ELOGIO DA DISSIDÊNCIA
João Botelho – Eu assisti à rodagem do Amor de Perdição e era um pesadelo. Ninguém podia imaginar o que ia sair dali... No que diz respeito ao trabalho e à sobrevivência das pessoas, hoje a situação melhorou. O Sr. Oliveira contra todos! Ninguém queria produzir o Amor de Perdição. Demorou três anos em condições insuportáveis. O Cinema português era, na altura, uma coisa fechada. Por mais que se falasse em marcas de internacionalização…eram mentiras piedosas. Apesar das liberdades democráticas (1975 a 1978), de alguma atenção que havia em relação a novas formas de trabalho e criação…O pesadelo do Oliveira eu nunca o tive. Já tive alguns pesadelos: uns pequeninos, outros médios, mas um pesadelo como aquele não. E no entanto, o Amor de Perdição é um dos grandes filmes do Oliveira e de todo o cinema português. Na mesma altura, também o Reis e a Margarida sofriam...daqui para ali… a tentar fazer imagens e sons. Hoje, as dificuldades são menores. O grande problema é que se criaram expectativas enormes sobre o cinema português, que são frustradas por uma racha aberta pelos comportamentos ambíguos dos políticos, que querem dar uma imagem interna do cinema como divertimento e, ao mesmo tempo, querem ter o prestigio que o cinema português foi alcançando, à custa de autores como o Oliveira ou o Reis. Porque há uma coisa que nos distingue em relação aos outros: em Portugal ainda não há – felizmente, mas não sei por quanto tempo – o peso insuportável das regras de mercado. E outra, que não tem preço: a liberdade com que se trabalha. Embora pouco a pouco a tentem cortar, eu ainda sou responsável, nos meus filmes, por tudo o que de bom e de mau há neles... Agora, é evidente que não é fácil: quanto mais violento é independente um cineasta mais as portas se fecham. Há uma tendência, há uma corrida para destruir essa liberdade, embora a única verdadeira censura seja a económica...
João Mário Grilo – Mas vocês não acham que a língua funciona como uma defesa?
João Botelho – Não sei... já me passaram muitas coisas pela cabeça. Houve uma altura em que eu achava que havia um modo de produção português, que fazia com que eu estivesse mais ligado, por exemplo, ao Oliveira do que a um cineasta estrangeiro. Hoje, tenho dúvidas. Calhava em Portugal serem as condições de produção desta maneira: dificuldades económicas, dificuldades de mercado. Estávamos todos lá. Porque a verdade é que se o dito cinema comercial português funcionasse mesmo, nós desaparecíamos. A única razão que determinou e determina que o peso artístico seja sempre maior do que o peso comercial é simplesmente o facto de não haver mercado interno para absorver o investimento financeiro de um filme. Mas isto não é só português, é de todo o cinema europeu. É certo que há marcas no nosso cinema que têm a ver com o modo de produção, a maneira como se faz e o poder que ternos perante o trabalho. Há ainda um grande controlo do realizador sobre o trabalho e a criação, o que dá produtos estranhos, diferentes, fora dos formatos.
João Mário Grilo – Mas eu estava a falar da língua, porque o facto de se filmar em português tem imediatamente um efeito que é defender o cinema de certos factores de pressão comercial como, por exemplo, as vedetas internacionais...
João Botelho – Mas não há estrelas em lado nenhum. Na Europa, as estrelas são futebolistas e modelos. Nos Estados Unidos, não. Há filmes com grandes (?!) estrelas europeias que são autênticos fracassos.
Pedro Costa – O mercado aguenta-se mesmo sem estrelas. Tanto os produtores como os espectadores esperam que os filmes “se tenham nas canetas”! Um filme existe quando é reconhecido no ecrã. Até o crítico mais medonho diz: “Ah! isto é um filme!”. 99% dos filmes feitos no mundo inteiro têm pernas para andar, sabem para onde vão. Volto ao Amor de Perdição. Perdição... é o que falta aos 99%. Quanto ao amor, é melhor nem falarmos... Os filmes portugueses que nos tocam foram todos fulminados por essa maldição. Como disse o João, “o pesadelo do Oliveira”. E há os “naufrágios” do Paulo Rocha, os “eclipses” do António e da Margarida e outras quantas catástrofes mais pequenas. Dizem-me: eram produções absurdas, impensáveis, más gestões, orçamentos ridículos, inexperiências. Serão. Mas o que eu vejo é a tensão entre o dinheiro e o pensamento livre, a luta com as formas, vejo o cinema... O Amor de Perdição, Trás-os-Montes, A Ilha dos Amores são poços de energia, não são montanhas de dinheiro. Um filme exige concentração, trabalho, intensidade. É terrível o dispêndio do sistema de produção corrente, a dispersão, os empregozinhos das equipes de cinema. Não sei que diga. Considerem-me um inimigo.
João Botelho – E é isso que explica os nossos problemas com os produtores. Eles funcionam como os transmissores dessa corrente de estabilidade do “socialismo consumista”. Hoje os produtores forçam as equipas a terem um certo desenho, um certo número de pessoas. Ficamos sozinhos com 35 pessoas às costas, quando devíamos ter muito menos gente e muito mais tempo de filmagem. É isso. Ninguém quer saber o que é que tu estás a fazer. A regra dos políticos, do ministro da Cultura, é a regra dos consensos, com um discurso diferente para cada um de nós, mas que depois é todo nivelado por baixo, ao nível do menor denominador comum. Obrigam-te a trabalhar dentro desses moldes. Se no meio de tudo isso vierem distinções internacionais - oh!, que bom, que venham! Se vierem sucessos internos – oh! que bom, que venham! Não fazer ondas...é o que o Governo socialista faz.
Pedro Costa – Os socialistas pregam a cultura do diálogo. Ora, não me parece que os bons filmes portugueses queiram dialogar com quem quer que seja. Pela minha parte, falo pouco e só com quem quero.
João Mário Grilo – O Governo socialista é o governo da comunicação... do dogma da comunicação.
João Botelho – Por vontade dos socialistas nós não fazíamos filmes. Porque criamos problemas. Tu filmas dentro de uma prisão, ele filma dentro de uma prisão…de um bairro que é uma prisão; tudo ao contrário do que se podia imaginar da sedução dos pobres. Eu fiz um filme anti-regime; fiz um filme de agitação. E então eles põem-se a pensar: estou aqui eu a pagar (ainda por cima pensam mal, porque o dinheiro não é deles, é das taxas, da publicidade…é a Coca-Cola que nos paga... eles só administram)...qual é o interesse do governo em estar a pagar filmes que colocam problemas ao próprio governo? A arte não é inocente; é uma questão de ponto de vista. Os nossos filmes têm um ponto de vista. Eles preferiam que nestes filmes não houvesse ponto de vista, que fossem coisas de puro entretenimento, à imagem dos programas estúpidos da T.V O cinema das audiências. A verdade é que nenhum dos ditos filmes portugueses de entretenimento interessa a qualquer um dos meus três filhos, que são espectadores normais de cinema. Porque, patetice por patetice preferem os americanos, que são patetas grandes. E esquecem-se que um filme desses rebentava com o orçamento de dez anos de filmes portugueses! Portanto, isso é tudo um equívoco monumental. E não têm coragem de assumir o cinema português como um dos últimos redutos da arte cinematográfica. Esta gente só se aproveita do que vai acontecendo…O primeiro-ministro por exemplo, que disse à Associação de Realizadores cobras e lagartos do Sr. Oliveira e que de repente aparece depois do prémio de Cannes a agradecer ao Sr. Oliveira o grande prestígio internacional que trouxe para o país. È a politica circunstância. Por vontade dele, no íntimo, o Sr. Oliveira nunca teria filmado a porra de um metro de película. O Reis teve o maior desprezo possível…e era um grande cineasta. O Reis era um OVNI que andava por aqui, a tentar fazer uns filmes, mas era um tipo que era totalmente desprezado. Agora, apesar disso, eles têm de nos engolir de vez em quando. Como os filmes respiram essa liberdade (não a liberdade económica, porque aí, sim, há censura), os filmes acabam por ter a grandeza das coisas que o dinheiro não paga: a grandeza da durée, do tempo (que já desapareceu praticamente de todo o lado) e da composição. Não há dinheiro para filmar a acção, mas há tempo para luz, para a composição. E nós sabemos fazer isso. Gostamos de poesia, gostamos menos de prosa...
João Mário Grilo – Mais de crónica, menos de romance...
João Botelho – E sobretudo a capacidade de filmar ideias... Agora, o governo acha que filmar ideias é uma chatice. Aliás, pensar começa a ser um crime! Os filmes sem ideias, sem as saber filmar não existem. Há uma relação terrível dos políticos e das pessoas que gerem o dinheiro com a arte cinematográfica.
João Mário Grilo – E isto vai em que sentido?
Pedro Costa — É perguntar aos professores da Escola de Cinema…que desviam os olhos quando reconhecem o jovem apaixonados que eles um dia foram. E aos broncos das televisões públicas e privadas. Aos ministros e aos políticos que promovem os negócios dos poderosos e matam à nascença os pequenos produtores e os primeiros filmes. Restam os casos: um rapaz, uma rapariga. Conheço alguns. Ficarão sozinhos e perdidos. Não farão as publicidades. Vão viver com pouco dinheiro. São uns selvagens. Não vão ter estabilidade profissional, nem mais saídas, nem encomendas nenhumas. Não vão acreditar que “o cinema é uma linguagem e tem a sua gramática”. Tem os seus riscos e é um trabalho feito passo a passo. Eu tenho fé. A juventude tem sede de sangue.
João Botelho – Neste momento há dois ou três produtores que controlam todos os filmes que se fazem e há uma data de pequeninos que são imitadores desse sistema. A ideia de inventar um novo modo de produção, para fugir a tudo isto, vai ser contrariada. Por exemplo ninguém está interessado em produzir filmes baratos, porque os produtores – como toda a gente sabe – ganham à cabeça. Quanto maior for o orçamento de um filme, mais eles ganham. Porque eles também sabem que o mercado não funciona para eles. Se tu quiseres fazer diferente e mais barato, não lhes interessa. E esses produtores lutarão sempre pelo sistema que têm na mão. Não vão largá-lo...
Por outro lado, é sinistro o que está a acontecer com a entrada dos meios audiovisuais, isto é as televisões, na produção…A vontade de uma televisão privada como a SIC é também fazer filmes para as salas. Há um sistema de regras que foram criadas para proteger a arte cinematográfica que estão agora a ser aproveitadas para o negócio. E isso é grave! O Instituto Português de Cinema foi inventado nos últimos tempos do Marcelo Caetano para defender o cinema nacional. Uma coisa de direita, etc., mas para defender o cinema nacional. Foram inventados subsídios a fundo perdido para filmes, porque nós não temos mercado. Temos uma língua que não tem mercado. Nem no Brasil. Falamos tudo ao contrário. Os brasileiros falam com vogais, nós falamos com consoantes. Na Africa de expressão portuguesa é de pão e de paz que eles precisam...não de filmes portugueses... e os emigrantes são a gente mais reaccionária que há no mundo, como são todos os emigrantes. Portanto, o mercado é pequenino... e o Instituto foi feito por não haver mercado. Neste momento os tubarões vêem ali uma maneira de ir buscar dinheiro, de ganhar dinheiro à custa de uma ideia de arte cinematográfica. E é por isso que desapareceu a arte e o cinema da designação do instituto de cinema (de Instituto Português da Arte Cinematográfica e Audiovisual para Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia). Não tem português nem arte. Enquanto conseguirmos pela estranheza e pela liberdade dos nossos filmes, eles vão ter de ceder um bocado. Temos de continuar a dar-lhes trabalho. O que o Pedro diz, e tem toda a razão, é que não é fomentada nos jovens essa ideia de liberdade e de invenção... Querem as coisas o mais anónimas possível. Falam em eficácia e em sucesso, em vez de arte e de ideias.
João Mário Grilo – É como se houvesse um complot da ignorância. Isto porque as pessoas têm três, quatro anos na vida em podem tomar contacto, a sério, com uma série de grandes obras, que depois podem proporcionar um mapa da história do cinema. Estou-me a lembrar dos grandes ciclos que a Gulbenkian e a Cinemateca organizaram e que fizeram a cabeça de toda uma geração: o Griffith, o Rossellini, o Ford... Isso nunca mais se repetiu.
João Botelho – E o Ozu e o Hitchcock, e os ciclos do cinema americano dos anos 30, 40 e 50. E a Cinemateca e os cineclubes. Isso desapareceu. Há um complot da ignorância, isso é evidente. No outro dia vi a capa de um livro: A Era do Vazio. È isso. As pessoas não sabem nem querem aprender. Os críticos hoje falam em função dos best-sellers e dos sucessos. Não falam em função da história do cinema. Não aprenderam o cinema a ver... Eu sou do tempo em que os críticos falavam de cinema porque o tinham visto e sabiam a história do cinema. Falavam de ideias e de formas. Hoje em dia falam das metáforas e de conteúdos. Ninguém te descreve um plano.
Troco tudo por um novo modo de produzir. Troco tudo por um novo conceito. Já não é mais a resistência que nos deve unir. Juntemo-nos na dissidência.