por Rodrigues da Silva
Mal aqui cheguei perdi-me logo, diz, às tantas, Mariana (Inês de Medeiros). O "aqui" é Cabo Verde (ilha do Fogo), mas, se estão à espera que desta África surja no ecrã o cliché, desenganem-se. No Fogo e sob o vulcão estamos, mas fogo e vulcão são sobretudo os das personagens que se irão desintegrar e Cabo Verde mais não é do que o longe a partir do qual Pedro Costa é capaz de ver mais e melhor o agora português.
Sim, porque, por ínvios caminhos, "Casa de Lava" é um gémeo diferente do recém-exibido "Três Irmãos". Tal como Mariana (Inês de Medeiros), a personagem central de "Casa de Lava", sustenta algumas semelhanças com Maria (Maria de Medeiros), a protagonista do filme de Teresa Villaverde. Uma e outra símbolos femininos da mesma geração de vidas sem rumo e abnegadas. Mas há uma profunda diferença entre os dois filmes. E essa diferença é o olhar. Enquanto Teresa Villaverde, cúmplice embora, observa uma realidade que lhe é exterior, Pedro Costa é como se estivesse dentro do seu filme, o fosse ele próprio. Daí que "Três Irmãos" seja uma história linear, com principio, meio e fim; daí que "Casa de Lava" seja uma viagem circular e sem saída. Um filme, que com um suicídio termina, interroga-se sobre o futuro e esclarece; o outro, que com um suicídio (falhado) começa, na vida se perde e constitui-se como um mistério.
Só que dizer de "Casa de Lava" que é um mistério e nele se perde é algo muito diferente do que classificá-lo como um filme obscuro e perdido. Muito diferente mesmo, porque o seu deambular sem rumo - o das personagens e o do próprio filme - é, porventura, um dos maiores méritos desta obra ímpar e magnífica do cinema português (e não só português).
Uma obra feita de discursos paralelos, de desencontros vários, de fragmentos de histórias, memórias e esquecimentos; jogos de sombra, gente à deriva. Totalmente disponível, portanto. E que crueldade também em tamanha disponibilidade. Como a de Mariana que "acredita que pode trazer o homem morto para o mundo dos vivos e, sete dias e sete noites mais tarde, percebe que estava enganada: trouxe um homem vivo para o meio dos mortos".
Nesta floresta de enganos, nesta indefinição entre a vida e a morte ("quem tem medo dos mortos tem medo da vida" - afirma-se, a meio do filme), Pedro Costa movimenta-se como o escultor que intui estar já contida na pedra a esculpir a estátua que dela há-de brotar. Não, neste caso, uma estátua que em si se esgote, mas uma outra que dê a ver. Como num dos magistrais travellings de "Casa de Lava", Inês de Medeiros é filmada: ela caminha, despojada e decidida, mas o que importa são os pequenos nadas que por detrás dela ocorrem. Cenários - dir-se-ia, mas cenários animados, meandros onde cada ser a outro ser se liga (liga ou prende?) por laços que jamais lograremos desatar, pois é o contrário o que filme propicia ("comecei a pensar numa mulher [Edith Scob] e vieram todas as outras personagens atrás" - declarou Pedro Costa numa entrevista ao Público", 21/5/94)
Vieram as personagens e vieram as interpretações: do melhor em todos os casos, como a desse óptimo actor, misto de inquietude e inteligência, Pedro Hestnes, como a de Inês de Medeiros. Mas sobre Inês é impossível não referir quer o extraordinário desempenho quer o olhar da câmara sobre ela.
Ninguém como Pedro Costa filmou jamais assim Inês e tão bem (nem ele próprio, em "O Sangue", 1990). Como se, ao captar pelo olhar a intérprete, o cineasta captasse não uma efémera e fílmica existência mas uma perene substância. A da primordial matéria, de que é, afinal, feito o seu filme - a lava fervilhante e insegura, misteriosa e de incerto destino de que é feita a vida."
Jornal de Letras, 01/02/95