Sérgio Dias Branco, Folha 7 (Nov. 1998)
Há uma ideia, infelizmente generalizada, que proclama o cinema português como uma produção essencialmente intelectualizada. Importa afirmar que essa propriedade não constitui um mal em si, tratando-se apenas de uma hipótese de formulação cinematográfica que tem o seu expoente máximo no rigor, na austeridade, na ironia do cinema do Manoel de Oliveira. Mas posteriormente essa característica é confundida com uma atitude elitista por parte dos cineastas e produtores.
Serve este intróito para ajudar a concluir acerca das possíveis razões dos mais recentes sucessos do cinema português. Porque é um erro tentar simplificar o universo do cinema feito em Portugal esquecendo como ele espelha a diversidade de propostas que caracteriza a arte contemporânea em geral e o cinema em particular. No caso de Adão e Eva (1995), Mortinho por Chegar a Casa (1996), e Cinco Dias, Cinco Noites (1996), qualquer um dos filmes mostrava uma qualidade industrial de produção e nas duas primeiras obras registava-se uma ligação a modelos de ficção de reconhecido êxito — o drama sentimental e a comédia fantástica. No último exemplo é reconhecível outro modo de contornar a suposta aversão do público português: a relação próxima com a realidade portuguesa. Este foi também o motivo do sucesso de Corte de Cabelo (1996).
Estas conclusões serviram não para aferir o valor dos filmes citados — tratou-se de um pensamento sobre a resistência e eficácia comercial, e isso não constitui um parâmetro de avaliação artística ou estética —, mas para concluir como esta evolução e a via seguida para a divulgação de Ossos (1997) podem condicionar a sua fruição. Talvez a dimensão sociológica e documental construa a mais ampla porta de entrada para este filme. No entanto, apesar da legitimidade dessa leitura, devemos pensar na sua essência e complexidade, admitindo que essa é apenas uma das vertentes deste objecto.
Em Cinéma 2: l’image-temps, Gilles Deleuze afirmou: ‘La diversité des narrations ne peut pas s´expliquer par les avatars du signifiant, par les états d’une structure langagière supposée sous-jacente aux images en général. Elle renvoie seulement à des formes sensibles d´images et à des signes sensitifs correspondants qui ne présupposent aucune narration, mais d’où découle telle narration plutôt qu’une autre’ (Cinéma 2: l’image-temps, p. 179); contrapondo às razões da semiologia a importância da experiência sensível. Por isso, o realismo específico de Ossos é um segredo de ordem fenomenológica. A falsa inocência do cinema confronta-se assim com a intensidade que faz as imagens.
A depuração deste filme é o culminar de um percurso que, podemos dizê-lo agora, começou em O Sangue (1990). Uma obra escrita à luz da lua, sobre a violência da infância, onde a circulação de afectos que caracteriza o cinema de Pedro Costa era calada pelo brilho estético das imagens a preto e branco. Volvidos dois anos, o cineasta esquece o passado e parte para Cabo Verde onde faz Casa de Lava (1992), um filme telúrico, emocionante, na relação entre a materialidade e a essência do cinema. A deambulação ficcional desse filme derivou na radical proposta de organização da realidade de Ossos. Onde a visão é orgânica, onde os corpos são filmados como fronteiras, e os sons anónimos são indícios. É nessa vontade que as personagens revelam o medo de entender que alguém é parte delas, processo simples e sem palavras, como o próprio cineasta disse. Neste silêncio se constrói Ossos: a montagem afasta as personagens, os rituais são repetidos — a viagem de autocarro, as chegadas, a limpeza do apartamento, a abertura do gás, a recusa do miúdo — e acentuam a semelhança física e de vivência, lançando o horizonte da morte. A narrativa força cada imagem a ser uma prova de interioridade, cada olhar a integrar uma verdade íntima, votando as personagens à solidão mesmo quando um plano as une.
A noção do plano como unidade inevitável é comum à última geração de realizadores portugueses. É um conceito que cineastas como Pedro Costa, Joaquim Sapinho, Teresa Villaverde — realizadora de A Idade Maior (1991) e Três Irmãos (1994) — e, por exemplo, João Pedro Rodrigues — autor da curta-metragem Parabéns! (1997), exibida em complemento de Ossos — herdaram de António Reis. Ele foi o autor, junto com a mulher, Margarida Cordeiro, de experiências tão fascinantes como Trás-os-Montes (1976), Ana (1982), e Rosa de Areia (1989). E foi também um carismático professor de cinema. Basta observar como a rigorosa ordem narrativa de Parabéns! é confrontada com a desordem inerente à estrutura das suas imagens. Vê-se isso quando, no início, um braço masculino invade o plano. Sentimos isso, quando os dois amantes homossexuais fogem para o chão da cozinha, na última cena.
A identificação do plano como limite pode ser relacionado com a sua vocação para a escrita. Normalmente um plano estático corresponde a um campo fechado e um ‘travelling’ alcança uma dimensão espacial. Mas se aplicarmos esta noção unitária à estrutura geral de um filme, em que todas as partes se relacionam e a narrativa é a sua comunicação, estes significados podem ser subvertidos. Deste modo, a imobilidade da câmara em Ossos é um sinal de fechamento, de interdição. E o único e longo ‘travelling’ lateral que acompanha Nuno Vaz quando este sai do bairro surge-nos como um sublinhar da ausência de saída, como um esvaziamento do movimento. Por essa razão é que todos os recomeços e tentativas de reconstituição a nível ficcional acentuam o encerramento. Neste mundo, neste filme, quem não tem lugar é rejeitado; como a prostituta interpretada por Inês de Medeiros, que aqui é exterior às convulsões interiores daqueles lugares, já não caminhando connosco, nem nós com ela. Ela vem buscar o que é necessário transportar para o outro mundo. E desaparece. Ela e a criança que ela leva são personagens desajustadas que confirmam a solidez daquela realidade, onde há um poder em cada pessoa, em cada gesto, em cada lugar. Quem quiser sentir isso não pode querer ver cinema neste filme, porque em Ossos só é possível viver cinema.
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Texto gentilmente cedido por Sérgio Dias Branco,
Muito Obrigado