Presuma-se que nada sabemos destas imagens e destes sons. Que não sabemos que provêm de No Quarto da Vanda, de Pedro Costa, nem que por elas se reflecte algo da vivência do Bairro das Fontainhas, em Lisboa. Que nada sabemos dos seres que atravessam os dois ecrãs desta peça, que desconhecemos, até, o aspecto fragmentário deste conjunto de imagens face à totalidade mais vasta de onde foram retiradas. Com que ficamos, então, neste cenário enxuto de referências ? Essencialmente, com duas continuidades “audiovisuais” colocadas lado a lado, em que numa vemos planos do interior de várias casas do bairro e na outra a sua correspondência exterior. Não exactamente o seu contracampo, mas a sua equivalência.
Dificilmente se poderia imaginar projecto mais simples, mais revelador do gesto cinematográfico, por excelência, isto é, da montagem. Como na célebre história desse filme onde durante muito tempo – e equivocadamente - se acreditou ter sido realizado, pela primeira vez, o princípio de alternância da montagem clássica. Falo de Life of an American Fireman, filme de 1903 com seis minutos de duração, onde o genial Edwin Porter filmou, em oito planos, o quotidiano de um bombeiro chamado a socorrer uma mulher e a filha aprisionadas num andar em chamas. Tal como Pedro Costa, nesta peça, também Porter, na sua Vida de um Bombeiro Americano, optou por dissociar as imagens do interior e do exterior do edifício, em vez de, “mais naturalmente”, as comutar, alternando-as numa sequência visual com a duração “natural” do acontecimento.
Oferecia-se, assim, ao espectador, a possibilidade única de observar, por duas vezes, tudo o que se passava dentro e tudo o que se passava fora. E se o filme, na sua forma original, era ainda mais montado do que na versão de 1914 que durante longo tempo a substituiu (e onde o diligente montador da Pathé decidiu `”modernizar” o material, alternando as “vistas”) é porque Porter percebeu muito bem, face à dissociação efectiva das imagens, que a montagem era coisa mental, a construção de um espaço-tempo entre as coisas do mundo, e que tudo isso (e o que disso fazer) era, afinal, a criação do próprio cinema, a sua questão.
É esta mesma questão que volta a aqui estar, 100 anos depois, na pureza da sua forma original. O cinema passa todo ele pelo que fazer do mundo imenso que está entre os planos de um filme, pela forma a dar ao intervalo que, ao mesmo tempo, os liga e separa.
É a nós que Pedro Costa coloca a questão de sabermos quem somos no meio destas imagens “separadas” e destes sons que sobre elas se fundem, como um céu. Habituámo-nos tempo demais ao vicio de sermos conduzidos pelo meio dos filmes, ocupando sempre o mesmo espaço que sabemos de antemão estar-nos reservado pela “gramática da escola” que qualquer espectador reconhece tão bem como qualquer cineasta. O uso disciplinado, massificado e universalizado desse modelo fechou o cinema quase para sempre na representação disciplinada do que melhor a ele se adapta: daí nasceram certas formas, como o duelo, e um modelo conformado de sociedade e de mundo. O cinema é a montagem, mas os filmes têm sido, na sua regra generalíssima, a sua mais pura negação.
Daí que a proposta “audio/visual” de Pedro Costa seja, pois, cinema na sua forma mais pura – que é sempre, como em toda a arte, a sua forma mais primitiva -, mas não seja um filme. Como já não era exactamente um filme No Quarto da Vanda e ainda menos o era Onde Jaz o Teu Sorriso?, objecto luminoso onde, já num outro plano, numa outra dimensão, Pedro Costa olhava para o estranho trabalho de criação de um filme através da montagem de Sicília !, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Agora, entenda-se, a questão é também política (é sobretudo política).
Depois de ter resolvido “o seu lugar” face ao universo concentracionário das Fontainhas que nos mostrou em No quarto da Vanda, Pedro Costa força-nos agora a descobrir a natureza e o propósito do nosso próprio olhar. Aqui, sem contemplações, lugar seguro ou misericórdia, somos nós a máquina, o intervalo que relacionará estas imagens umas com as outras: fascinar-nos-emos com as hipotéticas “sincronias”, inventaremos campos-contracampos inexistentes, tentaremos fabricar um filme “parecido com todos os outros” ? Ou, pelo contrário, aceitaremos o desafio de pensar tudo outra vez, de sermos reinventados por uma percepção que não se procura parecer com a nossa, de arriscarmos deixar o centro confortável do onanismo burguês que perpetua o fascismo para aceitarmos olhar de frente o que fizemos da humanidade e o que fizemos (e fazemos) de nós próprios, no meio dela ?
João Mário Grilo