quinta-feira, 13 de março de 2008

Da vida dos espectros

por Carlos Melo Ferreira


“Transe”, o último filme de Teresa Villaverde, e “Juventude em marcha”, o último de Pedro Costa, dão-nos conta do momento actual de uma geração do cinema português que se iniciou no cinema por volta de 1990. E aquilo que esses filmes nos mostram dos seus autores é verdadeiramente admirável e dá-nos conta de que o cinema português, no seu melhor, continua a ser muito bom e a ter marcas características próprias.

Não são, nem ele nem ela, cineastas de muitos filmes, mas são ambos criadores inteiramente pessoais e originais ao ponto de se poder dizer que, sem eles, o cinema português não poderia ser o que é actualmente. Desse modo, os personagens dos respectivos últimos filmes surgem-nos como radicais deserdados, que vivem uma vida espectral, o que me permite juntar os dois filmes. Senão vejamos.

A Sónia/Ana Moreira de “Transe” atravessa a Europa, da Rússia a Portugal, tendo-se apenas a si própria e precisamente por isso. É mais uma peça de um tráfico degradante, que a cineasta cria e resolve acompanhar, e a que a actriz dá corpo. De tal tráfico, embora todos saibamos que existe, todos somos desconhecedores dos meandros, e até haverá, porventura, quem prefira permanecer na ignorância, fazendo, assim, de conta de que não existe. Dele, porém, nos fala o filme de Teresa Villaverde de uma forma clara, documentada, sem meias tintas para adoçar as coisas. Com ela vamos até ao coração de situações inaceitáveis mas verdadeiras, sem que ela, autora, hesite em nos dar por imagens a vivência interior da protagonista, com o que confere ao filme toda a carga ficcional sem lhe retirar a verdade.

Tal como Pedro Costa, Villaverde é uma grande cineasta do seu tempo, virada para a vida e aberta para o mundo, o que faz da sua visão da vida e do mundo o material dos seus filmes. Tal como ele, ela não deforma, não desvirtua mesmo quando aparentemente estetiza, como em “Transe” acontece. Limita-se a não se ficar pelas aparências documentais mais evidentes, e por isso aqui acompanha uma personagem ficcional que é uma síntese mais que perfeita das situações reais: insustentável. E é com grande simplicidade de meios, com grande argúcia sobre a forma como expor uma determinada situação através da explanação da sua vivência que ela o faz, sem concessões ao gosto fácil nem atracção por quaisquer ribaltas. Isto é cinema português actual puro e duro, no seu melhor, e uma sequência perfeitamente consistente de “Cold Wa(te)r”, a curta-metragem da autora para “Visions de l’Europe” (em que o episódio dela era, juntamente com os de Béla Tarr e de Aki Kaurismaki, o melhor).

Em “Juventude em Marcha”, por sua vez, Pedro Costa, fiel a si próprio, acompanha personagens do seu filme anterior “No Quarto da Vanda”, na sua mudança do Bairro das Fontaínhas para o Casal da Boba.

Ventura, cabo-verdeano que sofreu um acidente de trabalho, foi deixado pela mulher mas tem muitos filhos e escreve cartas dos conterrâneos de Lisboa para os familiares na sua terra, assume agora o papel mais importante, mas aqui reencontramos a Vanda do filme anterior, que deixou a droga e anda em tratamento, a quem morreram a mãe e a irmã. Só que as coisas não são tão simples como isso porque o cineasta ficcionaliza e, ao fazê-lo, cruza vários tempos no interior dos personagens, o que confere a estes um lado intemporal, tanto mais intemporal quanto mais radicado no presente. Assim, Ventura como que escreve sempre a mesma, interminável carta, e Vanda acolhe-o em sua casa como um pai a quem se conta.

Prosseguindo um trabalho depurado que vem de “Ossos” e de “No quarto da Vanda”, Pedro Costa adopta uma estética, que é também uma ética, do plano fixo, em que os raros movimentos de câmara surpreendem, como condição de chegar ao âmago dos seus personagens respeitando-lhes as respectivas figuras humanas. O tratamento do som, nomeadamente dos ruídos, assume neste filme um novo despojamento, com a utilização dos ruídos provenientes da extremidade do plano (caso do televisor no quarto), de ruídos provenientes do fora de campo e de ruídos que surgem como mais abstractos, o que, tudo junto, confere uma estranha musicalidade ao filme.

Como Teresa Villaverde, também Pedro Costa não hesita em estetizar na aparência, quer no enquadramento quer em certos diálogos, como os que decorrem durante as refeições, assim como em recorrer sistematicamente a planos longos em que, até por serem fixos, o tempo entra, se sente e é mesmo assim.

Como em “Transe”, também em “Juventude em Marcha” a nobreza dos deserdados torna-se visível, patente, e os personagens de um e do outro filme assumem uma dimensão inusitada, outra, devido ao rigor estético mas também humano com que são trabalhados. Se há uma poética própria de cada um dos cineastas em cada um destes filmes ela em caso algum funciona como acréscimo, como embelezamento, mas como parte essencial das estratégias fílmicas de cada um dos autores, como elemento indispensável para chegar, sem rodeios, à verdade nua e crua.

Também com Pedro Costa estamos (continuamos) no “núcleo duro” do cinema português actual no seu melhor. No seu mais recente filme ele prossegue mesmo o diálogo com Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, explicitado em “Onde jaz o teu sorriso oculto?” mas que vem de uma admiração e de um respeito antigos, que estabelecem com eles laços de cumplicidade para além dos meramente estéticos, embora também neles – e “Juventude em Marcha” pode mesmo ser considerado como o mais straubiano dos filmes do autor, sem prejuízo de todas as outras boas influências detectáveis e que não são de agora: Robert Bresson, António Reis, Yasujiro Ozu, nomeadamente. No caso de Teresa Villaverde falou-se da influência de Andrei Tarkovski, mesmo de Federico Fellini, mas penso que são referências insuficientes para um filme tão grande como “Transe” é.

Dizem-me que há muito ruído, muita festa no cinema e, especialmente, no audiovisual televisivo português, o que até posso compreender. No entanto, este é o som que me interessa e que julgo ser o mais relevante esteticamente no cinema que actualmente se faz entre nós, por muito que respeite, e obviamente respeito e até aprecio, outros percursos pessoais extremamente coerentes que chegam aos nossos ecrãs, como os de Fernando Lopes e de José Fonseca e Costa, mesmo o de Joaquim Leitão. E com todos, evidentemente, é preciso “ver para crer”.


(2007/Inédito)