José Miguel Gaspar, em Cannes
Junkie da realidade, o cineasta português Pedro Costa estreou ontem em Cannes "Juventude em marcha", o seu novo avanço em direcção ao retrato puro do social. O filme, gloriosamente escuro e pausado, rodado durante 15 meses nas Fontaínhas, nas margens do mundo e de Lisboa, acompanha o êxodo emocional de Ventura, um caboverdiano que se representa a si mesmo e a todos os que foram expulsos da vida. Documento bravo e inclassificável, "este filme não se parece; este filme é", disse Pedro Costa ao JN horas antes da projecção em Cannes.
Jornal de Notícias – Este filme teve um tempo invulgar de rodagem e montagem, com 15 meses para cada fase. Esse é o tempo necessário para atingir o patamar que deseja de verdade?
Pedro Costa – Neste caso, sim. Haverá outras formas de trabalhar mais rápido e com qualidade, como o realizador japonês Suwa, que roda em dez dias com pessoas que não são actores. No meu caso, acho que os filmes têm que se parecer com aquilo que são. Há filmes que fingem coisas que não têm, querem dizer coisas que não dizem e depois têm que ser explicados. Este filme, realmente, é. Tem valores plásticos, cromáticos, sonoros e uma ideia de como vai o mundo. Todo este tempo que demoro é o tempo de que eu preciso para me adequar ao filme.
É preciso perder tempo para ganhar solidez?
É absolutamente necessária. O meu sonho, enfim, a minha ambição é fazer cinema directo. Não é o cinema das escolas e dos géneros; é um cinema sem camuflagem que passa uma ideia concreta. Não me parece, sequer, que o filme possa ser criticado pois é uma obra blindada. O tempo é para que percamos todos os clichés, para que eliminemos o belo e o bonito e as ideias poéticas que às vezes alguns cineastas chamam 'as ideias de cinema'. John Ford, por exemplo, não teve nunca uma ideia de cinema; teve foi convicções muito fortes e queria dizer algumas coisas através de imagens e de sons.
Foi para perder o lado artificial das imagens que rodou 320 horas de filme, para poder chegar à imagem ideal?
Tenho uma amiga que diz que já temos problemas que cheguem para estarmos ainda à procura do ponto ideal. Na rodagem de um filme há problemas de espaço/tempo, de gesto, de palavra, de olhar. É na altura, e com as pessoas que trabalho – que não têm, graças a Deus, escola ou vícios de cinema -, é nessa espécie de caos que se descobre o filme todo. Tive cenas que foram repetidas até 80 takes. Tenho uma amiga que diz que já temos problemas que cheguem para estarmos ainda à procura do ponto ideal. Na rodagem de um filme há problemas de espaço/tempo, de gesto, de palavra, de olhar. É na altura, e com as pessoas que trabalho – que não têm, graças a Deus, escola ou vícios de cinema -, é nessa espécie de caos que se descobre o filme todo. Tive cenas que foram repetidas até 80 takes.
O seu método de trabalho é muito preciso, com equipas minúsculas de 4/5 pessoas. Só assim consegue aquilo que quer?
A presença da equipa é uma coisa que já não existe. A Vanda (personagem central de "O quarto da Vanda") pode, se for preciso, segurar num reflector de luz ou ir comprar o que for preciso. Mas todos eles insistem na depuração do seu próprio trabalho; querem que o texto lhes saia com verdade. Cabe-me a mim saber depois os limites, os limites da violação de cada um.
A sua câmara parece invisível, o que quase anula o realizador. Como é feita, neste sentido, a sua direcção de actores?
São eles que sabem as coisas que querem dizer - o seu passado, a mulher, a mãe e o pai. A mim cabe-me organizar esse trabalho de forma apagada. Os realizadores que mais me formam, aqueles a que mais recorro, continuam a ser os mesmos Jacques Tourneur, Jean-Marie Straub (e a Danielle) e o Ozu. São eles os que mais conseguiram em direcção à arte. Nós estamos ainda na pré-história do cinema - eu estou na pré-história do cinema. Se há uma montanha descomunal para ultrapassar, que é justamente essa do oficinato, do anonimato, da utopia simples de fazer um filme. Só um filme. Mas um filme que segue em direcção, quase, ao sentido político do termo 'fábrica', da ideia e do objecto que circula com utilidade e que não vai imediatamente para a gaveta das 'artes'. Evidentemente que eu não posso falar de um filme destes e depois entregá-lo nas mãos de um distribuidor que o massacre...
Qual é essa utilidade de que fala?
A do arquivo de pessoas, um arquivo permanente das pessoas que agora estão no Casal da Boba. Um objecto permanente como os Lumiére faziam. Estamos a tentar fazer uma coisa com que muitos sonharam, o Vertov, o Einsenstein, Buñuel...
Os seus filmes recentes mantêm uma grande proximidade temática. Como se fossem descendentes sanguíneos uns dos outros.
Sim, esse é um problema que tenho desde "O quarto da Vanda". Os filmes que se lhe sucedem são irmãos muito desavindos, lutam muito entre si; estão sempre em confronto e aquilo que um quer dizer o outro não deixa. Mas todos eles são o mesmo, é a mesma Vanda, a Vanda na metadona e ela não mudou um único centímetro, garanto. No entanto, passaram-se quatro anos. Se me disserem que há uma variação de filme para filme, aí eu encaro isso como um elogio. É a história da fidelidade - eu sou absolutamente fiel àquilo que acho de mais importante dentro do que já fiz. A história da Vanda, neste filme, com a filha é aquilo que chamo uma grande lição de arte.