por Vasco Câmara
Apresentado em Cannes no ano passado, "Casa de Lava" estreia-se hoje em Portugal. Para Pedro Costa, "Cabo verde foi milagroso e salvou-me de um naufrágio possível, depois de "O Sangue". Deu-me um bocado de vida, tratou-me desta doença que é o cinema". Num tempo marcado pela saturação das imagens, "Casa de Lava" é uma experiência radical. Um filme sobre a violência, não apenas dos sentimentos, mas das "coisas", das matérias e, num ponto limite, sobre a violência do próprio cinema. Uma viagem à Ilha dos Mortos.
Há um filme, "O Sangue", que não deixará de contagiar a visão de quem vê "Casa de Lava" - porque ele assombra a carreira do seu realizador, Pedro Costa, e a memória de quem o viu. Mas é o próprio filme, "Casa de Lava", que se abre a essa comparação, já que foi do confronto entre a lava do vulcão e uma personagem do romanesco - uma enfermeira (Inês de Medeiros) viaja até Cabo Verde para acompanhar um operário cabo-verdiano da construção civil em coma (Isaach de Bankolé) - que este filme nasceu.É então em termos vibrantes - deixar a vida entrar no cinema - que se devem entender as declarações de Pedro Costa de que realizou "Casa de Lava" contra o seu filme anterior. Há um fluxo, que continua, de imagens e de obsessões - o sangue, a doença e a breve mas assustadora presença de Isabel de Castro, que desde "O Sangue" nos continuar a aterrorizar... -, só que dimensionadas a uma escala maior. Costa emancipou-se do circuito fechado dos terrores e medos adolescentes - mas que não haja dúvidas: "O Sangue" é um dos mais belos filmes do cinema português... - e filmou-se nesse percurso. Ao filmar uma personagem romanesca a desintegrar-se, "Casa de Lava" filma a tentativa de libertação de um cineasta. Como ele disse nesta entrevista ao PÚBLICO: "a Inês sou eu".
PÚBLICO - Uma das origens de "Casa de Lava" foi, contou, um motivo que o persegue desde o Conservatório: uma mulher de 50 anos, doente - alguma coisa disso teria já ficado em "O Sangue". Depois houve Cabo Verde, onde nunca tinha ido antes da primeira versão do argumento. Como é que uma coisa se liga à outra?
PEDRO COSTA - Nas primeiras ideias do argumento, todas elas se encadeavam e me diziam uma coisa: ir embora de Portugal. O movimento primeiro era de nojo. E havia uma coisa de base que era voltar a trabalhar com a Inês [de Medeiros] e com o Pedro [Hestnes] -já penso noutro filme e já penso nos dois, porque, se não encontro actores, tenho a impressão de que não tenho ideias para filmes. Mas todas as ideias me diziam uma coisa: sair de Portugal. Desgosto do país, do estado político, social, artístico. Istofoi em 1991-92-93, o período em que o poder de direita no cinema começou a ser mais feroz, a dificuldade em arranjar dinheiro aqui era enorme - o projecto foi recusado duas vezes -, apesar de já ter dinheiro de fora. Essas dificuldades passaram para o argumento, que no princípio era muito romanesco e ligeiramente exótico. Tinha a ver com uma ilha vulcânica... era um sítio abstracto - mas a escolha era limitada, ou era Cabo Verde ou os Açores - e havia a ideia de fazer um filme sobre a língua. O Paulo Branco [produtor] dizia isso bem: "Como a língua dos cabo-verdianos inventada engana a língua portuguesa"; como uma língua nova pode enganar uma língua antiga. Já não sei como surgiu Cabo Verde e fui lá numa viagem para verificar se era possível...
P. - Essa viagem foi decisiva, como decisiva é a viagem da enfermeira Mariana (Inês de Medeiros). É um percurso que começa ligado ao fantástico...
R. - A Mariana é a única coisa de ficção que ficou no filme, em todas as suas componentes, traços, movimentos, sítios por onde passava, frases - foi o único diálogo onde não se mexeu, para além do trabalho normal de rodagem. Tudo o resto foi trabalhado à medida das pessoas, os cabo-verdianos, que ia encontrando. A vaga memória que tenho do argumento é a de uma história romanesca, num sítio exótico, com variadíssimos "pastiches" do "I Walked with a Zombie" [Jacques Tourneur], do "Lord Jim", dos filmes de aventura do Tourneur, dos livros do Conrad, dos filmes de Fritz Lang. De todo o lado vinha uma frase, um cheiro. Mas o mais interessante foi que a decisão de partir para o mais longe possível nos aproximou - a mim, ao Pedro Hestnes e à Inês - de nós próprios.
Acho que o filme é feito desse movimento: é um filme, por esse afastamento, muito mais aberto ao mundo político, social, e à vida, e que me esconde mais do que "O Sangue". A Inês vejo-a muito pegada a mim, é o meu lado feminino nos dois filmes. Sou eu em mulher. Mas os outros - os cabo-verdianos, e quando falo nos cabo-verdianos falo no Pedro Hestnes, na Edith [Scob] e no Isaach [de Bankolé] - escondem-me muito. Tinha a sensação de que "O Sangue" era um filme de exposição, feito sobre sensações e sentimentos, em que tentávamos a todo o custo expor-nos e ser sinceros - quando no fundo estávamos a ser enganados pelo cinema.
Um filme zombie
P. - Já chegaremos aí. Pode-se dizer que o mesmo fluxo de "O Sangue" percorre "Casa de Lava" - só que as emoções são projectadas para lá das dores privadas e íntimas da adolescência.
R. - Sim, sim.
P. - Dizia que exclui Inês dos outros. No fundo, aqui engana-a, obriga-a a experimentar o logro, a decepção.
R. - A Inês aqui e em "O Sangue" é a mesma coisa e em ambos os casos sou eu. Há uma coisa que descobri e que me perturba muito, que é a figura dos filmes que posso fazer: um morto em movimento entre dois planos. Em "O Sangue" havia um pai num triciclo que era mudado de uma cama para o cemitério, mas não se via o corpo em movimento; aqui há um operário em coma que é levado numa carroça para um sítio e no plano seguinte ele está acordado. Quando digo que este filme me abriu ao mundo, não quero dizer com isso que eu estivesse mais atento só à vida, ao pequeno detalhe social, ao comentário político; quero dizer que percebi que um filme se faz entre dois planos. Percebi-o à custa desta figura: num plano lia uma coisa morta, no outro uma coisa viva, e o que está entre é o que faz o cinema. O que está "entre" é a possibilidade dessa coisa renascer.
P. - Mas o que está entre também é o que não está morto nem está vivo; ou que não é branco nem é negro, é mestiço. São dois aspectos obsessivos no filme...
R. - Isso já é a sua poética...
P. - Mas o cinema para si está no nível do sonâmbulo.
R. - Sim, sim, sem dúvida.
P. - Não só ninguém aqui está vivo ou morto, como em relação à cor da pele há um plano extraordinário: no meio de um grupo de cabo-verdianas percebe-se subitamente que uma das mulheres afinal é branca - é a primeira aparição de Edith Scob. Está-se "entre"...
R. - Isto não é por mim, é pelos cabo-verdianos. Cabo Verde é uma folha em branco onde se pode escrever tudo, é completamente inventado. Não havia povo, não havia nada a não ser uma terra. E nós pusemo-los lá todos: Senegal, Guiné, portugueses, mulheres e crianças. Misturámo-los, foi um laboratório, para o bem e para o mal. Acho que para o mal...Só há uma invenção no filme, a Inês. Tudo o resto foi feito pelos cabo-verdianos - a língua e os gestos. Só a Inês é que escolhe os sítios para onde vai, só ela é que se engana, só ela é que é enganada. Pela primeira vez tive a sensação - por isso me custa o lado confessional de "O Sangue" - de pôr uma câmara de filmar em frente a uma coisa e não poder enganá-la. Penso trabalhar de uma maneira séria - "decente", para utilizar a palavra do [Nanni] Moretti - e tive a sensação pesada, esmagadora, de que não há maneira de enganar esta gente, de que pela segunda vez não poderia ser enganada pelo cinema.
P. - Há uma cena extraordinária: o diálogo entre Mariana e o velho tocador de violino, que de facto são monólogos que não se cruzam. A sensação é que o homem está a falar da sua vida independentemente de ter à frente uma actriz e uma máquina de cinema. É um confronto - lúdico e pacificado, por exemplo, nos filmes de Abbas Kiarostami, mas que aqui é trágico e alucinado - entre os vários níveis de "ficção", que se podem descascar, e um núcleo de "real".
R. - Desde "O Sangue" que pensava que as minhas convicções em relação ao cinema teriam alguma atracção absolutista, que o cinema me teria trocado as voltas. Eu tinha sido enganado. Quando cheguei a Cabo Verde, aquela organização trágica obrigou-me a não vampirizar. Aquelas pessoas já são enganadas por tudo, pela terra, pelos fantasmas, pelos portugueses. Não podiam ser enganadas pelo cinema. Tentei respeitar a verdade... não sei como hoje se pode falar disso. No ideal, este filme podia ser uma série de fotografias de caras das pessoas com uma banda sonora. Não vejo que se pudesse inventar mais ficção.
P. - O percurso de Mariana é o percurso da destruição dos efeitos da ficção.
R. - Como disse, tem-se a impressão de um filme sonâmbulo, muito "zombie". Mas a certa altura o filme desvia-se para a farsa, como se fosse um pequeno teatrinho cabo-verdiano...
P. - As cenas de baile, de dança, o corrupio...
R. - Mas não quis que isso chegasse à ficção do cinema. A cena em que a Inês fala com o velho - que é o pai daquela ilha - era fundamental. E, no limite, não está lá a Inês, é uma pessoa a falar para uma câmara que não admite uma personagem de ficção à frente. Não conseguia prolongar um campo-contracampo. É o meu pudor desse momento. Mas enquanto o Kiarostami numa cena desse género procura o humano, eu procuro outra coisa, provavelmente o inumano.
Complot de mulheres
P. - O enorme silêncio do filme - canta-se, dança-se, mas isso só reforça um poderoso território do não-dito - já estava incorporado no projecto ou foi resultado da contacto com a ilha?
R. - Talvez já estivesse, porque também não falo muito e porque este filme anda à volta de uma pergunta só, que é a pergunta que a Inês faz e que a Edith Scob já esqueceu - e que é a pergunta que vejo nos olhos dos cabo-verdianos: "Porque é que isto está sempre a repetir-se, porque é que esta morte regressa?". Isso é silencioso, isso é a espera das mulheres, mas se calhar é essa a característica dos povos massacrados, sem imagens.Quem se esforçar para ir ver o filme mais do que uma vez terá uma impressão diferente:os silêncios, as cadeias de afectos entre os cabo-verdianos. Porque há ali um "complot" grande entre as mulheres que não é só ficção. As mulheres vivem entre elas em Cabo Verde, e isso facilitou muito a minha tarefa, porque acredito profundamente que há um segredo - isso estava no "Sangue" - que as mulheres sabem e que não passam. E ali havia realmente um ''complot" entre uma sociedade de mulheres que era feito de gestos e de olhares indecifráveis para os nossos olhares e para o olhar da Inês no filme.Os silêncios e os não-ditos talvez venham dessa minha convicção de que o cinema se faz entre os planos e não no plano.
P. - Uma das coisas mais terríveis de "O Sangue" tinha a ver com a personagem de Isabel de Castro. Aqui, numa presença breve, ela faz uma moribunda que puxa a enfermeira para a levar com ela. É de "O Sangue" que ela vem...
R. - Exactamente. A Isabel de Castro em "O Sangue" é uma coisa que me custa muito ver. Havia mais cenas no hospital que vão no sentido do que diz: um prenúncio do pesadelo, um sinal, na terra, do que se vai passar no desconhecido. Tinha outras cenas, a agonia, mas a certa altura tive a sensação de que era melhor ficar logo pelo cadáver, ter a mais chocante imagem possível do lado feminino do filme. Era importante deixar o cadáver da Isabel de Castro em Lisboa, porque era a única coisa que vinha de "O Sangue". Há um "complot" entre as mulheres do filme, de tal forma que já não as distingo. Todas me parecem substitutas umas das outras, ou irmãs, nessa cadeia de sofrimento e de perda de memória.Regressando ao princípio: a Isabel de Castro é outras das coisas que resta da tal história da mulher doente de 50 anos que eu ainda não consegui perceber totalmente. É daquelas obsessões à Paulo Rocha, precisam de anos e anos. Não é nada demasiado intencional, está ligado a um sítio onde tive medo de pôr os pés, não sei se foi uma casa onde vivi, um sítio onde passei. Tenho os contornos, tenho o que está no filme, que são os dois planos da Isabel de Castro: as mãos ensanguentadas e um cadáver, o resto da mulher de "O Sangue". A personagem da Edith Scob também tem partes disso. Eu sei que é uma mulher que foi enganada, quase assassinada, sei a idade dela, tenho contornos. Mas não tenho muito mais ainda. Ele está lá, numa gaveta, pode ser que venha a saber qual a história dela.
P. - Se de "O Sangue" a "Casa de Lava" houve uma diluição da ficção - o ideal, disse, seria uma série de fotografias com banda sonora; se a presença do cadáver é uma cena original para si, então o seu cinema tem como horizonte o abismo...
R. - Provavelmente. Este filme é um bocado - todas as distâncias guardadas - o "Anatahan" ["A Saga de Anatahan", de Sternberg] ao contrário. E a gente sentir que tem um assunto, que é vital persegui-lo, e ele afastar-se cada vez mais. E como se Cabo Verde fosse uma ilha onde se chega cansado e doente dessa perseguição, onde se é tratado e acolhido por uma raça de princesas e de príncipes, onde se tem uma série de visões, onde há uma convalescença - tudo muito indistinto -, se sente que há um "complot" mas não se sabe se contra nós, e de repente se tem um sobressalto ao pensar: "E se eu fosse o único homem aqui, se fosse eu a trazer o sofrimento a esta gente." Porque já não se põe a hipótese de fazer bem, no delírio só se põe a hipótese de fazer mal. E esse temor é tão grande que temos de fugir dali - fugir mais tratado, mais reconfortado. Só consigo sair deste filme com a Edith Scob e a miúda. E como se elas as duas me pusessem no barco, ainda febril, e me mandassem para longe. Só que a viagem continua. Por isso é que Cabo Verde foi milagroso e me salvou de um naufrágio possível, depois de "O Sangue". Deu-me um bocado de vida, tratou-me destadoença que é o cinema.
P. - Afinal, qual foi o mal de "O Sangue"?
R. - O mal de "O Sangue" é que é um "bibelot" que fica bem numa Cinemateca ounum cinemazito de Arte e Ensaio. Mas não me parece que tenha o "élan" suficiente que eu gostava que o cinema provocasse. Tem que se ser mais aberto, deixar entrar as coisas todas, tem que se transformar tudo em filme. Todos os acidentes de preparação, rodagem e montagem têm que estar no filme. E n'"O Sangue", apesar de termos chegado ao limite das forças e das finanças, isso estava escamoteado por muitos efeitos, por lirismo a mais, por falsa inocência. Todos nós sabíamos demais - tínhamos visto demasiados filmes - para fazer uma coisa daquele género. Foi indesculpável. Há um cinema que hoje já não é possível.
A "coisa" subterrânea
P. - Disse uma vez: "A coisa política não me interessa." E no entanto há uma fortíssima dimensão política neste filme.
R. - E ligar as cruzes do cemitério do Tarrafal à cama do hospital em Lisboa e perceber a cadeia que leva da morte do campo de concentração à morte dos cabo-verdianos nos andaimes. Esse é o trabalho de qualquer cineasta, tentar ser o mais exaustivo nessa cadeia de morte política sucessiva. Era a maneira mais correcta para mim de ver Portugal. Para mim, a política é um subterrâneo de prisões, campos de concentração, algemas. E quase "mise-en-scène": como é que pomos uma actriz a tactear entre o Tarrafal e um operário de hoje. Por isso é que há aquela carta, que foi escrita pelo operário cabo-verdiano, pelo Robert Desnos [poeta ligado ao movimento surrealista, de que foi dissidente] em Birkenau e pelo Bento Gonçalves [secretário-geral do Partido Comunista] no Tarrafal. É a mesma carta. A política para mim é sobretudo isso. Disse "a coisa política não me interessa" no sentido de "A Coisa" do Moretti.
P. - Mas nunca filmaria, como João Botelho em "Aqui na Terra" ou João Mário Grilo em "Até ao Fim do Mundo", a cena do esburacar da fotografia de Cavaco Silva ou de uma bandeira portuguesa emoldurada.
R. - Nunca. Este é um filme mais perdido, não tenho tantas certezas como o João Botelho ou o João Mário Grilo. Para mim, a política é uma coisa subterrânea, um corredor escuro sem indicações que se percorre amordaçado, vendado. E um corredor de morte. Interessam-me mais as marcas e as rugas. Foi isso que tentei fazer com a Edith Scob. Já nos filmes do [Georges] Franju, o que me agradava era ela ser uma menina com rugas. Conseguiu que o "complot" resultasse de uma maneira silenciosa. A Edith Scob hoje é mais actriz de teatro e há um grande reservatório de silêncio nela: por um lado, silêncio de vazio, de esquecimento; por outro, de algo que ainda não está morto. Uma mulher que apesar de tudo não conseguiu ser abatida, que de vez em quando renasce com impulsos, frenesins.
P. - A dança...
R. - Não sei falar muito dela. É o ar, o vento do filme. Muito poucas actrizes podem ter tantas idades ao mesmo tempo, podem ser miúdas e velhas. Precisava de alguém que conseguisse resistir à Inês. Não quero ser mórbido, mas a Edith Scob tem na cara a morte inevitável. E a cara dela cinéfila está associada a isso, através dos filmes do Franju. Embora eu nunca lho tenha dito - mas acho que ela o sabe -, o silêncio dela é esse. Quando olha para nós, é a morte que nos olha. E eu precisava dessa morte doce. E uma morte que não aflige.
P. - Não é a morte da Isabel de Castro?
R. - Não, é outro rosto, pacificador. Era preciso confrontar a Inês com a cara de morte desta mulher, e que ela o aceitasse. Que não fosse a cara brutal da Isabel de Castro, do cadáver. E uma cara que a gente devia ver no cinema, hoje."
Público, 10/02/95