sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Nos ouvidos do Pedro

A primeira coisa que diz quando a música começa a tocar é: "Mas isso eu já conheço, pá". Isso era Jeanne Balibar, "Ne Change Rien". Foi o começo de uma "juke box" que preparámos para Pedro Costa. Quisermos dar-lhe música, ele proporcionou-nos surpresas. Pós-punk? Não, Stevie Wonder. Nick Cave? Não, Pet Shop Boys. E Kinks.

por João Bonifácio 27-11-2009


O escritório que utiliza para trabalhar, não sendo um aposento acolhedor, está surpreendentemente ordenado. É dominado por um Mac e por equipamentos cuja utilidade será certamente explicada por uma palavra complicada em alemão. Quando entramos, a música de D'Angelo corre no Mac. A música desempenha papel importante no último filme do autor de "No Quarto da Vanda" e de "Juventude em Marcha". À superfície, é uma obra sobre o trabalho musical da actriz francesa Jeanne Balibar. À partida, seria uma descolagem do modelo que marcara os filmes anteriores. Mas, tem dito a crítica, em "Ne Change Rien" Costa faz a Balibar o mesmo que fez a Vanda. Costa cresceu a ouvir música, andou pelo punk, fez rádio, e a sua obra tem marcas dos seus gostos: os Wire ouvem-se em "Ossos", os Tubarões em "Juventude em Marcha". O nome inglês de "Casa de Lava", o seu segundo filme, era "Down to earth" "por causa do Stevie Wonder", confessa. Já "Juventude em Marcha" em inglês chama-se "Colossal Youth", título do único disco dos Young Marble Giants. Para mais, diz que "o Straub [que filmou em "Onde jaz o teu sorriso"] "é a coisa mais próxima dos Ramones". Portanto, mesmo que ele agora diga que "a música deixou de ter importância na [sua] vida" ela foi, algures, fundamental. A proposta era fazer-lhe uma "jukebox", descobrir-lhe um outro lado. Mas em vez de o pormos a adivinhar bandas obscuras do circuito psicadélico-espacial de improvisação de Jerkoffville, USA, preparámos uma ementa que aproximasse do seu universo.
Ao início, ele foi um homem de poucas palavras, lentamente libertou-se e descobrimos-lhe o humor. No retrato desse outro Pedro Costa que hoje não está obcecado por música mas já a viveu intensamente, ele sur­ge mais à vontade do que se pode es­perar do cliché que faz a sua imagem. Pelo meio há descobertas inesperadas acerca do seu gosto.

O lado dos pretos

A primeira coisa que diz quando a música começa a tocar é: "Mas isso eu já conheço, pá". Era Balibar, "Ne Change Rien", retirado do primeiro disco da actriz, "Paramour". "Eu já a conhecia, mas quando es­tava a preparar o 'Juventude em Mar­cha' o Philippe Morel, que fazia o som do filme, passou-me o primeiro disco dela – que é este". E gostou? "Gostei". Muito? "De 50 por cento". O que é suficiente, porque "aos amigos a gen­te desculpa coisas, passa por cima de algumas fraquezas". Mantendo-nos nos franceses com ligações à música e ao cinema, pomos Serge Gainsbourg, "Je suis vennu te dire que je m'en vais", mas o ve­lho perverso diz-lhe pouco ou nada. Também não se interessa por bandas sonoras. Pomos "Main Title", da BSO de "A Desaparecida", filme de John Ford (herói de Costa), e ele atira: "Is­to aqui é fetichismo, e eu não sou fetichista. Isto ouve-se nos filmes, não em casa".
O caso de Balibar é diferente.
A actriz começou a cantar "porque um encenador a convidou para um espectáculo sobre os Velvet Underground, em que ela fazia de Nico". Só que Balibar nunca fez Costa lembrar-se de Nico. Do que Costa gostou, o que o apelou a fazer o filme foi ("e apenas à segunda, ou à terceira ou à quarta audição do disco") "do 'craft' da coisa, a construção das canções, das letras".
Quando diz: "a primeira coisa que eu e a Balibar des­cobrimos em comum eram os Kinks" já muito apropria­damente "Waterloo Sunset", da banda de Ray Davies, rodava no Mac. "Eu era fanático. Gosto de tudo até aos irmãos [Ray e Dave] começarem a andar à bulha. Depois disso há um disco muito mau, que tem o 'Lola', e deixei de os ouvir." Faz sentido este amor aos Kinks, se pensarmos do seu contexto pessoal: nascido em 1960, Costa "até 1974, 1978 ou 1978 tinha um benemérito, o José Gil [pro­grama 'Em Órbita']", que lhe dava discos. "Acho que ele comprava os discos e depois recebia-os da rádio e dava-me os repetidos." As primeiras bandas que gostou "mesmo a sério" foram "Beatles, Kinks e Box Tops". Dos Beatles com­prou "os discos todos no dia da saí­da". O primeiro que comprou com o seu dinheiro, "dinheiro de trabalho", "foi o 'White Album', que custou 200 e tal escudos." Lembra-se do sí­tio. Dizemos-lhe: "Se gostava dos Box Tops talvez goste disto...", e pomos "Ain't no mountain high enough", obra-prima do primeiro disco a solo, homónimo, de Diana Ross. Acrescen­tamos: "Ou então ainda lhe dá para vomitar".
"Vontade de vomitar não dá", res­ponde. Fica atento uns instantes e assume que não rejeita: "Gostei". Confessa: "A Diana Ross, para mim é o 'Upside Down', vem na mesma época em que descobri o Marvin Gaye, os anos 80". Diz com graça que podia "dizer que o [conheceu] com o 'I heard it through the grapevine', mas a primeira coisa [que ouviu] foi o 'Se­xual Healing'". "A partir daí", admite, "passei-me para o lado dos pretos. Os brancos deixaram de existir".
O lado dos pretos inclui Prince, que "também era muito bom". Mas no topo está Stevie Wonder, de que ouvimos "Village Ghetto Land", de "Songs in the Key of Life". A inusitada paixão vai ao ponto de referir que "já disse em Cannes que gostava de adaptar o 'Innervisions' ao cinema". O projecto ainda não foi para a frente por culpa própria: "Ainda não sei como fazer". Contextua­liza historicamente o amor por Stevie, em termos que a maior parte das pessoas não estarão à espera: "O Stevie Wonder sempre foi muito popular. O 'What's Going On' [de Marvin Gaye] não era música que passasse na rádio, enquanto o 'Superstition' era".
De repente, atira: "Ainda não fa­lámos de coisas muito importantes como Michael Jackson e Chic". Tem a mais simples das explicações para se interessar por Michael Jackson: "Gosto só porque é bom". Acres­centa ainda que gosta "das coisas bem produzidas, das coisas bem feitas".
Seria o asceta Costa capaz de dançar isto? "Sim, mas isto [Stevie Won­der] é mais música de se ouvir em casa".
Mantendo o pendor na música dançável, regressamos aos filmes dele, aos Tubarões com o fabuloso "Labanta Braço", que se ouve em "Juventude em Marcha": "Isto teve o seu momen­to em Lisboa e foi relativamente forte", lembra, e para que não haja dú­vidas: "Na altura, eu estava lá". Oferece-nos ainda mais uma confissão: "Os Tubarões são muito populares nas Fontainhas. Esta canção foi escolhida pelo Ventura – aliás, o disco era dele. O Ventura deu-me o gosto de ouvir o senhor Roberto Carlos, que ele gostava muito. Eu agora também gosto".
Em troca, ele levou-lhes D'Angelo: "Agora já ouvem D'Angelo", diz. O processo foi moroso: "Teve de ser aos poucos, que aquilo lá é complicado". D'Angelo é "a única coisa que oiço constantemente hoje". Todas essas coisas", assinala, "só vieram depois de quatro anos de fanatismo total do punk". Punk, sim, mas atenção, rock não. Confessa: "Nunca [gostou] muito de rock'n'roll, nunca [foi] rocker”.

O Punk

Tínhamos posto "Colossal Youth", a canção dos Young Marble Giants, que ele usa para titular "Juventude em Marcha" em inglês e ficámos surpreendidoso ao ouvi-lo dizer: "Não sou doido por isto". Na realidade na época "preferia Wire, Buzzcocks, Undertones, os Gang of Four. Na altura até lia o NME ['New Musical Ex­press']". Mudamos para Clash, "London Calling", do álbum com o mesmo nome, e isto faz Costa sair do tom "blasé". "Isto entusiasmava-me mesmo. Fui ao concerto, em 1981. Íamos todos juntos, um gru­po enorme. Nessa altura ia aos con­certos todos. Dois dos Gang of Four ficaram em minha casa". A recorda­ção vai ao ponto de ser confessional: "A Anamar, que era mesmo punk, ia aos concertos todos e arranjava ma­neira de ir aos bastidores – como ela era gira e tinha piada, acabávamos sempre com os músicos. Inclusive ela teve um ligeiro 'affaire' com o Élvis Costello".
Ali entre 1977 e 1981 Costa não foi punk, mas andou com o punk para todo o lado. Ele e os amigos organi­zaram "uma comemoração dos 25 anos do rock em 79": "Foi o primeiro concerto dos Xutos", recorda. Em 1980, tinha um programa de rádio chamado "Tecnicamente normal", na RDP2. "Naquela altura, a RDP2 só passava quase música clássica", pelo que Costa "passava Ramones, Small Faces e depois uns Schoenbergs, uns Stravinskys". Havia "uns fãs fanáticos, que iam à rádio para nos ver". Com o seu colega de rádio fazia "cola­gens do 'Pássaro de Fogo' com Ramo­nes. A gente fazia efeitos, púnhamos sons, como se fazia no 'Sgt Peppers'. Como lá há muito arquivo, juntáva­mos vozes de políticos, de poetas". De certa maneira, pode dizer-se que já na sua paixão musical "faziam ver­dadeiras montagens". Só para o provocar, pomos uma can­ção bem pop num disco nem por isso pop: GNR, "Dunas", de "Os Ho­mens não se querem bonitos". Re­acção imediata: "Eh pá, não. Na altu­ra, o único grupo português, para mim, eram os Faíscas. Isto [GNR] são coisas a que não ligava nenhuma". Segunda provocação: "E os He­róis do Mar?" A resposta é mais enfática do que podíamos espe­rar "Fui-me embora do meu gru­po de amigos por causa de gente que gostava dos Heróis do Mar. Musicalmente, ideologicamente não me dizia nada. E eu parti pa­ra o cinema. Até então, está­vamos todos de acordo nos discos e nos livros. Depois os tipos de direi­ta começaram a mistu­rar umas ideologias, umas filosofias e apareceu algo de afirmação pessoal e pátria que não havia até então. Fui-me embora".
Variações diz-lhe "o mesmo que diz a todos os portugueses". Costa viu o fe­nómeno de perto, tem simpa­tia, mas não mais que isso: "A minha namorada na altura, a Rita Lopes Alves, inventou o Variações um bocadinho, fazia-lhe os fatinhos, etc. Na altura a associação que se fazia ao Variações eram os Spandau Ballet. Andava tudo doido com os Spandau Ballet. A ca­beça das pessoas andava doida, não sei o que andavam a tomar. Aqui [em Portugal, nessa altura] houve um grande corte com a realidade: no dia seguinte [ao punk] estava tudo a ouvir Spandau Ballet, Variações". Costa foi-se embora da música de vez: "Desde então que não apareceu nenhum grupo com que tivesse uma relação intensa". Diz não ter palavras para "dizer o mal que [acha] do pós-punk, das coisas mais experimen­tais". Era "contra os Joy Division, porque vinham com as gabardinas e aquelas coisas sobre as paixões", mas abre excepções para os Smiths e para os PiL, de que ainda hoje é fã.

Os ícones

Porque Balibar começou na música a fazer de Nico, demos-lhe Nico. E ele levantou-se e foi buscar a sua garra­finha de uísque, porque "estes mo­mentos são penosos". Nunca gostou dela. E vai mais longe: "Se calhar não devia dizer isto, mas não posso com o [Leonard] Cohen, com o [John] Cale, com a Nico". Mais gente da pop-folk burguesa que ele não aprecia: Tom Waits e Johnny Cash. "Há um lado intelectual nesses gajos que o Ray Davies não tinha, que o Lennon não tinha", diz. Falamos de Bonnie Prince Billy, que ele viu, de uma das vezes que cá veio. "Quando o vi, no Ritz, julgava que era um dos valentes. Mas depois estes tipos pas­sam todos por uma coisa de 'Deixa-me lá ser original neste novo disco'. Presumo que seja difícil ganhar a vida como músico."Já que ele não gosta de Bonnie Prin­ce, experimentámos alguém de quem Bonnie Prince não gosta mas Dylan gostava: Townes van Zandt com "Waitin' around to die". Insolente, atira: "Tudo o que ele está para ali a dizer, a beira da estrada e os coiotes ou lá o que é [não há qualquer refe­rência a beiras de estrada ou a coiotes na canção] não me interessa nada. Acho que sou muito urbano". Pomos "In The Ghetto", versão de Nick Cave para a canção imortalizada por Élvis. "Isto é o Nick Cave. Há mui­ta gente que canta a fazer versões dis­to, não há? De certeza que são todas melhores. Já o conheci pessoalmente, é muito simpático, cozinha para a mu­lher e para os filhos, mas há ali um lado rock'n'roll misturado com teatro que nunca consegui gostar".
Pomos o próprio Élvis, com "Hound dog" e essa já é a sua quinta. "É o rei. Eu gosto mais da fase Las Ve­gas, embora tenha grande parte da obra dele. Não gosto dos filmes – o 'Jailhouse Rock' é o único que se aguen­ta. É um senhor, este homem".
Argumentamos que Élvis também é teatral e Costa reformula a sua irri­tação anterior: "Se calhar o que me irrita naqueles tipos não é o teatral, é o intelectual sentimental".
É visível que não gosta das luminá­rias, gosta é de grandes ícones não moralistas: reconhece "Young americans", de Bowie, cujo lado teatral não o incomoda porque "o teatro de­le é melhor". Além disso, Bowie "tem um lado de negro, por causa da pro­dução", é um tipo "com um certo grau de sofisticação".
Um certo grau de sofisticação e na­da de sentimentalismos. Pegámos então numa senhora pouco sofistica­da e muito sentimental: Billie Holiday com "The end of the love affair".
"Não sei como é que se há-de falar disto. Não tenho palavras". Imagina que o seu amor por ela "tenha a ver com o imaginário do cinema ameri­cano", mas, por outro lado, não se põe "a ouvir a Peggy Lee ou o Sinatra": Isto, diz, "não quer dizer que eles sejam maus, quer dizer que para mim a música não é uma coisa vital, não a procuro".
Conclui: "Nem sequer tenho uma discoteca".
E então atira a bomba: "Vocês sabem qual é a minha banda preferida?"
Não.
"Pet Shop Boys. Esses nunca enganaram ninguém."

Kinks com guitarras

Está a rodar "Love etc." primeira faixa de "Yes", o mais recente dos Pet Shop Boys, e Costa a admitir que deles compra os discos todos e que “o problema é explicar aos néscios a grandeza desta coisa", isto é, dos Pet Shop Boys. "Há uma coisa agradável neles, que é ser tudo parecido de canção para canção". A música dos Pet Shop Boys apela-lhe porque há nela "um lado de prazer imediato”, algo que quem veja os seus filmes nunca imaginaria.
"De vez em quando falam de politica ou assim, mas por norma são canções de amor e têm muita graça”. O lado lírico leva-o a ver "Neil Tennant como o herdeiro do Ray Davies": "Pegas no 'West End Girls', tiras os sintetizadores, pões guitarras e são os Kinks", atira em registo de boutade séria. As Fontainhas deram-lhe Roberto Carlos, ele deu-lhes D'Angelo.
Nós não lhe demos nada que o tivesse encantado, ele não só nos surpreendeu como ainda nos deu um disco que tinha "a certeza" que não conhecíamos: "Vai ser uma vergonha", diz ele.
São os Les Fleurs de Lys, o disco "Reflections". Não conhecíamos. Mas recomendamos sem vergonha.

ípsilon