sábado, 21 de novembro de 2009

Come together

"NE CHANGE RIEN" tem dois lados, como um LP. Um lado 'A', tenso e angustiado, e um 'B', mais melancólico e entregue ao sabor do vento, como uma das suas canções, 'Johnny Guitar'. Talvez as duas partes se separem naquele misterioso 'plano japonês' em que duas senhoras fumam cigarros num bar de Tóquio. É um intervalo breve — dir-se-ia que o tempo, ali, parou —, como se ao espectador fosse permitido tomar um café a meio do espectáculo. E é o intervalo que basta para afastar esta hipótese de 'filme-LP' de quase tudo o que alguma vez aproximou a matéria musical da cinematográfica. Pois esta não é a história passiva de uma música já feita, antes a acção concreta de uma música 'a fazer-se' — e o seu processo criativo, que evolui à nossa frente, abre-nos novas perspectivas de julgamento.
Durante a rodagem de "Ne Change Rien", Jeanne Balibar, além dos concertos e ensaios, interpretou "La Périchole", de Offenbach. A opereta tornar-se-ia o terceiro eixo de rotação do filme a explorar o perfeccionismo da artista. E se a espiral da Balibar rocker, na beleza e na penumbra que a envolvem, provoca empatia imediata (Jeanne está tão perto que quase parece podermos tocar-lhe nos cabelos), a Balibar cantora lírica, esteja ela entre a 'espada e a parede' de um ensaio ou num palco filmado dos bastidores, não é menos atraente. Afinal, falará "La Périchole", que Offenbach criou 140 anos antes dos discos de Jeanne, dos mesmos tormentos das suas canções? Dos mesmos lamentos e desencontros? Quanto mais se vê o filme mais se desconfia que existe por ali um lastro a reflectir o passado na textura do presente, no mesmo espelho do romantismo; uma linha de ficção escondida que se insinua e vem coser as pontas.
Trabalho, memória: mas isto não basta. E se aquele lado 'A' que imaginámos, formado essencialmente por grandes planos, fosse o inventor do romance? E se o lado 'B', em que a câmara se afasta consideravelmente do rosto de Balibar, anunciasse que o romance acabou? Afinal, Jeanne canta e não traz outra coisa do que canções de amor. Sorri, emociona-se, tortura-se, desespera... O seu teatro não é épico. Enquanto isso, o filme, noir do princípio ao fim, começa a criar personagens. E insistimos: há um thriller em "Ne Change Rien" ou, pelo menos, foi isso que vimos nele. Um thriller siderante em que, como noutros filmes de Pedro Costa, uma mulher se torna o espectro do desejo de um homem. O contacto é doce, a troca difícil. E a metamorfose não é uma mellow song: exige certas atmosferas, actores transformados em silhuetas pela luz e pela sombra, corpos que se exilam de si próprios para se suprimirem, como fantasmas que nos visitam e depois abandonam o ecrã em silêncio. Até que a matéria concreta ganhe um sentido sobrenatural. Até que o real e o poético possam ser o mesmo sonho. "Ne Change Rien" é um filme ultra-sensível. Deste cinema, haverá sempre pouco.


FRANCISCO FERREIRA

Expresso 21 Novembro 2009