por João Lopes
Pedro Costa
Cineasta
Nasceu em Lisboa, em 1959, tendo assinado a sua primeira longa metragem, O Sangue, em 1989. Juventude em Marcha encerra uma trilogia rodada no Bairro das Fontainhas (Amadora), após Ossos (1997) e No Quarto da Vanda (2000)
Com o documentário Onde Jaz o Teu Sorriso? (2001) - em que acompanhava Danièle Huillet e Jean-Marie Straub durante a montagem do seu filme Sicília! (1999) -, Pedro Costa condensou a moral do seu olhar: envolver-se visceralmente com a vida, a ponto de mostrar que qualquer documento é sempre uma forma ficcionada de revisitar o que se vive (ou imagina viver). Depois de Ossos e No Quarto da Vanda, Juventude em Marcha é a confirmação plena de tal atitude. Trata-se de filmar o Bairro das Fontainhas como um lugar paradoxal: um mundo fechado e uma infinita galáxia humana.
Juventude em Marcha não é um documentário nem uma ficção. Como o podemos definir?
É também a minha questão. Normalmente a pergunta é: "Isto é um documentário ou uma ficção?" De Ossos para No Quarto da Vanda, houve uma atitude reactiva: sentia que não podia continuar a filmar da mesma maneira e, por vontade da Vanda e outros, fui ficando por razões de amizade e atracção mútua.
Para essas pessoas, trabalhar num filme terá sido também uma maneira de contar a sua história?
Sim, claro. O filme parte da mudança para outro bairro. E assim que vi o Ventura, senti que ele podia ser uma figura antiga...
Antiga em termos cinematográficos ou no plano social?
Ambas as coisas: como o Henry Fonda, que, no limite, se pode apagar no meio dos figurantes, sem deixar de ser uma personagem errante que transporta todo um passado - o Ventura, por assim dizer, carrega com ele o bairro todo.
E como chegaram à ideia do Ventura como figura paterna?
Descobri no Ventura alguém que nos iria permitir esse vaivém entre passado e presente. Ele chegou a Portugal em 1971, vivendo sozinho até 1977, juntando dinheiro para ter uma barraca e mandar vir a mulher de Cabo Verde. Foi dele a ideia de muitas mulheres na sua vida e, nessa medida, também dos "filhos" que iria visitar. No fundo, não é muito diferente de alguns westerns de série B. Digamos que uma parte é documental, mas eu não sei qual [riso].
A rodagem foi muito longa?
Dois anos. A oposição ficção/documentário dilui-se. O filme acaba por ser uma memória do que foi acontecendo: por exemplo, a filha da Vanda não existia no começo e aparece no último plano do filme.
Nessa medida, o filme tem também algo de autobiográfico?
Talvez. Ao fim de quatro meses, lembrei-me de perguntar a idade do Ventura: 48 anos. Na altura, eu tinha 45 e via-o como um homem de 60/65 anos. Fiquei abismado. Percebi que conhecia Lisboa melhor que eu. E comecei a ligar as coisas: 25 de Abril, Escola de Cinema, Bairro Alto... Um ano antes de eu entrar na escola, o Ventura estava perto do Bairro Alto: eu vivia no Príncipe Real e ele na Praça da Alegria, numa caserna das Construções Amadeu Gaudêncio. É provável que me tenha cruzado com ele. A partir daí, foi como se, no filme, eu quisesse passar coisas para ele.
Que coisas são essas?
São coisas do tempo da saída da Faculdade de Letras, da entrada na Escola de Cinema: o 25 de Abril, o punk que chegava de Londres, a descoberta dos filmes na escola, mas também na Fundação Gulbenkian com os ciclos do João Bénard da Costa. Tudo vivido numa grande solidão, dos 14 aos vinte e tal anos, pelas ruas, com um grupo de rapazes e raparigas... A certa altura, percebi o risco de um filme destes, sem guião. Mas é também filme feito com muita fé.
Que tipo de fé?
Há no filme uma fé no Ventura... Não sei se na personagem ou na pessoa. Nem sei se ele e os outros são realmente pessoas ou fantasmas - ou se é a mesma coisa. O que sei é que, todos os dias, sentia que tinha de estar à altura do Ventura.
Será uma figura angelical?
Há momentos em que o Ventura é um anjo negro que transporta uma sombra do passado. Por exemplo, na Gulbenkian, pedi-lhe para escolher um quadro e ele escolheu o que está no filme: Fuga para o Egipto, de Rubens. Seja como for, acho que está a olhar, não para o quadro, mas para a parede - foi ele que a construiu.
E como poderá ser a relação do filme com os espectadores?
Vivemos num país a sofrer o embate da televisão e desse verdadeiro electrochoque a que deram o nome de "ficção portuguesa". Vai-se muito pouco ao cinema. Vai-se, sobretudo, de forma muito distraída, porque se vai jantar ao centro comercial. Poucas pessoas vão ver um filme por, realmente, quererem ver esse filme.
Nesse sentido, não é um problema específico do cinema português.
Não, não é. E isso não envolve nenhum juízo sobre os filmes: os espectadores estão na sala e é como se estivessem na telenovela. A telenovela não está no ecrã: os próprios espectadores é que estão na telenovela. Em Portugal, pelo menos, é assim.
A telenovela é uma máquina de normalização?
Normalização e esquecimento.
Diário de Notícias 26.11.06