Fontainhas, o bairro pobre de Lisboa onde Pedro Costa filmou Ossos e O quarto da Vanda, foi demolido. Seus moradores foram removidos para Casal Boba, um bairro novo, de habitações populares construídas pelo governo, com cômodos pequenos e paredes brancas.
Juventude em marcha mostra essa “mudança” pelos olhos de Ventura, antigo morador de Fontainhas que foi abandonado pela mulher, Clotilde. Mais do que um homem velho, Ventura é um homem “antigo”, símbolo de uma classe que não existe mais (a operária) e de um tipo de elegância que também se dissipa. É ele o protagonista de Juventude em marcha – um título tanto irônico quanto iluminador –; é ele o homem que Pedro Costa quer registrar em película.
Ventura escreve uma carta a Clotilde na (vã) esperança de obter uma resposta. Enquanto ela não chega, visita seus filhos (os que de fato o são e os que poderiam ser, os filhos reais e imaginários), e conversa com eles.
Abaixo, trechos de uma conversa com Pedro Costa sobre Juventude em marcha realizada em maio passado, durante o Festival de Cannes.
Juventude em marcha pode ser definido como a crônica de um mundo em transformação?
Quando filmei O quarto da Vanda, Fontainhas já estava em processo de demolição. O quarto da Vanda é a crônica da demolição de um bairro, enquanto Juventude em marcha é a crônica da instalação em um novo lugar. Um processo que pode significar o desaparecimento de uma porção de coisas. Na verdade, nesse filme não tenho nada a transmitir – quem tem a transmitir são as pessoas que estão no filme, que falam de coisas muito pessoais, de pai para filho, de mãe para filha, de avô para neto. Não é uma crítica geral, tampouco é um filme sobre Portugal. Não tem nenhum tipo de mensagem. Se há alguma mensagem, ela está no lado familiar. E a crítica que está no filme é bem específica: aquelas casas construídas pelo governo foram mal construídas, mal planejadas, “têm aranhas”, como reclama Ventura, e, sobretudo, são pequenas para as famílias cabo-verdianas, que costumam ter muitos filhos.
O filme não se encaixa em categoria alguma. É impossível defini-lo como ficção ou documentário, concorda?
Juventude em marcha não é ficção. Mas também não é documentário. Ele é o que é. Não gosto de ficar a inventar coisas, não gosto nada das coisas inventadas. Não sei escrever e não gosto quando as pessoas começam a interpretar coisas escritas.
Certo, você trabalha sem roteiro. Como, por exemplo, você chegou ao texto da carta que Ventura manda para Clotilde (N. do E.: uma transcrição da carta se segue à entrevista), e que é lida repetidas vezes durante o filme?
Essa carta imagina como é que vem a um pedreiro uma declaração de amor. Este pedreiro que construiu um museu onde está um quadro de Rubens, mas que não entra lá. Ventura construiu o Museu Calouste Gulbenkian de Lisboa. Ele sabe melhor do que ninguém onde estão localizados os bancos, e tem mais direito de olhar o quadro do Rubens do que muitos que passam por ali. Rubens tem uma frase bonita: “Não pinto para o marchand da Côte d’Azur, pinto para o operário que está construindo aquela casa ali em frente, mesmo sabendo que ele provavelmente não vai querer o meu quadro”. Faço meus filmes para o Ventura, sabendo que ele – ou outros também – provavelmente não vão querer esses filmes. A carta é um pouco isso, são as coisas que ele quer e são as coisas que eu quero, combinadas. E também coisas que eu não quero, mas que tenho que aceitar, e coisas que ele não quer, mas que tem que aceitar. É importante isso: há coisas no filme que o próprio Ventura não gosta. Por isso não é nada documentário. É bom, às vezes, ter coisas com as quais você não concorda. Somos muito limitados, eu, tu. É sempre tu na relação com outra coisa – e isso é que é difícil. Ventura escreve uma magnífica carta de amor, de um homem que fala do trabalho, que está a construir paredes. É também uma carta em construção. As ligações da carta são minhas, escrevi pequenas coisas para organizar o texto, que estava disforme. E tem três ou quatro coisinhas de um poeta francês que eu gosto muito, Robert Desnos, que morreu num campo de concentração. Desnos era um representante da escola surrealista, de Paris do princípio do século, e acho que o filme tem um bocadinho um lado surrealista. Quando comecei a fazer o filme achava que não, mas agora acho que ele está bem próximo do surrealismo.
Ventura às vezes parece habitar um lugar imaginário, entre o presente e o passado.
Juventude em marcha é composto por dois movimentos. Um é o movimento do passado, outro é o movimento do presente. Um é o movimento de uma classe que já não existe, a classe operária que trabalha, dorme, come, joga cartas, vai ao parque aos domingos. E outra que é a do presente, que é a da heroína, do rap, da juventude. Essas duas forças co-existem, mas eu precisava tentar organizá-las para que permanecessem e para que Ventura pudesse viajar no tempo sem que houvesse realmente um flashback, sem que houvesse grandes choques. Queria que o filme passasse de um barraco de dois operários dos anos 40, 50 ou 60 para o quarto dos dias de hoje, procurando observar qual era o eco de uma coisa na outra.
O cinema é sempre uma relação de poder, o que fazer para esvaziar essa relação de poder?
O método da economia resolve muita coisa, quase tudo. Resolve parte da estética, da logística, ilumina muitas coisas. Outro dia fui ver um curta-metragem e fiquei absolutamente pasmo com os créditos. Era um curta-metragem de sete minutos, os créditos duravam dois minutos. Impressionante. Havia muitas funções, e, sobretudo, muitos agradecimentos. Tudo bem, mas toda aquela gente realmente não foi útil para o filme. O cinema tem um lado pretensioso, pomposo. É Marie Antoinette. É o escândalo Marie Antoinette. Ontem fiquei sabendo que a festa de Marie Antoinette em Cannes custou 900 mil euros. Meu filme custou 700 mil euros. Precisava que Juventude em marcha tivesse a cara das pessoas que aparecem no filme. Cada uma delas tem um problema, tem uma coisa a dizer, tem seu argumento. Ensaiei com cada personagem separadamente, como se fosse um longa-metragem separado para cada um. Sempre filmando tudo. Meu método não é muito diferente do Chaplin, que ensaiava filmando. Só que com o vídeo é mais barato. Faço exatamente o que outras pessoas já faziam.
No quarto da Vanda, a televisão é como uma personagem, está sempre ligada. Passa inclusive uma novela brasileira.
Vanda passa boa parte de sua vida sentada na cama em frente à televisão, para ver se passa a aflição das ressacas que ela viveu, a aflição de ter largado o vício da heroína. Passamos muito tempo ali naquele quarto a filmar aquelas cenas e muitas outras que não estão no filme. Foram dois meses, todos os dias, de manhã à noite. A televisão estava permanentemente ligada. E não havia como tirá-la dali, até porque não havia como maquiar nada. A dificuldade era mais técnica, para que o som não estivesse alto demais. Então, a presença da televisão ali é completamente aleatória. Só que, uma vez dentro do filme, as coisas começam a ser misteriosamente ligadas, a correr todas para o mesmo objetivo. Então, de repente, a TV passa uma propaganda de fraldas enquanto Vanda fala do pai de sua filha. Na verdade, a TV só fala disso: fraldas, pais, família, lixo, família, pais, fraldas, lixo. Alguma hora aquilo ia coincidir com a fala da Vanda...
Mas seu personagem central é mesmo Ventura, um homem à antiga, que parece em vias de desaparecimento.
Ventura é um homem sofisticado. Não uma sofisticação de salto alto, mas uma sofisticação de altos e baixos. Ele é um homem mais elegante do que a classe média portuguesa em geral, por exemplo. Queria registrar essa sofisticação-Ventura. Vou parecer nostálgico ou reacionário, mas Ventura é de um tempo em que existia uma solidariedade familiar maior, alguma espécie de comunidade, coisa que deixou absolutamente de existir. O mundo de Ventura vai acabar com as paredes brancas de sua nova casa, aquela espécie de brancura sem passado. Já não se vê nada naquelas paredes. A classe operária já não encontra mais trabalho, mas o desemprego tem seus aspectos bons. As pessoas com quem discutimos no filme estão desempregadas. Há uma ociosidade. Eles estão sempre à procura de emprego, às vezes arranjam, mas dois dias depois são despedidos. Com a disciplina que eu imponho nas filmagens, que é um bocado dura (foram dois anos de trabalho, seis dias por semana) eles voltam não só a ganhar dinheiro como, eu acho, voltam a pensar, a refletir. Quando eles estão a trabalhar, em trabalhos tão pesados (são pedreiros, etc), é um trabalho tão duro que é difícil uma pessoa manter-se viva. Um filme, como é uma coisa mais aérea às vezes, é um excelente momento para que pessoas como essas voltarem a sentir coisas, a ter aquela sensibilidade que eu acho que está acabando. E eu acho que eles passam isso muito bem, uma sensibilidade que não é comum. Com meus filmes queria tentar não deixar desaparecer uma sensibilidade humana. Quero documentá-la em um momento em que ela pode desaparecer.
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