sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

quando algo, no cinema, mudou, para sempre...



Como é que chegámos aqui?

Uma noite, no fim do Ossos, eu estava exausto, sentado lá para um canto, e a Vanda veio dizer-me: "0 cinema não pode ser só isto. Pode ser menos cansativo, mais natural. Se me filmares, simplesmente. Continuamos?" Isto foi um sonho. Foi a pequena "ficção" que eu arranjei para fazer este "filme-documentário". Fui então para o quarto dela, para estar com ela e esperar com ela pelos "bulldozers" que viriam arrasar as Fontaínhas. Toda a gente tem um lugar no mundo. Este é o lugar da Vanda. E esta é a irmã da Vanda; a Zita. E a mãe. E aquele que vai ali é o Pango, um rapaz sem casa. E assim por diante. Quer dizer, nesta sociedade horrível, é bom ter um lugar, um centro, senão somos roubados no nosso próprio interior. E eu podia começar a filmar porque encontrei um lugar, esse centro que me permitia olhar à volta, quase a 360 graus, e ver os outros, os habitantes, os amigos. E comecei a ver como o bairro entrava e saía no quarto da Vanda. E podia sair eu próprio para ir com o Pango, o Russo, o Paulo... Comecei a ver que era possível fIlmar algumas coisas: a mentira que lançaram sobre aquele lugar, a repressão, a exploração, a pura tentativa de genocídio, o castigo imposto pela droga - que não é uma doença como alguns querem fazer crer... E ver como as pessoas resistem à violência e se armam emocionalmente. É preciso ser muito forte e muito frágil ao mesmo tempo, para aguentar tanto: ser fraterno e ser frio como gelo. É indispensável ver isto para começar a ver qualquer coisa.

Ou seja, ver uma grande paleta humana que vive...

A vida depende dos trocos, de uma colher de prata, de um melro dourado. A gente vai orientar-se, todos os dias. Eu vou para o Fonte Nova, tu vais para o Colombo. À noite, falamos. Se ainda me abrirem a porta, se eu ainda conseguir estender a mão, se a polícia não nos levar, se alguém não tiver medo e ainda nos quiser ajudar. Também se fazem filmes assim. Não estou a falar de espectáculo, nem da actriz com o decote e o vestido vermelho. Nem dos Óscares. Fazemos filmes para ver se nos orientamos, literalmente. Para ver se, no fim, como diz a Vanda, conseguimos começar a amar alguma coisa. Filmar e viver devia ser parecido. Devíamos ter objectivos claros, liruites generosos, devíamos ser felizes e termos todos o mesmo dinheiro. Todos os filmes deviam ser iguais para serem vistos por todos, como dantes, com prazer.

As palavras estavam sempre a escapar dos teus filmes anteriores. No Quarto da Vanda resolveu-te o problema?

Umas vezes ficamos calados, outras vezes somos uns fala-barato. É assim. É como diz a Vanda, mais uma vez: "quando não se tem, choramos." Há filmes que são bebedeiras e há fIlmes que são ressacas. Falava-se pouco no Ossos porque eu tinha de escrever os diálogos para todas as personagens e nunca soube escrever diálogos, nunca tive grande coisa para dizer. Neste filme, ninguém foi obrigado a escrever coisa nenhuma, não há "argumento cinematográfico", graças a Deus! De qualquer maneira eu jamais seria capaz de inventar coisas tão fortes, tão justas, tão bonitas como as que a Vanda, o Pango e todos os outros dizem. Só tive que agradecer-lhes e organizar tudo para que ainda ficassem mais fortes. E depois ninguém sabe o que se vai passar quando se liga uma câmara de filmar. Nunca ninguém soube e é por isso que o cinema é grande. Os que dizem o contrário são uns farsantes e os fIlmes que fazem são umas merdas inúteis. Nunca ninguém soube o que é o cinema.

Desde "O Sangue", os teus filmes são processos de aprendizagem que têm eliminado o supérfluo, cada vez com mais eficácia...

Respondo com o Pango: "Não gosto de me chegar muito às pessoas que me ajudam. Porque virá sempre o momento em que te dizem: "Já estás a abusar." É assim que eu quero viver e é assim que eu começo a viver o cinema. Saber que são os filmes que me ajudam a viver, que estarão sempre lá quando eu precisar, mas nunca pisar o risco. No caminho que escolhi sei que estou destinado a perder coisas, o meu cinema agora é uma coisa magra e essencial, mas é necessário ganhar coragem para nunca perder o medo de filmar. Ser desavergonhado, entrar sempre no quarto das meninas sem bater. E depois ter o pudor de ficar ou sair. Pedir o menos possível. Receber e agradecer o que o cinema me quiser dar sem nunca abusar dele.

E em relação aos actores. Decididamente já não existe espaço para eles?

Os actores... eu gosto dos actores. Não posso é com a cantiga do "faço filmes por causa dos actores'., normalmente quem diz isso faz exactamente o contrário, violenta-os, fá-Ios dizer disparates e macaquear sentimentos de telenovela. Nunca os respeitam e empobrecem-nos no ofício e na vida. Eu gosto de alguns actores como gosto de algumas pessoas. Mas não posso gostar de todos, como não posso gostar de todas as pessoas das Fontaínhas. Mas garanto que tudo o que aprendi com os actores com quem trabalhei também está No Quarto da Vanda. Eles estão todos neste filme, o Pedro Hestnes, a Inês de Medeiros, o Luís Miguel Cintra, o Canto e Castro, a Isabel de Castro, a Isabel Ruth, todos. Se procurares bem, à esquina de um plano vais encontrá-los. Eles sabem bem que estão neste filme e que estarão nos próximos, sempre.

Entrevista de Francisco Ferreira. Expresso