por Eduardo Prado Coelho
1. Ao apresentar o seu primeiro filme, "O Sangue", no Festival de Cinema d'Aix-en-Provence, Pedro Costa desconcertou os espectadores ao dizer que só lhe interessava falar de "Casa de Lava", a obra que tinha acabado de realizar. E disse mais: que o segundo filme tinha sido feito contra o primeiro, contra aquilo que o primeiro tinha de demasiado romântico. Podemos perceber até onde Pedro Costa quer chegar; de certo modo, a experiência de filmar em Cabo Verde, com cabo-verdianos, a partir da terra, da paisagem, dos rostos, da nudez e do despojamento, de Cabo Verde, não pode deixar de provocar um sentimento de ruptura radical. Contudo, entre os dois filmes há uma continuidade evidente, não apenas na energia do investimento Obsessivo e feroz que qualquer deles manifesta como em múltiplos planos formais e temáticos (a começar, como o próprio autor reconhece, pela questão da morte e das formas de circulação da morte). A diferença é outra: "O Sangue" é um filme extremamente interessante, mas de configuração irregular e por vezes ainda experimental. Quanto a "Casa da Lava", dificilmente podemos falar nestes termos: estamos perante uma obra-prima do cinema português contemporâneo - um filme denso, pleno, coerente, certeiro, fulminante.
2. Talvez seja útil começarmos por situar as coisas. As primeiras imagens são de um filme de Orlando Ribeiro sobre o vulcão da Ilha do Fogo. Depois, aparecem, silenciosos, imóveis, os corpos e os rostos de algumas mulheres cabo-verdianas. Só então o dispositivo narrativo se move, e estamos em Lisboa, em plenas obras de construção civil, com trabalhadores negros. Um deles olha, pára sobre si próprio na fixidez do olhar, e, dizem, cai: chama-se Leão (nenhum nome nasce por acaso), o Leão vai em coma para o hospital, e depois chega uma carta anónima de Cabo Verde, uma carta e um cheque, para que ele regresse, e o Leão regressa a casa. Acompanha-o a enfermeira que se ocupou dele no hospital, Mariana (Inês de Medeiros, numa interpretação absolutamente extraordinária).Viajando num avião militar, que descarrega o doente em estado de total inconsciência e um caixote de medicamentos, Mariana descobre por entre fumo, o silêncio nu, a pedra quente, os cães esfomeados, a terra cabo-verdiana. É nela que vai ficar, como o fio vivo que suspende Leão na queda da sua interminável morte, por um tempo que se disse ser de sete dias, mas que se alarga de um modo indecifrável. Mais tarde ela explica que aqui não há maneira de uma pessoa se orientar, "logo que cheguei perdi-me". Adivinhamos facilmente que este filme nos mostra uma terra perdida, uma terra de perdição, e, no sentido mais rigoroso do termo, um amor de perdição. E assim importante que se diga que a entrada no tempo-espaço cabo-verdiano é um longo e alucinado processo de desfiguração - que termina no momento em que Mariana lava a cara e muda de vestido (e a partir da altura em que os próprios habitantes parecem querer que ela abandone a ilha).
3. Em Cabo Verde, o filme avança segundo uma lógica narrativa algo perturbante (embora extremamente rigoroso na sua mecânica), o que está de acordo com a própria situação de Mariana; ela tem de aprender a caminhar sobre esta terra (aliás, a imagem dos pés que tocam a terra é recorrente, muitas vezes magicamente acompanhada de um prato com fruta no chão), e para isso no mercado lhe sugerem uma sandálias para andar nos caminhos vulcânicos, ou o velho músico a ensina a descalçar-se "porque a terra está quente"; mas ela vai confrontar-se com um estranho espaço em que fica abolida a diferença entre o interior e o exterior (as casas estão permanentemente abertas, as camas do hospital parecem estar em plena rua, embora Mariana tente fechar todas as portas e janelas); e vai sobretudo dançar entre múltiplas personagens - porque a questão da dança, e a lógica que se imprime através do ritmo da música, são neste filme fundamentais.Os tontos da nossa paróquia irão mais uma vez dizer que o argumento está mal construído porque não conseguem reconhecer as etapas pré-programadas em que eles aprenderam a soletrar o b-a-ba das narrativas.A observação é rigorosamente descabida. A questão está em que Mariana se move no interior de histórias que já aconteceram e poucas vezes consegue escapar ao enredamento de um passado que a cada passo desfoca a inteligibilidade do presente. O que há de deslumbrantemente enigmático nesta progressão resulta deste sentimento de que os rostos se confundem, os itinerários se dispersam, os caminhos se desencaminham, os rituais se celebram, e a um tal ponto que Mariana parece cada vez mais refém da terra onde desembarcou. Neste ponto, e segunda essa mesma lógica em que tudo existe simultaneamente num antes e num depois, Mariana repete, sob o peso de uma espécie de fatalidade fascinante, o percurso de Edith - a mulher estrangeira que um dia chegou para acompanhar um prisioneiro português do Tarrafal, e que ficou em Cabo Verde, como que habitada por uma sageza secretamente delirante que lhe permite só falar crioulo e ser aceite por todos. Desde o início que ela pressente que a mesma espécie de obsessão que a ligou absurdamente ao destino de Leão, esse negro silenciosamente sinistrado nas obras de Lisboa, tem algo a ver com as razões que levaram Edith a ficar na terra cabo-verdiana; uma relação cega com um corpo e um lugar. O que ela vai aprender é que a relação de Edith com Cabo Verde não se pode repetir, porque Edith chegou sempre antes à terra onde Mariana aprende a chegar, e tocou desde sempre o corpo que ela, Mariana, descobre que desejaria tocar.Esse é um dos aspectos mais interessantes deste filme; a questão dos nomes e do anonimato. Porque nada explica, a não ser a ideia de que é preciso aceitarmos a inexplicabilidade das coisas essenciais ("Se não me compreende, eu também não o compreendo"), que toda a gente conheça o nome de Mariana antes de Mariana chegar a Cabo Verde. A evidência com que o nome antecipa aquela que esse nome nomeia tem certamente a ver com uma espécie de transparência impossível em que tudo o que acontece parece ter acontecido numa anterioridade mítica desse acontecer - sem que isso lhe retire uma banalidade ostensivamente pedestre. Mas tem ainda a ver com o grande tema deste filme, a circulação ininterrupta (dança, Mariana, dança) entre o espaço dos vivos e o espaço dos mortos; entre o nome precário e o anonimato sem fim. Porque, como diz uma das personagens, "quem tem medo dos mortos tem medo dos vivos" (Mariana para Leão:"conheço-te vivo e morto").Mas disso falaremos mais tarde. Sabendo que (para nós como para Mariana) será sempre demasiado tarde. Do que foi antes só se consegue pensar o depois desse antes."
Público, 28/01/95