segunda-feira, 10 de março de 2008

Luminescências, por Carlos Melo Ferreira

No Quarto da Vanda, de Pedro Costa

Depois de ter dirigido Ossos, de 1997, Pedro Costa permaneceu durante dois anos no bairro das Fontainhas, nos arredores de Lisboa, correspondendo ao desafio de uma das suas habitantes, Vanda Duarte, de filmar outra realidade de outra maneira, diferente da utilizada no filme anterior. O resultado chama-se No Quarto da Vanda, de 2000, um filme completamente avassalador sobre as margens da grande cidade, como já fora Ossos, mas em que o cineasta, em vez de nos dar uma ficção sobre fundo documental, nos brinda com um original e fortíssimo cruzamento do documental e do ficcional, estruturado a partir do quarto da protagonista, cuja entrada lhe foi franqueada.
Este ponto de partida interior poderia, noutras mãos, mostrar-se propício ao mau gosto ou ao panfletarismo.
Com Pedro Costa verifica-se um misto de absoluto respeito e completa cumplicidade entre quem filma e quem é filmado, e sabendo-se, como se sabe, que o cineasta filmou em vídeo 120 horas de filme, percebe-se que do material em bruto existente poderiam resultar diversos filmes diferentes.
Mas como primeiro ponto a sublinhar, haverá que chamar a atenção para o fantástico trabalho sobre os espaços, do quarto e do bairro, como recipientes dentro dos quais se movem as personagens e em volta dos quais vibram os sons, nomeadamente o das máquinas que estão a deitar abaixo as casas, ao que se supõe com a melhor das intenções.
Contudo, falar de personagens será pouco perante a fundamental humanidade de Vanda, da sua família, vizinhos e amigos, como falar de espaços será necessariamente perante o fulminante trabalho sobre o contraste da luz no interior do espaço do plano com as trevas que a cercam.
Com efeito, este é um filme de luminosidades fugazes, que como lâminas cortam um espaço insalubre e pobre, mergulhado no estado de espírito acarretado pela soma a estes factores do consumo de droga. Este é um filme em que, ao movimento espasmódico e inútil das personagens de Ossos, se sucede como que um retraimento para o interior, das pessoas, dos seus gestos, dos seus actos.
Dali não há saída, como não havia em Ossos, a não ser através de um trabalho espinhoso que envolve necessariamente a interioridade e a disponibilidade das pessoas, que naquele lugar e naquele modo de vida lançaram as suas raízes e assim se habituaram a viver.
Deste modo, são seres de algum modo em desagregação num bairro em destruição que habitam este filme com a sua integridade pessoal que envolve a respectiva identidade, traçada nomeadamente através da memória, o convívio e a solidariedade de uns para com os outros, e da procura do indispensável a uma sobrevivência precária. Estamos, assim, longe dos paraísos artificiais de um consumo de drogas endinheirado. Pelo contrário, encontramo-nos em pleno coração de uma humanidade esquecida e marginalizada, que nas drogas procura encontrar um pouco de consolação, mesmo se à custa do maior sofrimento.
Ora Pedro Costa respeita integralmente essa mesma identidade, de Vanda e dos outros, e ao mesmo tempo que trabalha no sentido de conferir credibilidade ao aspecto exterior dos seres e objectos filmados, compõe cada quadro, cada plano, com o rigor obsessivo dos grandes criadores cinematográficos, dos grandes criadores nas artes visuais.
Em consequência, como que esculpe em luz sobre as trevas as figuras imensamente frágeis das Fontainhas, delas não apenas nos transmitindo os traços exteriores mas também, e através destes, a respectiva interioridade – chamemos-lhe alma, para simplificar ou complexificar.
Com um rigor visual e sonoro admirável, Pedro Costa mais do que compor cria quadros de uma grande exactidão visual e auditiva, em que permite e exige que se movam seres precários em todo o contraste de luz e de sombras dos seus universos interiores.
Neste contexto, a palavra, as palavras assume (m) um relevante papel de confidência e entrega, a tal entrega que não se pede nada em troca e que é reveladora do mais alto conceito do humano sobre si próprio, a que corresponde a atitude quer de Vanda quer dos restantes habitantes do bairro e do filme quer a do próprio cineasta.
Percebemos, assim, como aqui não há contrapartidas, tudo é oferta, tudo é dádiva, em última análise, e como em Robert Bresson, tudo é Graça ou ausência dela.
Uma vez que se entre neste filme de um rigor estético e ético enorme não se sai dele facilmente, tanto pela sua desmesurada beleza como pela sua incomensurável humanidade.
Quando o cinema é o que é No Quarto da Vanda ele é verdadeiramente a arte que nos faz falta a todos como ponto de reconhecimento e de contacto uns com os outros na nossa caminhada pela vida. Não abandonar o pressuposto ético e estético de filmar uma realidade pungente e rigorosa do lado de dentro, do lado dos que a vivem, torna este filme, na sua aparente excessiva e no entanto escassa (inevitavelmente escassa) duração, numa espécie de manifesto estético ou programa fílmico que o autor se propõe a si próprio e que nenhum manifesto artístico nem nenhum programa politico podem igualar.
Aqui nada nos salva, nem a palavra cinema, nem a palavra estética. Perante esta obra resta-nos um comovido e respeitoso silêncio.
Atravessado pelo negro, pela poeira, por sons dissonantes, este é o filme que permite perceber como Pedro Costa, que no meio da maior miséria não perde, como a sua protagonista, o sentido de humor, é uma figura com luz própria no panorama da criação cinematográfica mundial no dealbar do século XXI.

Carlos Melo Ferreira

Cinema, nº 33, Outubro-Dezembro/2004