quarta-feira, 5 de março de 2008

Sentimos que ele (Ventura) tem a grandeza de um mito fundador.



Das Fontainhas ao Casal da Boba. Da memória do passado á violência do pre­sente. «Juventude em Mar­cha», estreado em Cannes, chega agora as salas. É o novo filme de Pedro Costa


Subir a montanha. Procurar uma sabedoria que vem de longe. Descobrir na viagem pensamentos e recordações. Entramos em «Juventude em Marcha».

Entrevista de Francisco Ferreira


O que significa este titulo?

Que a juventude é um risco e é preciso corrê-lo. Que o cinema é um risco e é preciso corrê-lo. E que, depois, é preciso saber envelhecer a filmar. Diz-se numa cantata de Bach: «Que a tua velhice seja como a tua juventude»

«Juventude em Marcha» começa com um plano muito sombrio. Vêm do fim dos tempos e dos prim6rdios do cinema. Alguém deita fora o recheio de uma casa por uma janela. É um plano que parece dizer adeus.

Queria que esse meu último olhar sobre as Fontainhas lembrasse o bairro com a grandiosidade e o mistério de urna cidade perdida. Uma daquelas cidades da antiguidade, cavada na montanha. Mas este plano é indissociável do seguinte: há uma mulher, também ela salda de um túmulo ou de uma caverna, que tem um punhal na mão e vai lançar uma maldição definitiva. O bairro das Fontainhas, onde realizei Ossos e No Quarto da Van­da, já não existe. É um enorme baldio a noroeste de Lisboa e está agora pronto para o retalho da especulação imobiliaria. Achei que era o momen­to de voltar atrás, de procurar a origem das Fontainhas, dos pioneiros que a fundaram e do seu extraordinário espírito de partilha. Queria fazer um filme sobre as primeiras barracas que ali foram erguidas, as primeiras conversas á volta da foguei­ra, as figura nas paredes que contavam historias. Procurar as origens de uma comunidade, como nos filmes do John Ford, e acreditar no poder da memória, como nos poemas do Mandelstam. Acreditar num tempo em que mundo ainda cantava e os homens ainda tinham vontade de trabalhar. Depois da demolição, as famílias das Fontainhas foram realojadas num novo bairro social, no Casal da Boba, perto do Casal de São Brás. Este filme tem duas partes, uma luminosa, o bairro do passado, e uma sombria, o bairro do presente.

A que distância fica este novo bairro das Fontaínhas?

Para os seus antigos habitantes fica a anos-luz. É uma viagem para Marte. Apesar de continuarmos no concelho da Amadora, mais a norte/noroeste. É isolado, frio e ventoso. Entramos juntos, eu, o filme e os habitantes, nesse novo bairro de blocos brancos que nunca lhe pertencerá. Não foram eles que construíram aquelas paredes. Os apartamentos foram feitos no antigo local da maior lixei­ra de Lisboa. Ainda de lá se escapam gases tóxicos.

«Juventude em Marcha» esta construído em torno de uma personagem: Ventura. Sentimos que ele tem a grandeza de um mito fundador.

Cruzei-me com Ventura várias vezes durante a rodagem dos filmes anteriores. Ele cumprimen­tava-me sempre ao fim do dia com uma delicadeza e uma elegância que me intrigavam. Nunca ousei aproximar-me dele, julguei-o inatingível. Pouco a pouco, fui descobrindo o seu passado. E um homem lendário no bairro: foi um dos seus alicerces e um dos seus maiores dramas. De certa maneira, é um homem destruído. Nasceu na Ilha de Santiago, em Cabo Verde. Chegou a Por­tugal em 1972, sozinho. Deixou a mulher na sua terra e veio para trabalhar nas obras. Ventura revelou-me um pouco da sua solidão nos primeiros anos em Portugal, as dificuldades que pas­sou, os seus amores furtivos. Foi um dos primei­ros a construir uma barraca nas Fontainhas. Comecei a acreditar nele, e ele em mim. Queria saber mais desses segredos antigos, mas nunca forcei a confidência. A uma dada altura decidimos imaginar que todos os filhos das Fontainhas eram seus filhos. Acho que foi por aí que a ficção entrou no documentário. E com essa veio outra ideia: a da vida do presente no novo bairro e as repetidas visitas de Ventura aos seus nume­rosos filhos, os reais, os imaginários, os desejados, ainda que esta paternidade seja utopia. Sou­bemos nesse momento que era entre o presente e o passado que o filme podia existir. As primeiras cenas que filmámos foram «flash-backs» do início dos anos 70, quando Ventura joga á bisca, na barraca, com o seu colega de trabalho. Ventu­ra tem uma tal convicção que, se encontrarmos a maneira correcta de filmá-lo, é impossível não acreditar nele enquanto personagem. Três ou quatro palavras, um olhar, é o que lhe basta para exprimir valores essenciais.

Há uma carta de amor que Ventura diz e repete e que também vem do passado. Ventura ensina essa carta ao seu colega. Mas a carta nunca será escrita.

Porque não há canetas na barraca, nunca as houve. E estou convencido que, infe1izmente, nunca as haverá. Inventamos essa carta de amor a três. São algumas linhas das últimas palavras escritas pelo poeta Robert Desnos á sua mulher, a partir do campo de concentração onde morreu, e de frases enviadas por Ventura á sua mulher, que ficou em Cabo Verde. Limitei-me a aproximar duas coisas muito distantes que me pareceram nascer do mesmo sentimento e da mesma prisão. A carta que Ventura ensina apazigua e condena. Noite após noite torna-se mais violenta e sombria. O Ventura di-la com uma tal convicção, um tal delírio, que as paredes da barraca tremem e assustam. Mesmo se fosse escrita, essa carta já não teria destinatário. A prova mais cruel disto está do outro lado do filme, no presente daqueles jovens marcha.

Porque decidiu filmar a sequência no museu?

Um dia passo com o Ventura de carro, na Aveni­da de Berna, ele diz-me: «Fui eu que sentei ali o Sr. Gulbenkian e o pinguim.» Referia-se à estátua de Calouste Gulbenkian com a figura do deus Ho­rus. E o Ventura lá me conta que passou três anos a trabalhar ali, nos esgotos, a assentar as lajes do chão do Centro de Arte Moderna, a limpar o jar­dim. Nessa altura fizemos uma pequena visita ao museu, onde ele nunca tinha entrado. E decidi­mos filmar uma cena. Imaginamos que ele encon­trava mais um filho perdido que estaria a traba­lhar no museu como segurança. Entrámos, pedi ao Ventura para escolher um quadro, ele apontou para A Fuga para o Egipto, do Rubens. Filmo o quadro, o Ventura olha para ele, mas o que se passa é que não é só o Rubens que ele vê, de facto, o Ventura vê também o cimento da parede que está a segurar o Rubens e que ele se orgulha de o ter construído. Foi uma modesta solução que encontrei para dizer que o Ventura e todos os outros como ele têm tanto direito á beleza como nós.

Sentiu que o Ventura, pelo modo como ele organiza a sequência, se identificou consigo. Que o seu olhar se identificou com o dele?

Uma conversa puxa outra, e há um dia em que ele me diz a idade. Tem apenas mais quatro anos do que eu. Foi aí que o abismo que eu julgava haver entre nós começou a desaparecer. E perguntei-me: será que eu não me cruzei com este homem na rua, no metro, nalguma tasca do Bairro alto?
Afinal, estávamos muito mais próximos do que eu julgava. Neste encontro inesperado entre o seu passado e o meu, surgiu a identificação. E isso lançou outras ideias para o filme.

Em que momento?

Por exemplo, quando percebi que o 25 de Abril que para mim foi um entusiasmo, tinha sido para o Ventura um pesadelo. Ele chega a Portugal em 1972, encontrou um trabalho bem pago, dão-lhe um contrato. Julga que se vai safar. Depois vem a Revolução e ele conta-me a história secreta dos imigrantes cabo-verdianos na Lisboa do pós-25 de Abril, a historia que ninguém ainda contou. Eles tiveram muito medo de serem expulsos ou de acabarem na prisão. Barricaram-se. Nessa altura eu estava na rua, era adolescente. Durante a rodagem fui procu­rar um álbum de fotos das manifestações do 1º de Maio com aqueles milhares de pessoas em festa, e é incrível: não se vê um único preto. Onde estavam eles? Ventura contou-me que estavam todos jun­tos, aterrados de medo, escondidos no Jardim da Estrela, a temer pelo futuro. Contou-me como a polícia militar, em plena euforia, partia á noite pa­ra os bairros de lata para «caçar pretos». Parece que os amarravam as árvores para se divertirem. Juventude em Marcha é também um filme sobre o fracasso do 25 de Abril, porque se a Revolução tivesse vencido, nem o Ventura nem os outros con­tinuavam no mesmo abandono e na mesma infelicidade de há 30 anos. Não quero carregar de ironia o título deste filme, mas não posso nem quero esque­cer que todas os «filhos» do Ventura são filhos do 25 de Abril. É por filmar estas coisas da maneira como o faço que não acredito na democracia. Pes­soas como o Ventura construíram os museus, os teatros, os condomínios da burguesia. Os bancos e as escolas. Como ainda acontece. E o que eles aju­daram a construir foi o que os derrotou. Há duas partes neste filme, um passado e um presente das Fontainhas, que coincidem também com o antes e o depois do 25 de Abril.
O passado é fraterno, utópico, romântico. Nesse tempo está a história da carta de amor que Ventura repete. O Presente resignado, infeliz, medíocre.

Gostava que falasse das outras personagens, em especial da Vanda, o que ela foi no filme anterior e o que está em «Juventude em Marcha».

A vida da Vanda, do Pango ou do Paulo Muletas «mudou» e era para mim importante filmar essa transformação. Há uma Vanda que ficou para sem­pre no seu quarto. Essa Vanda morreu. A Vanda actual casou com um operário, Paulo Jorge, e têm uma filha de dois anos, Beatriz. Deixou a droga. Criou uma família. Mas passa-se aqui uma coisa muito perturbante. É que a Vanda de Juventude em Marcha, nas cenas que ela própria criou, nun­ca se esqueceu da Vanda anterior e fá-la renascer, pela ficção. A Vanda representa para o Ventura o que foi no filme anterior. Diz ela: «se você me tivesse visto dantes...» Hoje, o seu problema é só um: «Como posso ser uma boa mãe?» E é a sua própria mãe que ela recorda, e é no futuro da Beatriz que ela pensa. O Nhurro que o Ventura vai descobrir na Émaus também deixou a droga. Pergunta-se se ainda irá a tempo de se reconciliar com o pai. Ago­ra, é cozinheiro no jardim infantil do Casal da Bo­ba. O Paulo vive com uma namorada, continua com seis balas na perna mas já não precisa de mule­tas depois de tantas operações. É o único dos fi­lhos que resiste á adopção. Decidiu ele próprio re­criar a sua agonia numa cama de hospital, lançando sobre a família a mais cruel das condenações, sem piedade e sem remorsos. Todos eles preferiam as Fontainhas, apesar de tudo. A Bete, que fica para sempre fechada na última barraca do bairro, é um fantasma de todas as mulheres de Ventura: mães, filhas, amantes. Morreu poucos dias depois da ro­dagem. Nas ruínas das Fontainhas também ficou para sempre a mãe da Vanda, Helena. Morreu de desgosto e de trabalhar de mais. E a Zita a irmã da Vanda, que já não tinha prazer de viver.

Resta-nos o «Lento».

Já falámos dele sem ter dito o seu nome. É o colega de trabalho do Ventura, o companheiro da solidão, do cansaço, do jogo da bisca. O amigo que partilhou com o Ventura a primeira barraca do bairro. O «Lento» vem do passado. Atravessa o fil­me todo a tentar decorar a carta que o Ventura lhe diz, a decorar o sonho do Ventura, mas já não lhe resta tempo, nem para o amor, nem para a vida. Ele é o pobre imigrante cabo-verdiano e analfabeto que tem de lutar pelo gás, pela água, pelo bilhete de identidade. E pela electricidade. Quan­do o «Lento» sobe ao poste para roubar a luz para a barraca, ao mesmo tempo que salva o Ventura da loucura, pega-lhe na mão e leva-o num salto para o futuro que é um presente infernal, calcinado; afi­nal o presente dos habitantes de todas as Fontai­nhas. As promessas da carta arderam. O «Lento» diz no filme: «Cheguei um fósforo ao colchão por causa das dificuldades que atravessamos.» E o que vemos é uma casa queimada com figuras na pare­de. Só que estas, agora, são figuras da morte. Ao Ventura, ainda dedico um plano onde ele pode ficar a descansar. É o último plano do filme: e1e está deitado na Cama e muito pequenina, no can­to do enquadramento, está a Beatriz. Ele já não repete a carta e ela ainda não sabe falar. Mas eu acho que há ali o princípio de um novo diálogo, de um novo filme a fazer.

Expresso

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Agradecimento pessoal a Daniel Pereira