Ne Change Rien
Uma pop song das trevas
por Luís Miguel Oliveira 19-11-2009
"Ne Change Rien" é um grande filme sobre o trabalho, sobre a paciência e a exasperação, sobre a aprendizagem, sobre o trabalho artístico como processo repetitivo.
Que "não mude nada", pede o título, sem explicar quem faz esse pedido a quem, se é que alguém o faz a alguém. O título vem de uma canção de Jeanne Balibar, que por sua vez "samplou" a voz de Jean-Luc Godard a dizer isto, "ne change rien", numa passagem das "Histoire(s) du Cinéma" (e é espantoso o momento em que, por via desse "sample" e da "puissance de la parole", Godard vem assombrar o filme). Mas portanto, ainda não passámos do título e já aqui há uma corrente (de pedidos?), uma "veia de transmissão" que dava vontade de perseguir (sendo certo que não é a única). Pedro Costa, evidentemente, não é nada alheio ao efeito provocado pelos títulos dos seus filmes, do que é um bom exemplo o caso de "Juventude em Marcha" e do seu título internacional "oficial", que na prática era um título diferente, "Colossal Youth". Usa os títulos como os pintores. Mas, como alguns pintores, gosta de os usar como pista, se não falsa, incerta. Não muda nada ou muda tudo? E é melhor que mude ou que não mude?
O filme não responde, com clareza pelo menos. Mas é curioso reparar no que vai mudando ao longo de "Ne Change Rien". Nas metamorfoses de Jeanne Balibar, que ora é Nico, ora é Marlene, ora é Nina Simone, ora é aluna de canto clássico com o empenho de uma liceal aplicada, ora é, mesmo (e é o "chiaroscuro" que o permite), Vanda, voltando sempre a ser, se é que deixa de ser, Jeanne Balibar. Há muitos ecrãs no filme, muitas telas brancas que Costa plantou no "décor" para cortar a profundidade ou para compor o delicado equilíbrio da iluminação. Mas os ecrãs e as telas existem para além dessa função, e ficam ali, a dar um ar de sala de cinema improvisada e rudimentar, à espera do arcaísmo de um jogo de sombras. Numa cena, contra um ecrã desses sobre o qual projecta uma sombra que faz lembrar as do "Nosferatu" (a "sinfonia das trevas"), Balibar ensaia uma canção ("Ton Diable") que fala do "teu diabo, o teu duplo ridículo". A reverberação não faz só um sentidos, faz imensos sentidos, para mais no contexto da cena: parece que fala da maneira como Balibar se oferece à câmara, à câmara que a apanha durante todo o filme numa espécie de fronteira entre a "comédia" e a "vida".
Mas parece que fala também da maneira como o cinema "entra", naquele espaço, neste filme: como uma coisa que "dobra" a vida, que se lhe sobrepõe, por vezes de maneira um pouco "ridícula" porque é só o que pode. E é o cinema que transforma Balibar em Nico ou em Marlene, como se Pedro Costa, filmando Balibar enquanto cantora, a filmasse sobretudo como actriz - o que, vale a pena notar, também assinala o regresso de Pedro Costa, ainda que desta maneira pouco ortodoxa e propositadamente ambígua, ao cinema "com actores", com actores profissionais. Uma actriz, neste caso, a quem Costa pode pedir - como um mestre bonecreiro - aquilo que não podia pedir a Vanda, ao Ventura ou aos Straubs: que mude, que vá mudando para ele.
Ainda a propósito da maneira como o cinema "entra" no filme (e nem sequer vamos mencionar o "plano Ozu"), é impossível não reparar que a cena com o plano mais aberto, com a luz mais clara, com o enquadramento mais distante e mais parecido com o que se veria num típico "filme-concerto", é a da canção do "Johnny Guitar". E é assim por uma razão muito simples: o cinema "entra" pela canção, não é preciso mais nada.
E o trabalho, evidentemente. "Ne Change Rien" é um grande filme sobre o trabalho (traço que mais salientemente o liga a "Onde Jaz o Teu Sorriso?", o filme com Straub e Huillet), sobre a paciência e a exasperação, sobre o cansaço e o erro, sobre a aprendizagem, sobre o trabalho artístico como processo repetitivo mas onde a repetição é a medida da disciplina que permite que a obra vá nascendo por decantação (e nisto estará o traço que mais salientemente liga "Ne Change Rien" a "One Plus One", o filme de Godard com os Stones). Balibar é a heroína deste processo. Há os outros músicos, com certeza (como o excelente Rodolphe Burger), mas a heroína é ela. Criatura das sombras, ora as domina ora é dominada por elas. Tanto se entrega ao ponto de se "zombificar" (a cena em que tenta interiorizar o compasso da melodia, repetindo-a infinitamente), como resiste, por exemplo na aula de canto com que se prepara para interpretar as canções de Offenbach. O anti-climax dessa cena é fortíssimo, com a distância (a "resistência") expressa na "nonchalance", ao mesmo tempo muito fria e muito doméstica, com que Balibar fala do frigorífico e do que se esqueceram de comprar para o almoço. Por outro lado, falando uma das canções de Offenbach (que ouvimos mais tarde) de miséria e fome, essa observação de Balibar torna-se um gag "diferido". Há outro mais directo: no fim da actuação, pela porta à esquerda do enquadramento (presumivelmente já uma porta de bastidores), mal Balibar acabou de cantar sobre a impossibilidade da felicidade de barriga vazia, sai um tipo a mastigar uma sandes. Pedro Costa justificou esse enquadramento com a vontade de ter nele o pianista, que era "um pianista de John Ford". Ainda uma pista incerta, diríamos: o que ele quis foi ter a porta, uma porta de ripas como nas casas do Bairro das Fontaínhas, e as paredes a brilharem com alguma coisa que parece humidade (e se conseguiu ter isto e o tipo com a sandes e ao mesmo tempo ter Ford, tanto melhor).
Portas e paredes que, sendo ingredientes fundamentais dos filmes de Costa, são aqui menos ostensivas. Ou não as há - o estúdio foi improvisado numa espécie de "loft" - ou estão escondidas pelas sombras, porque é sempre noite ou recriação da noite. Há um plano fabuloso como uma janela (de onde vem a luz do dia) e uma Balibar entre a concentração e a prostração (como se o dia não a tocasse). Por outro lado, nas cenas em que ela parece mais cansada ou dominada não conseguimos deixar de pensar que a ausência de portas e paredes tem alguma coisa a ver com o assunto: as heroínas de Pedro Costa gostam do seu espaço bem definido, bem marcado.
É claro que, feitas as contas, quem pede que "não mude nada" somos nós, espectadores. Durante a hora e três quartos que dura a projecção de "Ne Change Rien", não queremos que mude coisa alguma. Pedro Costa "did it again".
ípsilon