segunda-feira, 3 de março de 2008

´Aquela é a minha terra´

É um filme sobre a resistência e a dor de habitar no Bairro das Fontainhas e de fazer cinema. È uma obra de referencia. No Quarto da Vanda estreia-se amanhã, sexta-feira, 2

André Dias

A Visão assinala o regresso do realizador de Ossos. Regresso duplo: às salas e aos bairros periféricos de Lisboa. A droga é uma dos seus assuntos base embora não se trate de uma película sobre toxicodependentes. «Não penso, aliás, coisas muito interessantes acerca da droga», sublinha-nos o autor. «Ela está lá, não pode ser evitada, não pode ser fantasiada. Por isso, acho que era melhor debruçarem-se sobre as pessoas que sofrem».


VISÃO: Foi difícil realizar No Quarto da Vanda?

PEDRO COSTA: È difícil acordar num bairro como o das Fontainhas e pensar que se está no melhor dos mundos. Todos os dias nos dizem: é o melhor que há, e vai ser ainda melhor! Como o cinema. Nunca o mundo foi mais bem filmado, mais exuberante, mais bonito, mais interessante. Tudo é progresso. Só que isso não é verdade, é uma mentira enorme. O que estamos a perder todos os dias é gritante.

V.: E como se pode resistir?

P.C.: Parece que essas pessoas, os drogados, não pensam as coisas ou não pensam o mundo como nós, porque estão artificialmente nubladas. Vivem naquela constância de estar ali a fumar uns vapores, uns ópios, umas coisas, que lhes destroem o cérebro. A vida é que destrói o cérebro. Sabe-se que a droga é caríssima, que o tráfico movimenta milhões e, no entanto, para os drogados o dinheiro não conta, pura e simplesmente. È alucinante essa experiência. Acho que há uma elevação também na droga, ou seja, por vezes quem renuncia desiste. A resistência não está só nos gritos e na palavra. Vi muito mais a partilha de coisas, de emoções e de sentimentos nesse bairro do que noutros sítios. O pão é repartido, os problemas também o são, sob uma espécie de capa de indiferença, uma capa fria, um salve-se quem puder que, às vezes, é muito violento. Pareceu-me que se aprende a ser assim para não se sofrer, para resistir. Só vivendo essa indiferença, essa perdição, é que se pode ser generoso e fraterno e humano.

V.: Há um certo terror quotidiano, mas também uma esperança…

P.C.: Pior do que aquilo não pode ser. Fiz tudo para que o filme não fosse negro, para que não fosse um filme desesperado, que se fechasse a si próprio. É complicado dizer, mas a vida lá é igual à vida em todo o lado. È mais difícil para nós, que não pertencemos ao seu mundo, perceber onde está a felicidade, porque ela não se deixa ver. Encontra-se em coisas tão pequenas…uma prenda de aniversário, no Bairro das Fontainhas, pode ser uma laranja embrulhada num papel, com uma fitinha. Digamos que a felicidade e a esperança não são as coisas que se imagina. Toda a gente me pergunta: porque é que tu andas lá? Ando, porque aquela é a minha terra, porque o cinema também tem a ver com isso, poder mexer-me de um lado para o outro, poder ir filmar… eu filmo naquela terra como se ela fosse um país. Porque aquilo já tem contornos, já quase tem fronteiras. Fui para esse país porque tive de ir encontrar trabalho noutro sítio. Emigrei. Tive de aprender a sua língua. Tratava-se de um país que não era filmado ou, pelo menos, não era bem filmado.

V.: Um país em construção e demolição simultâneas…

P.C.: Um país acossado, que está em vias de desaparecer, um território. Ainda não desapareceu completamente, vai ser destruído, quase como a Jugoslávia…Toda a gente pensava que ia ser duas coisas, dois blocos, duas nações, dois impérios…mas não. Vão ser milhares de territórios, cada vez mais pequenos, mais pequenos até ao virtual, até ao informe.

V.: Afirmou que havia algo mais forte que o cinema…

P.C.: Há um gesto, um gesto que se faz em relação a qualquer coisa sem pedir nada em troca. O mundo avança um bocado se se tem vontade de fazer, por exemplo, um filme. E isso acontece se se for tocado por coisas muito fortes. O cinema é uma troca, mas uma troca como um milagre das mãos vazias. Ou seja, eu vou para lá sem nada, e é preciso criar qualquer coisa nova, com dificuldades tremendas. Como é que eu hei-de, sem amarfanhar outros, fazer qualquer coisa de inesperado e forte? E o que é que esses outros me dão em troca? Dão-se a ele próprios.

V.: Houve, então, uma aprendizagem tremenda a fazer com aquelas pessoas…

P.C.: Pois houve. Essas pessoas não querem mudar de mundo ou de classe. Querem ter uma casa decente, uma casa de banho, uma cozinha grande, qualquer coisa para pôr as couves ou os animais, mas não querem mudar para lá disso. Mudar de classe é coisa de telenovela. Eles têm orgulho em si, não querem ser outras pessoas. Ora, hoje em dia, todos querem ser outras pessoas mesmo que sejam horríveis. Mesmo que a droga não acabasse nunca, mesmo que eles não tivesses, e vão ter, de se curar à força, como se diz, ou de sair daquilo, seriam sempre filhos de alguém e membros daquela comunidade. Gosto muito disso, sinto que qualquer humano é atraído para um coração invisível. Uma espécie de íman muito forte, um sol qualquer… eles giram à volta desse sol. Muita gente diz que ele é negro, é horrível, mas é muito potente, é muito mais forte do que o da maioria das pessoas que vive sem essa luz. Acho que isso acontece porque cada um concentra muito bem a sua energia. O espírito do cinema tem que ser vivido a fundo, até ao fundo, conhecendo-o bem, os seus instrumentos, a sua técnica, a sua história. Para permitir o caminho em direcção ao espírito da coisa, o espírito das Fontainhas, o espírito da Vanda, o espírito do Pango, o espírito daquela comunidade. O que eu quero dizer com No Quarto da Vanda é que o cinema não rouba dinheiro, o verdadeiro cinema nunca roubou dinheiro. As pessoas vão menos ao cinema porque provavelmente as coisas são menos vivas, o cinema é menos vivo. O cinema em Portugal é um cinema morto, cheira mal e fede.

V.: O seu filme dá «lucro» aos que o vêem?

P.C.: Tento fazer bem, como qualquer cineasta, o meu trabalho. E o meu trabalho não é pôr um plano a seguir a outro, que o vestido seja vermelho e que a rapariga atire o cabelo para o lado., mostrando um pouco o seio. Por isso é que proponho um filme como No Quarto da Vanda. Têm que se mudar muitas coisas no cinema português. È uma forma simples de dizer que é possível fazer de outra maneira, quer dizer, com menos dinheiro. Por isso, falo do corpo inteiro do Pango, há uma espécie de integridade na pobreza. Uma grande parte do dinheiro do cinema não vai para os filmes.

V.: Um dos grandes momentos é quando a Vanda canta Mouraria, da Amália. É a mais bonita homenagem que foi lhe feita. A Amália só podia ser cantada pela Vanda.

P.: Obrigado, isso toca-me imenso.


Revista Visão, nº 416