quarta-feira, 26 de março de 2008

Chamam-lhe o homem que filma

Nas Fontainhas

Chamam-lhe o homem que filma

Nem documentário, nem ficção: para Pedro Costa No Quarto da Vanda é simplesmente outra possibilidade de cinema. Um filme a partir de, com e para Vanda Duarte.

Alexandra Lucas Coelho e Vasco Câmara

Durante dois anos, Vanda Duarte e os habitantes das Fontaínhas, um bairro dos subúrbios de Lisboa condenado à demolição, abriram o seu quotidiano a Pedro Costa. Não foram actores de um argumento, como tinham sido em “Ossos”. Sozinho, com a sua câmara digital, o realizador tentou, em troca, mostrar-lhes que o cinema podia ser outra coisa, sem máquinas, sem maquilhagem, “sem violências”. Pedro Costa diz que nunca se sentiu tão livre, tão se limites. “Não vejo que haja um filme mais clássico do que este”.


O que é que este filme repõe em relação a “Ossos”?

Vejo este filme como uma coisa que estava lá, que tinha de ser feita. E de outra maneira, não com as máquinas, com as violências normais do cinema que eu tinha sofrido no “Ossos”. Mas sobretudo foi pela Vanda. Um filme também se faz das coisas que não correm bem nos outros, e nos “Ossos” o que eu tinha sentido mais era o obstáculo Vanda, que tinha a ver com o obstáculo ficção. Havia uma coisa na Vanda que resistia muito á ficção. Ela põe em causa muitas coisas que hoje acho inúteis no cinema: ter ideias muito fortes antes de filmar, um argumento…
A Vanda nunca fez o que eu queria, fez sempre ao contrário, tivemos situações de tensão, nunca foi o colaborador dócil. Ela via que eu andava sempre à procura de qualquer coisa, e dizia muitas vezes que o cinema lhe parecia desinteressante feito assim. Acho que ela pensava que o cinema se dava pouco. E quando se dá pouco, fica pouco, uns fantasmas, uns espectros. Esse é o desgosto maior do “Ossos”.

Na rodagem do “Quarto da Vanda” também havia algum aparato de cinema: havia uma câmara. Como é que ela e os outros olhavam para isso?

Câmaras como a minha havia 500 no bairro. Comecei este filme assim “en douce”, sem espalhafato, sozinho, com a mochila. Passámos aí uns três meses em que a meio do dia ela perguntava: “Então quando é que começamos a filmar?”

Quando começou, o que lhes propôs?

O que “No Quarto da Vanda” tem de bonito é que não começou nem acaba. Não há um plano de trabalho, não sei dizer em que dia começou.

Mas antes disso: há um momento em que se começa a distanciar de “Ossos” e caminha para qualquer coisa que vem desse questionamento da Vanda. Propõe-lhe então o quê?

Foi a Vanda que me propôs: fazer um filme que não fosse complicado, menos horários, menos angústia, menos ficção. Propôs-me um filme como uma troca, disse-me que havia que fazer um filme perto da casa dela, que a incluísse a ela.

Havia uma vontade de ser imortalizada, fixada em imagens?

Há que baixar essa palavra, imortalidade, e pô-la ao nível do gesto. Esse grande encontro com a Vanda, essa sorte, é o do gesto. Fazer um gesto que não fosse irrisório, um gesto na vida. Tudo parece desaparecer, as imagens, os sons, mas o gesto fica. Isso é muito bonito. Eu sinto isso, Toda a gente naquele bairro sente. No fundo o resultado interessa pouco. Não é uma medalha, é uma coisa mais espiritual. Este filme tem sérias hipóteses de ficar mais tempo do que os outros.

Estabelece-se um compromisso entre si e a Vanda, e os outros. Como se fosse um pacto. O seu fim era fazer um filme. E o deles?

Eu sabia que aquilo podia dar para o torto, era uma coisa com muito poucos meios, eu estava sozinho. Só tomei consciência de que podia ser um filme muito tarde, um ano e tal depois. Andei lá a filmar não para apanhar qualquer coisa, mas para perder. Ia lá das 9h ás 22h, ou passava a noite, e já não sabia quando filmava. Talvez tivesse um aspecto missionário., uma ideia de utilidade. Detesto a ideia de que a arte é fútil, detesto. Para mim foi muito importante, se calhar foi esse o código, o segredo, que a Vanda me tentava passar no “Ossos”: que me tentasse perder mais, até ao fim, o filme tem que ir até ao seu fim. E só se encontra na rodagem. Para mim isso é absolutamente claro.
O que tentei também foi que eles tentassem esquecer o “Ossos”, esse pesadelo. Para eles se calhar foi uma festa, todas as noites camiões e camiões, sandes, sandes, sandes, electricistas, nós…Esquecer esse pesadelo folclórico que o cinema tem e passar ao patamar superior. Havia um lado de invisibilidade da câmara, sem princípio nem fim. Apesar de ser um filme narrativo – só me interessa isso no cinema, qualquer coisa que narre –, pode-se entrar e sair a qualquer momento, a meio de uma cena. Eles chamavam-me “o homem que filma”, eu estava lá todos os dias e filmava tudo o que me parecia filmável. A certa altura era esquecido, chegava, dizia bom dia, eles diziam bom dia e cada um ia à sua vida. A minha era filmar.

Este filme também nasce de um sentimento de culpa?

Mais no sentido em que se deve ganhar confiança. E mostrar que o cinema não é só uma máquina de guerra, que monta as suas fitas encarnadas e brancas, com policias, com camiões, que maquilha aquilo tudo, maquilha as raparigas, sobretudo, e passa como por vinha vindimada, hello goodbye, como na canção dos Beatles, ou dos Marx. Esse lado pedagógico tem qualquer coisa a ver com pegar numa cesta de livros e ir lá para Trás-os-Montes.

Tudo era filmável?

Não. Há coisas que não se podem filmar. Não tem a ver com pudor, mas com ser moralmente, esteticamente, politicamente irrepreensível.

Não se passa incólume por uma experiência de entrega quotidiana a um lugar. Quando se tem depois aquelas imagens todas nas mãos, independentemente das contingências da duração do filme, não há algumas que parecem filmáveis e depois se diga: eu opto por não mostrar isto. Não há esse pudor, essa protecção?

Não. Trata-se apenas de limpar o que não está bem, o que é fraco. Engrandecê-lo. Eu corto um filme para que a Vanda fique o que é, uma espécie de aristocrata, como toda a gente no filme. Há que ajudar as personagens, os actores, a narração. Digo sempre que este filme é uma possibilidade. Só percebi a posteriori que podia trabalhar a narração, o tempo. O que mais se filma hoje, as entradas e saídas das portas, os exercícios de escola de cinema, desde o Wong Kar-Wai…tudo isso é o que não filmo.

Há também um plano mais vertiginoso, seu, em relação àquele mundo. Alguma coisa quer ir beber ali.

É um mundo que se adequa muito aos meus olhos de criança. Se o filme é – como penso – uma construção sólida, é porque há algo de maravilhado, que vem de muito longe. É um mundo estético, político, secreto que se cola mais depressa a mim que outros. Uma espécie de país, de comunidade em que acredito, partilho daquelas ideias, a vida sem fronteiras. Andamos realmente ali uns para os outros, como nunca me aconteceu.

Falou-se muito a propósito deste filme de estarmos no limite do cinema. Todo o seu discurso afasta isso: é, dentro do cinema, uma possibilidade.

Não vejo que haja filme mais clássico que este. Finalmente há um detalhe, uma minúcia, um cinzelar. Não é uma coisa puramente cinéfila. Há que estar com os olhos e ouvidos muito abertos, porque tem essa simplicidade dos clássicos, simplicidade-complexidade.

E a partir daqui como é que se continua?

Este filme é irrepetível. Foi o único em que senti que não tinha limites. Nos outros, eu, a equipa, os actores, tudo concorria para que fossem limitados.

O filme encontra a sua razão de ser dentro dele: a Vanda, aquele lugar. É possível regressar mais uma vez a esse lugar?

Não sei. Agora a barra está um bocado alta. Há uma exigência de luta contra o cinema-produto. O próximo virá de um amor louco por uma coisa. Os filmes não me caem do céu. Sempre foi difícil, nunca fui um cineasta rápido. Agora é mais difícil: os planos de rodagem, de produção causam-me um grande desconforto. Por aí, não tenho grandes chances. Não vejo que o sistema esteja pronto a dar-me o subsídio. Tenho de encontrar uma maneira de produzir, mais do que um assunto.

Que Vanda é esta que não estava em “Ossos”?

Eu passava pela Vanda todos os dias na preparação do “Ossos”. Era a única que via aquilo com alguma ironia e desprendimento – sarcasmo, às vezes. Eu sentia muito essa descrença profunda. Essa coisa mete medo: confrontar alguém que tem uma vontade louca, uma espécie de cegueira, que era eu. Andávamos para ali a tentar construir, tudo o que não nos agradava deveria ser pintado, maquilhado…É muito saudável haver uma desconfiança de base em relação ao cinema.
Acho que este filme tem um lado “talk show” muito evidente, com as pessoas que se defendem e atacam e acusam sem destinatário, de frente para o espectador. O gesto de fazer o filme mostrou-me que este pequeno teatro, este tribunal, está na vida. É um filme muito uno entre o teatro que a vida tem e o cinema que eu dantes tinha. E, se se vir bem, o cinema está muito mais do lado dos rapazes e o teatro do das raparigas. Filmei os rapazes mais fragmentados e as raparigas mais no tempo.

A Vanda domina o seu espaço como se dominasse a cena.

Os rapazes estão a tentar organizar-se em espaços sempre novos, e ela tem não só uma casa, a mais antiga do bairro, mas uma família. Na montagem, percebemos que há um momento em que ela lança o filme para a sua segunda metade. É ela que controla tudo.

Público, Suplemento Y, 2 de Março, 2001