Deixemo-nos de meias palavras: a maior parte das discussões sobre cinema português passaram a estar envenenadas por diversos vírus – temáticos, formais e consumistas – que a televisão foi metodicamente introduzindo no espaço do cinema. E não pretendo que a palavra veneno seja entendida como mera censura moral. Nada disso: trata-se da constatação terrível, e terrivelmente desesperada, de um progressivo entorpecimento argumentativo e ideológico.
Hoje em dia, tornou-se quase impossível debater um filme (seja ele qual for) sem que alguma forma de policiamento cultural venha insinuar que a única “verdade” do cinema está no número dos seus espectadores. Em termos muito simples, o moralismo redutor das audiências transferiu-se, com armas e bagagens, para o espaço específico do cinema – no limite, tal moralismo visa o simples apagamento desse espaço e o triunfo (cultural, económico e simbólico) de um cinema esteticamente decadente e historicamente irresponsável, em resumo, totalmente “televisivo”.
«Juventude em Marcha», de Pedro Costa, seguramente um dos filmes maiores do cinema (português ou não) deste nosso século XXI, é um objecto que cai desamparado neste contexto de sistemática degradação dos espaços específicos do cinema. Não é caso único, entenda-se. Neste aspecto, não é minha intenção opor os filmes que, subjectivamente, me pareçam “bons” contra os que possa considerar menos interessantes. A actual conjuntura afecta todos os filmes que, melhor ou pior, tentem fazer valer alguma ideia de cinema contra os que se limitam a prolongar retóricas colhidas no espaço televisivo. No espaço vivo do mercado, o desejo de cinema português está moribundo – afinal de contas, o desejo de cinema, tout court, também não anda melhor.
Por isso, valerá a pena não ter medo dos paradoxos e dizer que a evidente intransigência temática e formal que define «Juventude em Marcha» não pode ser vista como algo que esteja contra as duas mais correntes (e, por assim dizer, mais populares) reivindicações que, há décadas, o senso comum opõe aos filmes portugueses. A saber: a necessidade de falar de temas genuinamente portugueses e a importância de o fazer de uma forma original e moderna, distante de convenções ancestrais e anquilosadas.
Desde logo a questão da especificidade portuguesa. Há vários anos que Pedro Costa observa metodicamente uma questão muito nossa, por excelência social: a do desenraizamento dos habitantes do bairro das Fontainhas e os seus modos de sobrevivência num universo urbano que, em tudo e por tudo, os marginaliza. Foi assim em «Ossos» (1997), uma ficção assombrada que vivia de uma violenta verdade documental. Voltou a ser assim em «No Quarto da Vanda» (2000), um documentário cujas evidências materiais, estranhamente ou não, o empurravam para uma dimensão “mais-que-realista”, visceral e fantástica. «Juventude em Marcha» completa uma “trilogia das Fontainhas” cujo fecho está implícito no próprio tema motor do filme: a saída dos habitantes do bairro e a sua instalação em casas novas, lugares de um branco imenso que contrasta com o negrume estranhamente maternal das Fontainhas. Mesmo no plano técnico, a evolução possui algo de demonstrativo: aplicando de forma cada vez mais sofisticada o video digital, Pedro Costa afirma as potencialidades criativas de uma tecnologia de ponta, muito além de qualquer utilização pitoresca ou exibicionista.
Claro que a questão alternativa – ficção “ou” documentário – ressurge a propósito de «Juventude em Marcha». Mais do que nunca, é uma questão insuficiente para dar conta do labirinto de formas e sensações que o trabalho de Pedro Costa coloca... em marcha. Isto porque não se trata de decidir entre um olhar “documental”, que nos daria a verdade imediata da vida das personagens, e um exercício “ficcional”, suposta variação sobre a verdade anterior – o documento pode ser uma forma de ficção, a ficção arrasta sempre elementos de natureza documental.
No interior dessa dinâmica, a figura central de Ventura é exemplar: encenado como pai simbólico de todos os outros (incluindo Vanda, agora mãe de uma criança), ele é o narrador transcendental, alheio a qualquer vício “objectivo”, de tudo aquilo que acontece perante os nossos olhos. E o que acontece? Uma colagem de gestos e cerimónias, palavras e silêncios, que nos faz sentir a dor imensa – e a inusitada esperança – que pode habitar uma realidade tão ferida, tão desagregada e tão humana. Demasiado humana.
(Publicado na revista «6ª», do Diário de Notícias, 24-11-2006, com o título `Humano, demasiado humano`)
João Lopes