segunda-feira, 17 de março de 2008
«Sob as cinzas
por Manuel Cintra Ferreira
Casa de Lava chega ao público. Na antecipação do acontecimento foi lançado algum fogo de barragem. Apesar de tudo, e independentemente dos termos em que foi "disparado", trata-se de uma promoção necessária. Chamar o público através da polémica pode ser bom para um filme, principalmente quando se trata de uma obra difícil, que requer alguma disponibilidade por parte do espectador, num tempo em que este se limita a consumir e esquecer. Mas também pode empolar a própria obra e criar uma expectativa que não corresponde ao que o espectador vai encontrar, acabando por funcionar negativamente, o que o trabalho de Pedro Costa não merece.
Um filme como Casa de Lava necessita de tempo e de reflexão. Não tanto pela complexidade da história (que, no fim de contas, é aparente, podendo ser resumida de forma inteligível, em poucas palavras, como outro filme tão complexo como este e com a qual muitas afinidades irão ser encontradas - Stromboli, de Roberto Rosseilini), mas pela forma como ele está construído: onde cada plano parece ter um sentido isolado do conjunto e outro quando nele integrado. Uma só visão parece não ser suficiente para se entender este estranho jogo a que Pedro Costa se entrega: contar uma história que é tanto a sucessão límpida das sequências e planos (a viagem de regresso de um trabalhador cabo-verdiano acidentado e as descobertas de uma enfermeira que o acompanha), como a soma de uma série de imagens e personagens aparentemente desconexas e desligadas umas das outras (as poderosas imagens do "vulcão em actividade, o trabalho do cabo-verdiano no Chiado, a mulher auto-exilada na ilha do Fogo e o seu filho).
Ora, de facto, encontramos uma corrente que percorre da mesma forma todas estas sequências, todos estes planos, dando-lhe uma homogeneidade de que só com o tempo e a distância nos apercebemos, exactamente o que acontecia com O Sangue, cuja pista, como neste, se encontra pó título. Essa corrente é feita de cinza, de restos e destroços, embora sob essa camada o primitivo magma permaneça em actividade, pronto a surgir por entre as fissuras.
A lava das imagens iniciais, numa montagem que a assemelha à pulsação do sangue (ligando Casa de Lava ao filme anterior) dá lugar às cinzas do Chiado, onde trabalhadores cabo-verdianos reconstroem a forma "primitiva" de vida. O acidente que o negro sofre remete-o para uma condição vegetal (coberto de cinza), da qual só irá despertar muito depois de ser levado para a sua terra natal, numa espécie de ressurreição. O "sangue" de novo? Na verdade, a enfermeira (Inês de Medeiros) vai ser a fonte,de vida do regressado (Isaach de Bankolé), transportando primeiro o soro, velando depois o seu sono. E é neste processo que ela se toma a personagem dominante do filme, ela também descobrindo a cinza que a cobre e, a pouco e pouco, dela se libertando. Este processo, esta libertação, faz-se, por um lado, com o encontro com a mulher que escolheu ficar, com o filho, depois de morto o marido, condenado ao degredo naquela terra desolada, de cinzas coberta. E faz-se, também, com a descoberta da terra. E é neste campo que Casa de Lava se aproxima do já referido Stromboli: o paralelo feito entre a paisagem geográfica e a da alma, fazendo com que a compreensão de uma passe obrigatoriamente pela da outra. A aridez e desolação não implicam necessariamente o fim. Por baixo delas a vida germina, pronta a eclodir. O que distingue os filmes é aquilo que me parece ser a terrível ausência de Deus no filme de Pedro Costa, que se opõe à revelação da Graça no de Rossellini."
Expresso, 11/02/95