O Eclipse
Há um momento particularmente revelador em No Quarto da Vanda, o último filme de Pedro Costa, quando Zita e a mãe estão na rua a olhar os últimos momentos do eclipse lunar de há dois anos. A situação não têm nada de especial que a distinga do resto do filme, a não ser o facto de No Quarto da Vanda poder ser tomada, todo ele, como um formidável mergulho na vida de uma humanidade eclipsada, esses mais de 80% de homens e mulheres do mundo, cuja existência é mantida, religiosamente, no cone de sombra do cinema, da televisão e de todos os media em geral.
É por isso que o Bairro das Fontainhas de No Quarto da Vanda é uma avassaladora metonímia de quase todo o Hemisfério Sul e de uma boa parte do Hemisfério Norte. É por isso também que este filme (filmado com uma câmara digital e com um rudimentar sistema de reflectores) a luz é tão exigente e intransigente, visando uma autêntica sincronia cromática com o mundo que, através dela, se reflecte.
O gesto de Pedro costa é – percebe-se – um gesto gigantesco, titânico, mas a que não corresponde – como talvez as boas consciências o quisessem e pensassem – qualquer tipo de «franciscanismo».
Muito pelo contrário, No Quarto da Vanda é um filme impiedoso, um puro objecto de combate aberto em múltiplas frentes e, em primeiro lugar, contra aquilo em que o cinema se foi transformando: num miserável «universo de ficções», forçado a disputar quotidianamente as suas «audiências» à televisão e ao qual vai já faltando a consciência de uma autentica diferença e um motivo de existência.
Um grande filme temerário
Finalmente, No Quarto da Vanda é muito menos um manifesto em defesa dos «excluídos», do que um filme contra o próprio principio de exclusão, assumindo, nesse radical volte-face, um olhar em contracampo sobre todo o cinema, onde é virtualmente impossível não sentir que os verdadeiros excluídos somos nós, forçados que estamos a viver um movimento que praticamente todo o resto da humanidade não vive (nem pode viver) e dopados por uma série de hipóteses romanescas hoje cristalizadas no mundo da televisão e na sua incompatível fotogenia com a realidade.
Medonho e admirável, No Quarto da Vanda é um grande filme temerário onde, provavelmente, vai desembocar uma boa parte da melhor cinematografia portuguesa depois de 74. Será, talvez desgraçadamente, o filme que fecha todo esse grande ciclo; se o for, pelo menos que tenhamos a certeza de que é um ciclo que termina em grande, num objecto que soube fazer a luz da escuridão, que soube fazer nascer as personagens das pessoas, o drama da realidade, mas que é já, em tudo isto, um grande filme solitário, feito por um homem que um dia viu o verdadeiro eclipse (não o solar e astronómico, mas o humano e terreno) e que simplesmente o quis mostrar a toda a gente. A ver com urgência, se possível nos mesmos dias em que as televisões portuguesas exibem, nos reality-shows que tanto as orgulham, as perseguições policiais nas Fontainhas ou na pedreira dos Húngaros).