quarta-feira, 12 de março de 2008

Há e estão maduros

por Carlos Melo Ferreira


A hipótese que me coloco há anos de haver um novo cinema dentro do cinema português, equiparável ao "cinema novo" dos anos sessenta, viu-se corroborada, mesmo se à revelia dos próprios, pelos últimos filmes de Pedro Costa, "Ossos", e de Teresa Villaverde, "Os mutantes".

Eu sei que isto de se pensar que de tantos em tantos anos se dá uma renovação profunda, com implicações nas estruturas expressivas e nas estruturas narrativas, dentro de uma determinada cinematografia, neste caso a portuguesa, implica os seus riscos e precisa de ser devidamente fundamentado.

Sei também que, devido às circunstâncias sociais e políticas dos últimos vinte e cinco anos, um novo cinema português, com a imposição de novos nomes e de novos valores, não podia acontecer em termos decalcados dos de inícios dos anos sessenta. Entretanto, e como se sabe, muita água correu debaixo das pontes, de tal modo que é metodologicamente correcto colocar sob a designação de cinema novo português dos anos sessenta, pelo menos em termos geracionais, todos aqueles que se revelaram até à queda do antigo regime, dentro de um determinado quadro de opções éticas e estéticas. Sei ainda que, depois de Abril de 1974, revelaram-se novos e importantes cineastas, como Luís Filipe Rocha, João Botelho, Jorge Silva Melo, João Mário Grilo, primeiro, Joaquim Leitão, Joaquim Pinto, João Canijo, depois, do mesmo modo que se sucederam diferentes orgânicas institucionais dentro do cinema português.

Se em 1974 há um corte importante dentro do cinema português, com o fim da censura e a criação de condições para uma liberdade de expressão e de criação artística, o certo é que a generalidade da produção acompanha, até final dos anos 70, os novos problemas resultantes de uma nova situação concreta.

É com os primeiros filmes de Luís Filipe Rocha, de João Botelho, de Jorge Silva Melo e de João Mário Grilo que se começa a verificar uma viragem temática e expressiva consistente, em que, em tons diversos, se aborda a história e a cultura portuguesas. Lamentavelmente, nomes esperançosos dos anos setenta viram espaçar-se os seus trabalhos, como Monique Rutler e Solveig Nordlung, quando não deixaram de aparecer, como José Nascimento. Entretanto, também o desaparecimento de António Reis veio enfraquecer uma geração que, tendo iniciado a sua actividade cinematográfica antes de Abril de 1974, se vinha dispersando pelos mais variegados rumos.

Os primeiros filmes da segunda metade dos anos oitenta traçam uma nova perspectiva, ou um desdobrar de novas perspectivas, entre uma estratégia mais decididamente comercial, como é o caso de Joaquim Leitão, e uma tentativa, então não particularmente bem sucedida, de renovação do cinema de autor, com Joaquim Pinto e João Canijo.

Quando se estrearam os primeiros filmes de Pedro Costa, "O sangue", e de Teresa Villaverde, "A idade maior", quem estava atento percebeu que por eles passava uma perspectiva nova sobre a vida e sobre a arte do cinema em Portugal. Não era apenas, talvez nem fosse principalmente, a novidade e o risco dos temas. Era antes uma nova maneira de olhar o mundo e o cinema através dos filmes, uma evidente perplexidade perante um real quotidiano que começava a assumir novas formas, novos contornos, que como que exigiam novas configurações cinematográficas.

Existem também os primeiros trabalhos de Ana Luísa Guimarães e de Jorge Paixão da Costa, primeiro, de Joaquim Sapinho, depois, que embora não desiludissem aguardam ainda neste momento uma confirmação, até porque os riscos que assumiam eram menores.

Ora a prova dos novos costuma dar-se, quando se dá, ao terceiro filme. E foi precisamente essa a prova que Pedro Costa e Teresa Villaverde passaram com especial brilhantismo nos seus mais recentes filmes.

São ambos, "Ossos" e "Os mutantes", trabalhos de alto risco temático e estético, e ambos ultrapassam qualquer ideia de mediania, de produção média, que alguns defendem faltar ao cinema português. Com objectivos diferentes embora, ambos se voltam, sem quaisquer rodeios, para os excluídos da sociedade do nosso tempo, e apontam lucidamente onde se situam as principais causas dos problemas e como se equaciona a dramática falta de saída para eles.

Precisamente porque não fazem concessões de qualquer espécie, quer a nível narrativo quer a nível figurativo, ou seja, porque não pretendem encontrar respostas consoladoras mas falsas, antes ir até ao cerne, ao fundo das questões, por muito desarmados que com isso possam ficar e deixar-nos, os seus filmes surpreendem e abalam.

Este, que não é um cinema conformista nem apaziguador, produz, em cada um dos filmes, um discurso como que angustiado, assustado mesmo com a violência obscena da própria realidade.

Em qualquer dos casos verificou-se, como se sabe, um longo e paciente trabalho de investigação prévio ao filme, o que, desde logo, afasta a hipótese de sensacionalismo que o tratamento dos temas abordados poderia convocar. O que em ambos os casos está em causa é a partilha da dor, da aflição dos autores com os seus personagens, e o transmitir-nos desapiedadamente esses sentimentos.

E é porque os personagens de "Ossos" vivem entregues a um destino que não sabem nem podem contrariar, porque vivem a sua miséria acrescida por problemas que não têm meios para ultrapassar e para a resolução dos quais não contam com qualquer tipo de ajuda organizada, que Pedro Costa nos lança o desafio ao mostrar-nos sem rodeios a sua existência.

Percebe-se a aflição dos personagens e a aflição do cineasta, e por isso não podemos ficar indiferentes perante uma realidade que, no entanto, todos sabemos que existe.

O cuidado, o pudor com que são tratados os personagens no seu abandono quotidiano serve, obviamente, não para explorar a miséria deles, mas para no-la dar a ver da forma mais crua, mais fisicamente consistente.

Tratasse-se de uma reportagem ou de um documentário e os personagens teriam direito à palavra, à explicação, e o autor teria direito à pergunta, ao confronto de opiniões. Mas não é, ainda, esse o caso (virá, porventura, a sê-lo no documentário que o autor prepara sobre os mesmos locais e personagens).

Pelo contrário, Pedro Costa enfrenta a realidade bruta sem guardar distâncias que o salvaguardem ou nos salvaguardem. Antes, pela própria planificação do filme, como que procura entrar na intimidade de todos os personagens, para melhor os dar a ver na sua precária, mais do que precária miserável existência.

O cineasta sabe, tal como Teresa Villaverde, que não lhe compete, com o seu filme, propor soluções. Sabe, como Teresa Villaverde, que lhe compete dar visibilidade a seres que vivem no quotidiano uma vida assombrada, estarrecidos entre o desamparo e o desespero.

Aqui não cabem, pois, as atitudes de não compromisso, de alheamento, de desconhecimento. O filme não deixa ninguém indiferente, mesmo os que dele eventualmente não gostem, precisamente porque a estrutura narrativa se articula em torno de uma planificação e de uma cenografia de uma precisão exemplar, animada por actores que conhecem a realidade que representam ao ponto de se metamorfosearem em figuras fantomáticas que vivem num mundo que, sendo embora o nosso, é já qualquer coisa de inadjectivavelmente outro.

Tudo o que há para ver nos é mostrado em "Ossos", filme ele próprio reduzido ao osso da existência física dos seres que figura e recria.

Se Pedro Costa nos faz parar a respiração num filme que fica na memória de quem o viu como na experiência de quem o fez, "Os mutantes" de Teresa Villaverde são outros seres noutras circunstâncias que, desamparados, incompreendidos, vão eles também até ao fundo do desespero e da solidão, na margem em que a sociedade pretende mantê-los.

E se há um pudor, uma secura no trabalho de "Ossos", Teresa Villaverde utiliza uma violência crua na própria concepção e na montagem do seu filme, como se, perante a violência da realidade que toca, não lhe restasse outra alternativa senão retratá-la.

Com um poderoso recurso à elipse, tal como Pedro Costa, a autora de "Os mutantes" corta rente na mudança de planos, sem transições que nos dêem conta da passagem da situação de uns personagens para outros. Assim percebemos que todos os jovens mutantes são apenas faces, sexos diferentes de uma mesma realidade brutal, que os brutaliza, os encurra, os remete ao silêncio e ao fim.

Tal como Pedro Costa, também Teresa Villaverde sabe da vida dos seus personagens e sabe que todos nós sabemos, apesar de todos nós fazermos de conta. Daí o mérito de fazer aparecer no quadro do plano apenas personagens aflitos, maltratados, em revolta, como que responsabilizando pela sua situação muito mais do que aquilo que de diferente deles se pode ver no filme.

Quem aparece, e lida com esses jovens no seu dia a dia, se calhar faz o que pode com os meios de que dispõe. Mas quem pode contrapor mãos limpas à mão limpa de Pedro no final do filme? Quem pode não cegar ao ver o que Andrea vê no fim?

O problema da reinserção social de jovens delinquentes por comportamentos mais ou menos gravemente anti-sociais é diferente do da situação dos habitantes do bairro em decomposição de "Ossos". A própria situação dos jovens protagonistas, entre a reclusão, a fuga e a deriva, mostra com clareza que as suas são vidas que giram em circuito fechado, em círculo vicioso.

Mas a crueza das imagens do filme de Teresa Villaverde é como que destinada a que se possa exercer a ternura do seu olhar, e um convite a que exerçamos a do nosso. O desdobramento de Andrea assinala precisamente isso: que assim como ela gostaria de se separar do seu próprio corpo, da sua própria vida, como condição de encontrar quem lhe pudesse proporcionar afecto, assim a realizadora se desdobra entre o olhar que capta nos personagens, ora fixo, ora fugidio, e o seu próprio olhar, que sabe nada poder deter, que se sabe apenas portador da arte de mostrar, compadecida mas implacavelmente, o que se perde todos os dias por entre os corredores da burocracia da vida de alguns dos mais jovens.

Tal como Pedro Costa em "Ossos", também Teresa Villaverde nos deixa na precisa situação dos seus personagens: sem tábua de salvação.

Nem eles nem os seus personagens merecem a nossa indiferença ou o nosso alheamento.

E é precisamente essa dialéctica singular entre o cinema, o seu cinema, e os espectadores aquilo que faz toda a juventude, todo o brilho, todo o inconformismo destes dois jovens cineastas. É que a atitude deles ao fazerem os seus filmes, nomeadamente os mais recentes, que são também os melhores até à data de cada um, não se limita a ter uma componente estética, aliás muito apreciável, tem também uma parte muito importante de empenhamento ético, que é visível, que é patente, e por isso mesmo exige do espectador também uma resposta ética.

Outros nomes, entre os citados no início, são por certo importantes, outros virão a sê-lo a prazo mais ou menos curto, mas o certo é que com Pedro Costa e Teresa Villaverde o cinema português atinge a maturidade na sua mais nova geração, a dos anos noventa. Claro que quem quiser pode seguir outros caminhos, mas o certo é que ambos se acompanham muito bem um ao outro.


Cinema, nº 28, Verão 1999