro lado, nas cenas em que ela parece mais cansada ou dominada não conseguimos deixar de pensar que a ausência de portas e paredes tem alguma coisa a ver com o assunto: as heroínas de Pedro Costa gostam do seu espaço bem definido, bem marcado.

É claro que, feitas as contas, quem pede que "não mude nada" somos nós, espectadores. Durante a hora e três quartos que dura a projecção de "Ne Change Rien", não queremos que mude coisa alguma. Pedro Costa "did it again".

ípsilon

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Nobuhiro Suwa y Pedro Costa estremecen

Aún no hemos catado la alfombra roja que nos lleva a la Salle Lumière (a la que sólo nos permiten acceder por las mañanas) durante nuestra tercera jornada en Cannes. Tampoco ha sido necesario, si hemos de ser sinceros, para ver una de las mejores muestras cinematográficas que nos ofrece esta edición del festival. De modo que hoy también hemos preferido quedarnos inmersos en el universo de imágenes puras, en la Quincena de Realizadores - Pedro Costa con Ne Change Rien y Nobuhiro Suwa e Hiyppolyte Girardot con Yuki et Nina -. Mientras, en el centro del glamour, sobre las escaleras, pasaba la presumible melaza new age: Jane Campion, que ha vuelto a la competición oficial poniendo en escena la vida amorosa de Keats en Bright Star, suponemos que con su habitual estilo desbocado-.

El portugués Pedro Costa y el japonés Nobuhiro Suwa nos han paralizado, como era de esperar, pegados en nuestras butacas, ante la pantalla. Ambos son compinches habituales, y los representantes más notorios de una cierta radicalidad cinematográfica contemporánea que viene del underground americano (los dos tienen como padres putativos a Warhol y Kramer), y se pliega en una asimilación milagrosa y muy orgánica de sus culturas sin histrionismos exóticos. Su pureza narrativa llega a tal punto, que podrían filmar en sociedades ajenas con la misma naturalidad que lo hacen en la suya propia. Claro ejemplo de ello es la última obra del japonés.

Nobuhiro Suwa es el más importante cineasta japonés que rueda hoy, y sus películas las que mejor hablan del núcleo familiar y de la intimidad en todas sus variantes, su delicadeza es extrema, su intervencionismo mínimo. Así como en Una pareja perfecta sentíamos con sus protagonistas la crisis amorosa de una forma serena, casi callada, en su última realización es el mundo infantil el que se nos revela, haciéndonos recordar las pautas que definían nuestro comportamiento cuando éramos niños. Yuki et Nina es la obra de un maestro consumado. La protagonista, Yuki, es la hija de unos padres que se separan, lo que le supone una infancia súbitamente trasplantada de Francia a Japón; la diferencia es que, en este caso, los patrones de la acción los plantean los pequeños, que espían a los mayores, se escapan de casa y viajan de un continente a otro con sólo torcer el árbol de un bosque (la elipsis interdimensional más prodigiosa vista desde Kiarostami). Por otra parte, la libertad con la que se mueven los actores por el filme (en parte debida al hecho de que el director desconoce la lengua francesa) y la mezcla de formatos que presenta (con sus pequeñas narraciones cotidianas insertadas en la trama principal) nos traen a la memoria, en varias ocasiones, El vuelo del Globo Rojo, de su compatriota Hou Hsiao-Hsien.

Pedro Costa escruta las partes más blancas del rostro de la actriz y cantante Jeanne Balibar en una obra total, su musical, uno de las más importantes de la historia. El primero que da miedo. Ne change rien es también lo nunca visto, de hecho lo apenas atisbado por falta de luz (un compendio de claroscuros de belleza insultante). La perfección del cineasta en los encuadres y su maestría manejando la luminosidad de la escena alcanza en este filme su punto álgido: si en No quarto da Vanda la tibieza de los rayos de luz nos recordaban a los Velazquez más sutiles, la oscuridad total de este filme, ilustrada con puntos de claridad, nos lleva a pensar en los más bellos Caravaggios. Pero esto es sólo el principio del film con los fotones lumínicos más preciosamente seleccionados (Nobuhiro Suwa colaboró en la fotografía brevemente). Consumido provisionalmente el universo de Fontainhas con Juventude en marcha, Costa pasa a contarnos en Ne change rien una pequeña historia de sometimientos; los que inflinge Jeanne B. a su guitarrista, y las torturas de su profesora de canto corrigiéndola en un aria de Offenbach. Esta cadena de pequeñas torturas narra, en realidad, el proceso de trabajo que realiza quien hace lo que le apasiona. El recurso de la repetición hasta el abatimiento, pone al descubierto el universo obsesivo del realizador que, como el buen artesano, no descansa hasta alcanzar el resultado perfecto; que no es otra cosa que la materialización de su voluntad. El cineasta portugués reelabora su propio estilo, añadiendo el elemento musical como sillar de apoyo, y desvelándonos, a la vez, su propio sistema de creación.

La película elegida del concurso en esta jornada la vimos en la Debussy: Taking Woodstock de Ang Lee. Se trata de un artificioso fuera de campo del mítico concierto de 1969 (el proyecto suena a encargo del 40º aniversario) en el que - al revés que en Costa- la música está prácticamente ausente de tan aparatosa reconstrucción (no hay ni un solo plano del escenario). Si bien es cierto que trata el tema de las relaciones familiares con mucha agilidad, la que ya mostraba en sus primeras películas, el filme no tiene demasiada fuerza; exceptuando alguna toma general desde las colinas que rodean Woodstock, en la que se intuyen las figuras que ocupan el escenario (únicas apariciones del mismo), casi como pequeñas manchas de color. Aunque Lee siempre acostumbra a aportar un insólito toque personal a cada encargo que afronta (recordemos Hulk) en Woodstock tiene la gracia de un ilustrador de libros de texto. Su foco está en los clichés hippies y en cómo colisionan con más clichés aún de una familia judía conservadora. Así que lo realmente insólito es una propuesta tan simplona en alguien tan original como Ang Lee.


ÁLVARO ARROBA

(Originalmente publicado en la Crítica de la Argentina)
Past, Moving Forward: The Little Theater of Pedro Costa

The Portuguese director discusses his Jeanne Balibar documentary, Ne Change Rien

By Scott Foundas
Published on October 28, 2009 at 6:40pm


A Pedro Costa musical — now, what would that be like?” I asked in these pages two years ago when the Portuguese filmmaker, appearing at REDCAT for the first-ever Los Angeles retrospective of his work, unveiled a 12-minute preview of his in-progress film about French actress and chanteuse Jeanne Balibar. Last May in Cannes, when Costa premiered the complete, feature-length version of Ne Change Rien, the answer was obvious: not like any musical you’ve ever seen before. Indeed, as with almost all of Costa’s work, the more you try to stick a label on his black-and-white study of Balibar in various stages of performance — “backstage documentary,” “concert film,” etc. — the more it evades capture, each new descriptor seeming at once inadequate and altogether too limiting. Is Ne Change Rien live, or is it Memorex? Only this much is certain: It is an experience.

The project, which grew out of a three-way friendship between Costa, Balibar and the late sound recordist Philippe Morel (to whom the film is dedicated), was shot piecemeal over a period of several years, as Balibar and musical collaborators (including guitarist/songwriter Rodolphe Burger) gigged around Europe and Asia and rehearsed material for her 2006 sophomore album, Slalom Dame. The result is an acutely perceptive film about the process of artistic creation, composed almost entirely of those moments that other films about performers omit or reduce to crassly compressed montages. In short, Costa, who previously documented husband-and-wife filmmakers Jean-Marie Straub and Danièle Huillet in the 2001 feature Where Does Your Hidden Smile Lie?, focuses on the work — the physical, emotional and psychological toil that goes into writing a lyric, perfecting a melody, interpreting a passage. Where most performance films — indeed, most performances — are about the seamlessness of the end product, Ne Change Rien endeavors to show us the seams. (At its first AFI Fest screening, Ne Change Rien will be preceded by Staub’s latest short, Le Streghe, Femmes entre elles.)

“The first time we showed the film, in Cannes, what I saw was that people started to walk out exactly when the work begins,” Costa told me earlier this month, sipping a beer and smoking a cigarette on the terrace of Lincoln Center’s newly renovated Alice Tully Hall, where Ne Change Rien was screening as part of the New York Film Festival. Tall and slender with mostly gray hair, dressed from head to toe in black, the 50-year-old Costa speaks in a low, ellipses-filled paragraphs that he seems to consider and reconsider even as he is speaking them. “In the beginning, there’s a bit of music,” he continued, “but when shit happens — I mean, when you have to concentrate, and Jeanne is not getting there, and the band is getting worried — that’s when I heard a couple of guys walking out and saying, ‘Oh, it started so nicely, but then. ...’”

For much of Ne Change Rien, Costa takes us inside Burger’s home recording studio, near the French-German border, as Balibar and company try out multiple variations on the Slalom Dame material (including, appropriately, one song titled “Cinéma”). It is, Costa said, where the idea for the film truly began to coalesce, “because those were more than rehearsals. They were inventing and trying things. Some songs you hear in the film are not on the record.” Then, in a a remarkable nine-minute shot, Costa shows Balibar taking detailed notes from an offscreen vocal coach while rehearsing for the title role in a 2008 production of Jacques Offenbach’s 19th-century opéra buffe, La Périchole. The teacher frequently interrupts Balibar’s performance, breaking it down line by line, measure by measure, to the singer’s — and some audience members’ — visible frustration.

“I thought she was very, very courageous in this singing,” Costa said. “I mean, this is an opera that Teresa Berganza sings; you can buy the EMI CD. But it takes a bit of courage just to sing. Singing is ... yeah, you could almost say that it’s the first thing, it’s even before language, and that connects back the Straubs, because they’re very suspect of language.” And like Where Does Your Hidden Smile Lie?, Ne Change Rien is also, by turns, a love story. “These looks they give to one another, Rodolphe and Jeanne ... everybody in Cannes thought they were lovers,” he said. “That’s okay. They are not. They’re good friends, but something happens ... it’s the work that creates a little bit this loving thing.”

Costa’s films have never been — and never will be — for everyone. Stationed somewhere between documentary and fiction, they demand an active, critical viewer willing to consider moving images in the same complex, constantly evolving terms that Costa does, whether he is observing a creative personality at work, or illustrating the realities (and fantasies) of dispossessed Cape Verdean immigrants in the crumbling Lisbon housing slum of Fontainhas. The focus of Costa’s three best-known features — Ossos, In Vanda’s Room and Colossal Youth — and two subsequent shorts, it is a terrain he has now mapped as indelibly as John Ford’s Monument Valley, complete with its own resident stock company. Commercial distribution has proven elusive for the filmmaker. Early next year, the Criterion Collection will release a DVD box set of Costa’s complete Fontainhas works, all of them available for the first time in the U.S.

Like the Straubs before him, Costa is consumed by the ethical and political implications of putting a camera before another human being. When he began filming in Fontainhas, he soon gave up the comforts of a traditional crew in favor of shooting by himself, less disruptively, on a small, digital video camera (a method he carried over to Ne Change Rien). Above all, he searches for the proper distance between filmmaker and subject. In the case of Balibar, that means an intimacy close enough to see every twitch of her neck muscles, yet entirely lacking in the intrusive vulgarity of so much music video.

Costa cited a source of inspiration in a musical number from Jean Renoir’s final feature, The Little Theatre of Jean Renoir, featuring actress Jeanne Moreau. “It’s just two shots — one where she’s standing on a stage and you see her whole body, and the second half of the song is a close-up. And you see a lot of things — it’s amazing what you see in two shots.”

He also has high praise for 1957’s celebrated “The Sound of Jazz” episode from the CBS television series Seven Lively Arts, featuring Billie Holiday (accompanied by Coleman Hawkins and Lester Young) performing a heartbreaking rendition of “Fine and Mellow.” “They have three cameras, perhaps, and they don’t abuse that. The distance in that show is amazing — especially with a person like Billie Holiday, you have to be careful.”

Indeed, in his films and in his conversation, there is a feeling that Costa aims to recover a purity of expression — a primacy of image, sound and meaning — inherent in the work of the earliest cinema pioneers. “When the Lumière brothers did a shot, the movement inside the shot is almost impossible to re-create today,” Costa said of the French siblings who were the first to publicly exhibit motion pictures. “I am always very afraid when I see a little dog crossing the street in a Lumière brothers film, afraid it’s going to be crushed by a Model T. It’s something very concrete, this menace. Then Chaplin did the same thing consciously, and Stroheim took it further. We could see so many things in those films that, today, you only see in some Filipino or Chinese films, or sometimes on TV, in some documentaries. Everything beautiful and everything dangerous and everything that has to do with society disappeared a little bit from films. I’m becoming very reactionary, but Straub would say you have to go back to the past to push things forward.”

To that end, Costa’s next project will take its partial subject the work of Jacob Riis, the journalist and social reformer who used early flash photography to create an enduring record of New York City tenements and slums at the end of the 19th century. But the film also promises to revisit the rubble of Fontainhas and its many walking wounded — the methadone addict Vanda (“star” of In Vanda’s Room), the dissolute construction worker Ventura (who occupies the central role in Colossal Youth). “It’s very fresh and I don’t know how it will be organzied, but it’s a good moment to go back and show what existed there,” Costa said as he took a last drag from his cigarette. “I think Riis is somebody who should meet Vanda and Ventura.”


Ne Change Rien screens on Thurs., Nov. 5 at 10 p.m. at the Mann Chinese 6. In addition, Pedro Costa will present Where Does Your Hidden Smile Lie?, Ossos and Colossal Youth Nov. 12-13 at the UC Irvine Film and Video Center. Complete schedule at www.humanities.uci.edu/fvc.

LA WEEKLY
No quarto de Jeanne

28.10.2009 - Kathleen Gomes, em Paris

Se pensam que uma actriz que canta é um "cliché", é porque nunca ouviram Balibar - podem experimentá-la ao vivo sábado, Lux, em Lisboa.

Entramos em casa de Jeanne Balibar com uma garrafa de vinho na mão por causa de um filme. Era para ser uma garrafa portuguesa, mas um check-in "in extremis", às sete da manhã, arruinou o plano. Levamos um Bordeaux comprado numa mercearia parisiense, ao virar da esquina da rua onde a actriz vive. Em "Ne Change Rien", o filme que Pedro Costa fez com ela (ante-estreia sexta-feira, às 21h30, na Cinemateca de Lisboa, com a presença da actriz e do realizador; estreia nacional a 19 de Novembro), Balibar oferece-se para abrir uma garrafa de vinho, alegando a sua experiência no assunto - durante um ano, conta, foi empregada num restaurante. É uma revelação que surpreende os seus companheiros de trabalho. "A sério? E como era?" "Fácil." A incredulidade, ainda: "Com os pratos, e tudo isso? Implica alguma técnica..." Ela: "Não, não."

Espanto dele, certamente por não esperar que uma actriz inteligente, filha de intelectuais com conforto económico (é filha do filósofo Étienne Balibar) pudesse ter feito pela vida. Espanto nosso, ao ver que duas pessoas (Jeanne Balibar e Rodolphe Burger) que cantam duetos tortuosos, olhos nos olhos, ainda têm segredos um para o outro.

Se pensam que uma actriz que canta é um "cliché", é porque nunca ouviram Jeanne Balibar - podem experimentá-la ao vivo pela primeira vez, sábado, no Lux, em Lisboa, depois de ontem, a actriz ter actuado em Serralves. "Ne Change Rien" é um filme sobre a música dela, onde Balibar se metamorfoseia, entre ensaios, sessões de estúdio e concertos - num minuto parece uma Marlene Dietrich com guitarras langorosas, no outro Nico, e ainda há a cantora lírica debatendo-se com a teatralidade das palavras. Talvez fosse a única maneira de Pedro Costa, que a partir de "Ossos" (1997) só trabalhou com não-actores, trabalhar com uma actriz profissional: filmá-la quando não está a representar. Numa entrevista a propósito da passagem do filme na Quinzena dos Realizadores em Cannes, o realizador confessou que Balibar é "seguramente", a actriz que mais admira hoje, mas isso não explica tudo. O filme evidencia o seu apaziguamento com a tradição cinematográfica - é a sua obra mais explicitamente cinéfila (pensamos em Nicholas Ray, em Jacques Tourneur, nos Straub) desde o primeiro "O Sangue" (1990).

Clássicos e marginais

Jeanne Balibar e Pedro Costa conheceram-se em 2004 (Balibar não tem memória para datas, diz que foi em 2001), quando ambos fizeram parte do júri do festival de cinema documental de Marselha. A actriz considera os filmes dele "magníficos", e descobriu que partilham a mesma cinefilia. "Amamos os mesmos filmes e não amamos os mesmos filmes. Haverá algumas excepções, mas penso que temos uma sensibilidade, enquanto espectadores de cinema, extremamente próxima."

Chegará para Costa fazer um filme com uma actriz? Ensaiamos outra aproximação: tanto ele como ela fazem cinema por outros meios, distanciando-se das convenções, mas com uma consciência grande da tradição - é por isso que o discurso sobre os filmes de Costa muitas vezes vão dar a John Ford; por seu lado, Balibar é capaz de representar heroínas trágicas de Offenbach ou Balzac (como a "coquette" Duquesa de Langeais no sublime "Ne touchez pas la hache" de Jacques Rivette) com um desprendimento contemporâneo. Na estreia de "Ne touchez pas la hache" em Nova Iorque, uma mulher disse a Balibar que a sua interpretação era falhada porque em nenhum momento ela parecia uma mulher do século XIX; a actriz tomou-o como um elogio.

"Mesmo que o Pedro e eu tenhamos percursos voluntariamente marginais - com as devidas proporções, porque somos pessoas que vão ao Festival de Cannes, não somos tão marginais quanto isso -, ao mesmo tempo temos uma ideia extremamente clássica da arte cinematográfica. O Pedro é alguém que parte de meios bastante divergentes e reencontra o classicismo de Hollywood. Penso que isso também é verdade sobre mim. Apesar de recorrer a meios bizarros ou oblíquos, também tenho um lado muito hollywoodiano, clássico. É uma coisa que partilhamos intensamente, mesmo que nunca tenhamos falado nisso."

Pedro e Jeanne reencontraram-se depois do Festival de Marselha porque também tinham um amigo em comum, Philippe Morel, operador de som dos filmes dele e nos filmes com ela. "Quando fiz o meu primeiro disco, ‘Paramour' [2003], dei-o ao Philippe. Ele gostou imenso e deu-o a ouvir ao Pedro, que também gostou muito, e juntos decidiram seguir os concertos que eu andava a fazer. Encontrámo-nos no Japão, onde eles filmaram os concertos que fiz lá. E, entretanto, comecei os ensaios para um segundo disco [‘Slalom Dame', 2006], e o Pedro veio filmar isso." Philippe Morel faleceu antes da conclusão de "Ne Change Rien", e o filme é-lhe dedicado. Costa nunca disse a Balibar: "Quero fazer um filme contigo". "Acho que foi mais, comigo e com o Rodolphe [Burger, compositor de "Paramour" e, parcialmente, de "Slalom Dame"]: ‘Podemos acompanhar-vos um pouco, com a câmara e com o som?' Foi muito minimal."

Balibar diz que nunca hesitou, nem pensou duas vezes, quando um realizador que não filma actores começou a filmá-la a ela. "Adoro os filmes que não têm actores profissionais. Gosto muito de ver pessoas que não têm uma vida de actor o resto do tempo." Além disso, nota, "enquanto o Pedro estava lá a filmar, eu não tinha a sensação de que estávamos a fazer um filme. Estávamos concentrados na música". Conclui: "É um presente maravilhoso poder entrar num filme sem ser actriz".

Quando ela falou sobre o filme em Cannes, ficou a impressão de que não sabia o que esperar antes de o ter visto, que o resultado era misterioso, até para ela. "Reconheço-me completamente no filme, mas ao mesmo tempo o objecto é-me bastante estranho, porque há uma ‘mise-en-scène' que está muito presente. Faz-me viajar." É que, se "Ne Change Rien" é um filme sobre a música de Jeanne, também é um filme sobre o cinema dele, Pedro. Como numa ficção, o realizador projecta as suas obsessões, os seus fantasmas através de uma actriz. "Completamente", concorda Balibar. "No fim de contas, vejo uma obra de ficção. É uma história que ele inventou..."

Para falar dele?

"Sim. Ou da música em geral, ou das mulheres, ou da mulher. De uma mulher, sobretudo. Da arte do trabalho. É um filme cujo tema não sou eu, isso é certo. Que é o que também gosto muito no filme."

Um film noir

Jeanne Balibar está aninhada no sofá da sua sala, descalça e com jeans, inspirando um Lucky Strike Lights. O gato Capucine, ronronante, dá um salto; não é o gato que atravessa a penumbra em "Ne Change Rien" - esse, evidentemente, é um gato saído de um "noir" de Jacques Tourneur para este filme de sombras.

O que é o filme para Balibar? "É um ‘film noir', como no Nicholas Ray. É o ‘They live by night': um grupo de pessoas, um pouco à margem, muito sozinhas, que estão a correr de uma perseguição. Ao mesmo tempo, correm atrás de qualquer coisa - a música, mas também qualquer coisa mais misteriosa - e fogem de qualquer coisa do mundo, dão consigo em sítios de paragem - o Japão, Aix-en-Provence, a Alsácia... Para mim, é isso: uma mulher e três tipos que estão em fuga, num ambiente de ‘film noir' americano."

Há outra coisa que Costa não fazia desde "O Sangue": um filme a preto e branco; "Ne Change Rien" é uma obra ao negro, onde os corpos não chegam a ser silhuetas, engolidos como estão pelo escuro. É um filme de câmara, rodado em interiores, o que remete para o filme que Costa fez sobre os Straub ("Onde Jaz o Teu Sorriso?", 2002). Como esse, também é um filme sobre o trabalho: o rigor, a precisão, a procura obsessiva da boa nota, o combate com a mais pequena partícula - um fraseado, uma palavra, uma entoação - como no filme com os Straub se trabalhava o fotograma. Há planos em que vemos o rosto de Balibar de perfil, a fumar - podia ser Vanda Duarte, e este filme podia chamar-se "No quarto de Jeanne". Com as devidas distâncias: não é o mesmo filme. Se é, fomalmente, um filme austero, quase estóico, também tem ligeireza e lirismo. Ligeireza: assistimos a uma lição de canto lírico, com o rosto de Balibar em grande plano, cantando Offenbach, constantemente interrompida pela professora, que fala em "off", fora de campo. É uma cena burlesca: a professora suspende o canto de Balibar, corrige-a, dá o tom. Balibar sopra de impaciência, Balibar boceja, Balibar engana-se e exclama "Putain!" Lirismo: as canções de Balibar, a par com a opereta de Offenbach (Costa filmou a actriz na adaptação teatral de "L'Histoire Vraie de La Périchole", dirigida por Julie Brochen, e estreada em Paris em 2006), falam de amores destruidores, impossíveis, de tortura, de mutilações. O filme evidencia a temática "monstruosa" do reportório de Balibar. "O filme leva isso muito a sério, porque é uma temática maior no universo da canção, mas ao mesmo tempo julgo que há humor na maneira como o Pedro vê isso", explica Balibar. "Há um humor face a esse negrume, um humor que eu também tenho. É um lado... não sei como dizer... quase alemão [risos]. Que também faz parte da história do rock - há uma espécie de humor na forma de dizer coisas muito sombrias. Alguém como Nick Cave, por exemplo - ele leva-se muito a sério quando canta coisas bastante desperadas, mas acho que existe humor ali." Uma espécie de ironia? "Uma distância." E depois, diz Balibar, "podemos permitir-nos ser bastante ‘naïves' numa canção - mais do que num romance ou num filme". "Porque é uma arte popular, porque dura três minutos... As mais belas canções dizem: ‘amo-te' ou ‘estou muito infeliz', ‘ a lua brilha no céu', ‘blue moon' [risos]. Conseguir dizer isso num filme ou num romance é duro."

Sem voz

Balibar prepara um terceiro álbum com a banda francesa de rock e electrónica Poni Hoax. Também está prevista uma série de performances num festival experimental com uma "espécie de canções" compostas e escritas por ela, que irá cantar acompanhada apenas por um metrónomo. "Estamos menos sozinhos quando fazemos música. No momento de cantar, há outras pessoas que tocam ao mesmo tempo." Não acontece o mesmo num filme? "Num filme, eu envio qualquer coisa aos outros e os outros respondem. Não fazemos todos a mesma coisa ao mesmo tempo. Na música há a harmonia. Cada um dá um acorde ao mesmo tempo e seguimos, com os músicos, um caminho que é o mesmo. É um prazer da comunhão com os outros que é de uma natureza diferente do que se passa no cinema. Aí, tocamos todos juntos - a câmara, o som, o co-intérprete - mas cada um toca a sua partitura. Ao passo que, na música, seguimos todos a mesma partitura. Adoro isso."

A voz, meio anasalada, tem uma música própria, mesmo quando ela fala. Numa entrevista, afirmou que construiu toda a sua personalidade em torno da voz. "Sim, mas isso está prestes a mudar", ri-se. "Neste momento, só tenho vontade de fazer papéis mudos. Não sei porquê, mas a voz sempre foi um ponto de apoio em toda a minha carreira e ultimamente percebi que pode haver outros. Estou sempre a dizer ao Mathieu Amalric: ‘Escreve um filme para nós em que interpretemos papéis mudos'. Mas não sei se ele o vai fazer." Há-de ser um filme burlesco.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Una espera que justifica Cannes 2009

Hay películas necesarias y películas innecesarias. Cuando uno tiene que ver por dos horas la última de Park-Chan wook, Thirst, una de vampiros con fondo teológico, el sadismo cool de Park resulta en algunas ocasiones virtuoso pero indudablemente es gratuito. Con el film de Coppola pasa lo mismo: si no existe, nada en la historia del cine cambiaría. Alguien podrá de decir que la trilogía de El padrino tampoco es una película necesaria, y me costaría bastante encontrar argumentos para desestimar tal apreciación, aunque probablemente, para la primera y la segunda parte, podría hacerlo. Sería distinto con Apocaylpse Now y La conversación.

Ne change rien, de Pedro Costa, justifica estar en Cannes. Este documental de 45 planos fijos (o 47, si se tiene en cuenta los créditos) sobre el costado musical de la conocida actriz Jeanne Balibar es una película absolutamente necesaria. Como se sabe es la extensión de un cortometraje de 12 minutos realizado en el 2005 que ahora dura 100 minutos, y que honra la amistad y admiración mutua que se profesan la actriz y el director.

En primer lugar, Ne change rien presenta un duelo estético: ¿cómo filmar la música en un época en el que el videoclip disciplina la mirada y la escucha? Costa elige extensos planos fijos para mostrar el trabajo de los artistas sobre la materia musical. A diferencia del videoclip en donde predomina una idea de producto y lo musical se reduce a una mímica en función del espectáculo, Costa se limita a registrar ensayos, algunas presentaciones y grabaciones; la música es una labor colectiva. Es por eso que el montaje no puede ser analítico. A menudo Costa construye el espacio a través de planos en profundidad de campo que permite ver el conjunto en su contienda orientada a pulir los arreglos y la composición en tiempo real. Nada ni nadie puede sobresalir porque la materia musical desconoce al intérprete, al solista como tal. Costa privilegia la interacción de los intérpretes subordinados a la canción, y es pertinente, entonces, elegir un tipo de plano que lo demuestre. Indirectamente, Ne change rien es también un imputación al narcisismo vulgar que rodea la escena musical, algo que Costa también detecta en la comunidad cinematográfica. (Costa se sentó a un costado. Al terminar la función, el público aplaudió por unos 5 minutos. Balibar discretamente saludaba. Costa, prácticamente, era invisible).

Como ocurría en ¿Dónde yace tu sonrisa?, la gran película sobre los Straub trabajando sobre el montaje de Scicilia, Costa insiste en pensar el arte como un trabajo entre otros. Hacer una película implica un trabajo minucioso. Hacer música requiere de un meticuloso ejercicio constante para entender las formas musicales. Si los Straub se preocupaban por el movimiento de una palmera en la parte superior de un plano en el que afilador dialogaba con un transeúnte, aquí Balibar se preocupa por entender el momento exacto en donde debe ingresar a la canción con su voz. La repetición es una regla. Repetir una y otra vez, mirar y escuchar cuantas veces sea necesario, hasta substraer lo diferente. Se repite porque eso garantiza una variación novedosa que el artista habrá de elegir como su mejor posibilidad para formar una imagen o un sonido. Este procedimiento alcanza su máxima expresión en el plano 23, en donde Balibar está ensayando una obra de Jacques Offenbach con una maestra que permanecerá en un absoluto fuera de campo, pero que dominará la escena, pues sus correcciones, de un refinamiento cercano al ridículo, son la esencia de la disciplina ineludible que un artista debe asumir. El arte es un trabajo exigente; hacer sonar una “r” en una opereta es tan complicado como dominar cualquier oficio.

La música de Balibar es singular: ¿A qué género pertenece? Hay indicios sonoros que remiten al punk, aunque en las canciones prevalece una dulzura heterodoxa. La guitarra es omnipresente; suena como si fuera una mixtura de Bill Frisell y Neil Young. Generalmente, los temas musicales repiten una célula melódica, a veces en contrapunto con los fraseos de Balibar, aunque en ocasiones la guitarra dobla la voz de la actriz. El minimalismo sofisticado de la música de Balibar no es ajeno al espíritu artístico de Costa. En ese sentido, Costa también es un cineasta inclasificable. Admirador de Los Ramones, la cámara de Costa posee un sentido salvaje y vital. Su exquisitez estética ordena sus fuerzas espirituales que no conocen condescendencia alguna. Trabajando sobre el plano una y otra vez conquista una forma para expresar un sentimiento desprovisto de accidentes. Es ejemplar el plano 15: como en muchos de sus planos contrapicados, el rostro de Balibar se difumina en la oscuridad dominante del plano. La belleza de la actriz y cantante es casi fantasmal. Como Costa en la película, ella desaparece en escena. En ese ritual de desaparición, la música y el cine surgen como entes autónomos. La grandeza de un artista está en su transparencia. Y sólo pueden hacerlo aquelllos que reconocen la necesidad de un plano y una melodía. Los que saben, como dice una de las canciones, que la felicidad es incompatible si el estómago está vacío.


Roger Alan Koza

http://ojosabiertos.wordpress.com

domingo, 1 de novembro de 2009

After Dark, My Sweet

By Damon Smith

Ne change rien
Dir. Pedro Costa, Portugal, no distributor


No mere documentary, Portuguese director Pedro Costa’s enthralling Ne change rien is a cinematic offering laid at the feet of its bewitching singer-star, Jeanne Balibar. She’s glimpsed at music rehearsals, live club performances, and in studio sessions, meticulously honing vocal phrases and adjusting tempo with exactly the same attention to precision that Costa brings to his own rigorously arranged compositions. The lithe, luminous actress has a robust career in France, where she’s appeared in films by Jacques Rivette (Va savoir) and Arnaud Desplechin (My Sex Life... ) as well as numerous theater productions. She also moonlights as a chanteuse (or perhaps it’s the other way around), fronting a crackerjack quartet whose whirring loops and effects-driven guitar textures create a coolly luxuriant cushion for her throaty songs of tortured love. An ardent cinephile, Costa has cited Godard’s One Plus One as an inspiration for his approach here, which eschews voiceover and interviews in favor of moody, atmospheric detail and abundant use of long takes. But he also applies the distinctive, low-light visual style he developed for In Vanda’s Room and Colossal Youth, a tack that aligns this sultry music doc as much with the mise-en-scène of classic cinema (Von Sternberg, Nick Ray) and T Magazine–style fashion portraiture as it does with Straub-Huillet (a salient touchstone for the auteurist director) or ultrahip band-in-the-studio genre artistry.

In 2005, Costa shot a 12-minute backstage rehearsal with Balibar for a short (later included on a Japanese box set), then expanded the material for this feature. Shot in high-contrast black-and-white on digital video, Ne change rien is a masterwork of chiaroscuro lighting, a study in the void between the visible and invisible: faces and objects, partially illuminated by conic rays and lambent moons from a single light source (a window, a keylight), gleam in the primordial darkness. The footage, captured entirely indoors, often in cramped spaces with low-angle fixed-camera shots, is bathed in nightfall, an immersive technique that makes spatial depth appear chasmic and the sonic textures that emerge from within it hard to resist. To call it a “concert film” is misleading, since the three live performances we do see in their gauzy, dreamlike entirety (a smoky rendition of “Torture” kicks off the film) comprise only a fraction of screen time. The film is instead an homage to the creative process of Balibar and her collaborators (French art-rock hero Rodolphe Burger, formerly of Kat Onoma, is the band’s guitarist and de facto music director) and a trancelike experiment in pure-cinema aesthetics.

Costa’s use of the long-take form in Ne change rien gives him ample room to foreground the role that repetition and variation play in the mysterious alchemy of music-making. Most of these process sequences center on Balibar’s attempts to master tempo, phrasing, breath control, and in one amusing interlude, the stern directives of an off-screen voice coach picking apart every syllable of her vocalizations as she rehearses for a stage production of Offenbach’s La Périchole. (“Make your consonants lighter, it’s not an elegy,” the older female instructor says, stopping every half-measure to correct her pitch and pronunciation until Balibar, exhausted, loses her patience and swears.) While it’s charming to watch Balibar, normally a model of sleek poise and Gallic sophistication, recoil from the absurdity of such self-disciplinary tedium, elsewhere she comes across as a committed artist who relishes the challenge of squaring her limited range as a soloist with the equally daunting demands of professional recording and songwriting.

Balibar and Costa are both perfectionists who aren’t willing to take short cuts (in his case, quite literally) in achieving their vision. In one marathon sequence that neatly defines their mutually compatible pace and artistic ambition, Balibar sits with Burger listening to a sample of Curtis Mayfield’s “Super Fly,” trying out a complicated, countermelodic vocal line over the funky, syncopated rhythm track. She repeats the da-de-dum riff countless times as the minutes tick by (Costa’s camera, locked in a medium shot, never moves), inducing a fugue state in anyone with the patience to sit and listen to the ensorcelling sound pattern, composed of a handful of notes that eventually form the bedrock of a vampy number. (This scene was the breaking point for several people who elected to flee an already sparsely attended press screening.) Costa’s high regard for Balibar is unmistakable, both in the way he lights her (a Dietrich-esque close-up in the sessions for “Cinéma”) and the glacial stretches of time he allows to pass while observing her at work. Paradoxically, given the music-doc’s almost built-in excitations (big personalities, dysfunctional band dynamics), Ne change rien is a quiet film with modest aims to match its stately, ultra-low-key vibe. Yet Costa’s ingenious command of light and shadow, as well as his intuitive grasp of the powers of duration and precise framing, is another grand testament to his innovative and uncompromising handicraft.


Issue 25 New York Film Festival 2009

Reverse Shot