sábado, 22 de março de 2008

«Do Sangue à Lava

por Eduardo Prado Coelho

1. O filme de Pedro Costa, "Casa de Lava", começa com imagens do vulcão da Ilha do Fogo filmadas por Orlando Ribeiro. É um começo que nos diz o começo de tudo-inscrição de uma violência abstracta, que, pouco a pouco, por sacões introduzidas na própria imagem, é a música dissonante de Hindemith, nos deixa ver a claridade do mundo e a nitidez do dia. Julgo que Pedro Costa aponta nos títulos dos seus filmes para uma intensa fascinação por formas primitivas e viscerais da matéria, energias grumosas e nocturnas, que trazem do interior do caos e da morte a força da própria vida-mas uma força que excede e transborda da consciência extenuada dos seus actores. E assim que se traça o percurso do sangue à lava. E, neste segundo filme, o título irá justificar-se, se tal fosse necessário, numa frase suspensa de uma carta que Mariana encontrará na casa de Edith: "a pequena casa de lava que tu...".As imagens seguintes são corpos, rostos, nucas, mãos e olhares de habitantes de Cabo Verde. O silencioso enigma destas presenças vem de uma espécie de visibilidade queimada que as recorta na dureza da paisagem. São corpos de uma memória anterior ao próprio pensamento: como Diz Daniel Sibony (no seu belo livro sobre a dança, "Le Corps et sa Danse", Seuil, 1995), "o espantoso é que um corpo seja sempre portador do desejo de uma história". Estes corpos estão mais perto da imobilidade das origens do que do movimento dos enredos, mas o desejo já se lê neles como uma opressão, um entendimento calcinado e tácito, uma crepitação crescente.
Pedro Costa reconduz-nos sem aviso a uma cena que se passa com os operários da contrução civil numa obra de Lisboa - mas a diferença salta à vista. Embora imigrantes, estes trabalhadores têm já uma gestualidade de grupo urbano. E é no meio dela que o olhar do Leão, protagonista desta história, nos prende de súbito aos olhares do início: a mesma resignação, a mesma dor infinita -, e por isso, apenas por isso, e pela mudez do mais triste amor, cai: o Leão cai. Reencontramo-lo no hospital, deitado, em coma, ausente de si mesmo. Perto dele, Mariana (a espantosa mês de Medeiros).
E preciso fazer notar que Pedro Costa tem a extraordinária inteligência de introduzir os restos de uma outra história no curso ainda indeciso desta que se inicia. Porque quando Mariana se inclina para olhar não sabemos quem uns braços se levantam para se agarrarem a ela - como quem se agarra à vida num gesto derradeiro. Esta cena irá de certo modo repetir-se quando Leão, o "morto" (como os outros lhes chamam), se levantará de noite para puxar para si o braço do rapaz que dele se aproximava. São momentos de convulsão em que a morte afirma os seus direitos sobre a vida-parece mais viva do que a própria vida, por uma obscura ligação primeira ao sangue e à lava. Antes de deixarmos o hospital, a história desta mulher moribunda (Isabel de Castro) irá regressar por instantes: é o rosto de um cadáver e um lençol branco que o cobre-algo tão breve que qualquer espectador distraído poderá esquecer, mas que é um pouco a experiência que inicia Mariana no conhecimento da morte, e a invisível porta de entrada deste filme.
Ainda nesta fase devemos sublinhar outro ponto. Diante de nós, deitado, voltado para o lado da sua morte possível, o Leão. À direita, o médico: Luís Miguel Cintra, numa voz calafetada e espessa, traça o retrato clínico e humano da vítima (o Leão caiu, o Leão não quis viver, o Leão volta a casa, talvez a terra lhe restitua o desejo de vida, a medicina é aqui uma ciência demasiado humana e supérflua); à esquerda, Mariana. No centro da imagem, uma sombra, uma nuca, uma cabeça - como uma barra nocturna a remeter para um mundo especial (vai haver ao longo de todo o filme uma "Morna das Sombras"). Esta imagem repercute uma das duas obsessões (deverá haver outras) do filme: filmar pessoas de costas, imóveis, nucas curvadas, embebidas numa solidão muda, e mostrar pés anónimos que tocam a terra (por vezes, um prato com fruta ao lado).

2. Algumas vozes o dizem: aqui, nesta terra de Cabo Verde, até os mortos dançam. E a cabeça do "morto" ri, é mesmo a que ri melhor. Porque o filme de Pedro Costa é acima de tudo uma aproximação magnífica dessa zona intermediária e crepuscular em que a morte salta como uma fera para o lado da vida e a vida se deixa modelar pelos mais inesperados figurinos da morte. Estamos numa obra de foronteira e contrabando com guardas fictícios, cães de olhos infernais, silêncios queimados e cintilações fulgurantes. Por vezes o excesso das incursões arrasa as personagens. Quando o médico tenta abrir um olho do Leão, para tentar surpreender alguns sinais de vida, Mariana, afirmando que a partir de agora se vai ocupar inteiramente dele, imita-o com um olho fechado e outro aberto, e parece que o seu corpo se desequilibra, ela cai, a cabeça encostada ao chão, absorta, prestada pela imensa fadiga daquilo que viu (e não viu).
No final o filho de Edith (Pedro Hestnes), personagem sem nome, hesitante e incerta dos seus lugares no mundo, leva Mariana ao cemitério onde está o corpo do prisioneiro que Edith acompanhou no Tarrafal. Tem antes de partir um gesto insólito: pega na fotografia que está sobre a cruz da sepultura e muda-a para a cruz que se ergue onde talvez esteja o cão morto. Nesta atitude ele parece querer dizer-nos que o grande princípio do reino das sombras é o do anonimato generalizado, em que tudo é reversível e permutável, em que nada hierarquiza o vegetal, o animal e o humano - é a zona fervilhante da lava e do sangue. O que o filme pouco a pouco nos transmite é que o amor só é possível como travessia desta matéria inominável: se Mariana deseja Leão porque ele emerge da face da morte, isso vai levar o filho de Edith a perguntar-lhe: "Será preciso que eu morra para que gostes de mim?"
A força da terra cabo-verdiana resulta da convergência de três realidades. Em primeiro lugar, da circularidade obsessiva de uma música que move os corpos na repetição algo espectral de uma alegria resignada e que é apenas a sabedoria antiquíssima do entre dois da morte e da vida. Neste ponto, o contraste com Hindemith é particularmente elucidativo. Em segundo lugar, pela forma de se instituir o silêncio no interior de qualquer fala: Mariana vem de um mundo em que as palavras saem das palavras e continuam noutras igualmente tagarelas, enquanto em Cabo Verde ela tem de confrontar-se (mesmo no caso de Edith, ou sobretudo nele) com uma fala que se arranca à matéria do silêncio e se inscreve nos intervalos da morte propagada: todas as respostas são oblíquas, crípticas, reticentes. Em terceiro lugar, o olhar destes rostos é o de uma passividade interminável, o que os situa na mais dolorida distância de si próprios: mas na medida em que todo o desejo é a distância tomada sensível, esta passividade é o próprio corpo da passionalidade. E aquela que dança, como Mariana aprendeu a dançar, caminha sobre a terra de uma paixão infinita: há o vestido vermelho de uma rapariga deitada que retoma a imagem primeira do vulcão aceso."

Público, 04/02/95