por Jacques Lemière
"Casa de Lava" e "O Sangue" acompanham uma retrospectiva da obra de António Reis e Margarida Cordeiro, que é também uma homenagem póstuma a António Reis. Você foi aluno de António Reis, na Escola de Cinema do Conservatório, onde ele leccionava a cadeira de Espaço Fílmico. E disse-me que, se fazia filmes, era também por causa de António Reis. Que professor era ele, que representam os filmes dele para um cineasta da sua geração. Que implica a sua ausência, no panorama actual do cinema português?
Pedro Costa - A ausência de António Reis é estranha. É como se as forças nos abandonassem. Um cansaço. Faz-me sentir muito mais velho. E enganado. É imperdoável. Eu julgava-me jovem e imbatível, pronto a afrontar filmes e mais filmes até ao fim dos tempos, pesadelos, dúvidas, combates com a produção, misérias... Sim, antes era possível suportar a pobreza.Eu era estudante na Escola de Cinema. Ele era professor. Eu não tinha visto os filmes dele. Um dia, escrevi a giz num muro do corredor, "Ao melhor Ozu oponho o pior Cottafavi". Enfim, uma estupidez como outra qualquer, mas naquela época, naquela escola, parecia-me um gesto útil. E reparo no António a examinar a coisa. Depois olha-me desconfiado e pergunta: "Tens dinheiro para uma bica?".Naquele tempo vivíamos uma economia de guerra, eu era pela violência e pela destruição. Ele não era contra. Era muito mais furioso e militante do que eu. As aulas dele eram selvagens e generosas e abriam-me a cabeça. Misturavamo-nos bem. Eu trazia a brutalidade das minhas convicções e ele, com a sua maravilhosa erudição, passava-me a sua convicção duma arte brutal. Eu ruminava o punk, os Clash, toneladas de silêncio e angústia. Ele mostrava os bois de Lascaux, as paredes de Giotto e poemas persas. Dizia-me: "Somos contemporâneos".Depois vi os filmes dele, um por um, esmagado. Aqueles filmes davam-me razão. As lições de cinema e de vida do António davam razão aos meus medos e à minha raiva. Era isso, davam-me razão poética.
Qual o filme, ou o texto, mais importante para si na obra de António Reis, comum ou não com Margarida Cordeiro?
A maior coisa não sei dizer... para mim o passeio da menina com a garrafa de vinho no ANA são as mesmas emoções que os passeios de Ingrid Bergman em "Stromboli" ou a escavação dos amantes de Pompeia na "Viagem a Itália". Os gritos de morte da mãe Ana confundem-se com os silêncios suicidas da Senhora Yuki de Mizoguchi. O comboio fantasma de TRÁS-OS-MONTES tem a mesma fúria que o transe voudu no final do "l Walked with a Zombie" de Tourneur.Não posso dizer onde começa JAIME ou ANA e termina ROSA DE AREIA ou TRÁS-OS-MONTES. Não posso deixar de os ver sempre assim, ignorante de títulos, cenários, assuntos, histórias. Sei que, fatalmente, estarei sempre em igualdade com o momento visto, sem mais nem menos armas, sem mais nem menos emoções que aquelas defronte de mim. Só o presente existe, um fio sem origem nem morte. É comovente porque é uma pura experiência sensual da durée.O rapazinho de ANA... repare como o seu delírio febril parece eternizar-se. Todos os espaços reais e mágicos - quarto, capoeira, falésia - tornam-se a mesma coisa e já outra coisa, animados pela terrível energia dessa vida das formas que ele tanto respeitava e que lhe retribuía todos os segredos e todas as audácias. Eis um rapazinho perdido, suspenso no espaço imenso. Eis o próprio espaço imobilizado. O que o António e a Margarida tentam fazer é curá-lo da sua doença, que é o tempo.
Alguns dias depois do suicídio de Guy Debord conversámos sobre as suas simpatias situacionistas por altura do 25 de Abril de 1974. Um curioso herdeiro de António Reis e Guy Debord?
Essa sugestão é tão assustadora que devo dar um passo atrás e precisar alguns "factos históricos". A nossa revolução portuguesa e lisboeta, foi Abril de 1974, não sei se em França ainda se lembram... O movimento punk, inglês e londrino, foi 1976, também morto e enterrado, graças a Deus. Nós - quero dizer, um grupo de "jovens sem conhecimentos especiais", entre os 15 e os 20 anos, que viveram com esperança e intensidade Abril e o punk - tivemos duas revoluções quase simultâneas (pelo preço de quê?).Os antigos combatentes anarco-sindicalistas de "A Batalha" pareciam-nos simpáticos e aceitaram-nos; era natural e exaltante viver a sombra duns heróis malucos que eram igualmente desprezados por fascistas e maoistas. Era muito cómodo... lá íamos nós explicar a sociedade do espectáculo pelas festas paz e amor do Avante. Quanto aos fachos era simples, uns insultos e uns pontapés bastavam.O primeiro 1° de Maio livre já o passámos à sombra das bandeiras pretas... lembro-me dum quarto de 2 metros por 2, música no máximo, a descoberta ao mesmo tempo da Sociedade do Espectáculo e das Notas sobre o Cinematógrafo de Bresson, das Edições Champ Libre e dos Diários de Dziga Vertov, de Vaneigen, o "Tratado de saber viver para uso das novas gerações", as fotografias dos filmes de Godard, as colagens e os slogans nas paredes, Asger Jorn, Jaimie Reid, Bazooka... Mas de Debord só conheço um filme, "Im Girum Imus Nocte..." não sei se o António Reis o terá visto. Imagino que tivesse gostado muito. Lembro-me de ele me contar o projecto de um filme que queria fazer, muito depressa, por dois tostões, uma ficção-científica a preto e branco, passada nas ruas de Lisboa contra os crimes da burguesia em geral... não o veremos. Mas reparem bem nas 2 ou 3 sequências mais "explícitas" de ROSA DE AREIA.Eram dois bichos do mato, não há dúvida. Guardo para mim uma atitude, a ideia de que um filme sem compromissos é um filme útil. Mesmo que seja à custa de uma solidão terrível. "Escondidos para viver felizes", como no slogan.Esses dois escolheram trabalhar no sentido da História mas longe das leis, exigentes, implacáveis. Só há uma maneira de combater o espectáculo que mata, e o falso medo que nos fazem suportar. É mostrar o nosso verdadeiro medo, nos filmes, na poesia, na música. É a violência da forma. Eu estou convencido que andamos nesta terra de mortos, nos cineastas, para fazer o mal. O pior dos males possível. Devia ser esta a verdade histórica para qualquer cineasta contemporâneo. Sim, pode ser esta a minha herança..."Quando se fazem coisas destas, quando se pensa e se sente assim, vejam no que dá."
Se bem que seja usual que um cineasta faça um filme contra o precedente, espanta-me a sua insistência em declarar que CASA DE LAVA é um filme feito contra O SANGUE. Diz que já não suporta o romantismo de O SANGUE. Diz também ter percebido duas coisas depois de ter realizado este segundo filme: a origem do seu gosto pela "economia da elipse" e a descoberta "do único assunto possível, a morte".
O cinema que eu creio possível e útil passa a vida a medir forças com a morte. Mas é um combate em que também é necessário guardar as distâncias e sobretudo aprendê-las. A elipse é uma zona obscura, uma espécie de limbo, enegrecido pelo tempo, onde vamos perseguir a morte protegidos pelo amor.É o presente. Neste filme a elipse começa nas cruzes do cemitério do Tarrafal, em Cabo Verde, e acaba na cama de hospital dum operário cabo-verdiano, em Lisboa. É esse o trabalho da mise-en-scene: tactear na escuridão, aprender o caminho e saber a distância que separa dois sítios onde a morte mostrou - e continua quotidianamente a mostrar - a sua cara.A elipse, nos meus dois filmes, é esta cara da morte que nos olha de frente e nos sorri.Olhá-la, temê-la, vencê-la. É o esforço das crianças de O SANGUE, é a agitação e a febre de Mariana, a obstinação e a inocência de Tina ou o sofrimento e a memória de Edite, em CASA DE LAVA. É sempre o mesmo combate irracional e desumano para animar esse rosto petrificado que nos mostra os dentes. É preciso acordá-lo, fazê-lo reviver. Isso faz-se com os braços, com os olhos, com a cabeça. Faz-se entre dois planos, no escuro da noite, em segredo.É o cinema... o cadáver de um pai, transportado pelas margens do Tejo... um operário em coma, passeia de carroça, guiado por uma rapariga que não acredita em fantasmas..."Se tens medo dos mortos, tens medo dos vivos." Dizem os cabo-verdianos e é a minha razão para fazer filmes.
O nascimento de CASA DE LAVA?
Este filme é filho de um desgosto. Aliás mostra bem essas rugas. Desgosto pelo país, pela sua miserável humilhação política, social, artística, por este povo passivo e mau, desgosto por mim próprio. "Visto o luto por mim mesmo", como na GAIVOTA. Decidi afastar-me de casa e dos lugares mágicos e exclusivos que me foram oferecidos pelo SANGUE. A Inês Medeiros e o Pedro Hestnes, os dois cúmplices do primeiro filme, decidiram acompanhar-me. São dois actores que não se assustam com o irracional e o risco... afastarmo-nos de tudo para ficarmos mais perto de nós, de nossa casa.Creio que CASA DE LAVA é feito deste movimento duplo. É um filme que me abre ao mundo e que, ao mesmo tempo, me esconde. Enfeitiçados por Cabo Verde, claro... é um pais trágico, uma raça de príncipes e princesas. Queria fazer um filme tão duro como a espera das mulheres cabo-verdianas. É a terra delas, teria de ser o filme delas, ambos fazendo a mesma pergunta silenciosa: porque é que a morte não cessa de regressar?Uma noite de Natal, no vale do Tejo, já tínhamos feito a mesma pergunta, eu, o Pedro, a Inês, o Nuno, o Martin... mas nessa altura era só um filme e muitas vezes nos enganámos. Era preciso partir muito longe, até Cabo Verde, para começarmos a ver o escândalo da morte, face a face. E desta vez não podíamos ser enganados pelo cinema. Os cabo-verdianos já são enganados pela sua terra e pelos seus fantasmas... enganados pelo cinema seria imperdoável.Era necessário respeitar os nossos sangues misturados.
É ainda o mesmo irracional feminino que dizia querer perseguir em O SANGUE?
Eu não mudei de rota. O continente é que se afasta cada vez mais. Entretanto, cheguei a este arquipélago de Cabo Verde, que me salvou do naufrágio e me deu novas forças. Foi um pouco o meu ANATAHAN mas ao contrário... desembarco neste mundo de mulheres perdidas e abandonadas.Venho exausto e muito doente. Sou recolhido e tratado. Durante a minha convalescença agitada, tenho visões, ouço vozes. Vejo a ilha como um enorme cemitério ou prisão, não é muito claro... Por vezes há uma melodia triste, um requiem ou uma dança feérica.Julgo perceber que as mulheres estão à espera, que estão ali, nesta terra morta e negra, desde sempre, à espera. Como sentinelas. E começo a adivinhar um complot entre estas mulheres: uma cadeia de sinais, de olhares cúmplices e gestos enigmáticos. Parece que se trata de um homem. O único homem na ilha. Aquele que volta sempre. E de cada vez que regressa, cai um sofrimento sobre a ilha. Mas será que elas o escorraçam? Será que elas o desejam? Ainda não é muito claro... Um sobressalto: e se fosse eu?Uma noite, uma rapariga vem à minha cabeceira. Ela diz-me que não acredita nos mortos, nem no sofrimento, nem na minha doença. Está-se nas tintas para a minha febre. E ajuda-me a fugir da ilha, atira-me à água.De longe, vejo 32 cruzes na montanha e a rapariga a rir e a cantar na praia.Descubro no meu bolso um mapa desenhado com um traço infantil. Só espero que ela não me tenha enganado...
Entrevista de Jaques Lemiére, Janeiro 1995